sexta-feira, 31 de maio de 2013

O Outro Espaço - Uma leitura possível sobre três livros já publicados de Manoel Ferreyra da Motta Cardôzo, pseudónimo de Manoel Tavares Rodrigues-Leal









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O Outro Espaço






Uma leitura possível sobre três livros já publicados de Manoel Ferreyra da Motta Cardôzo, pseudónimo de Manoel Tavares Rodrigues-Leal





Quem não acreditar visite a Sierra Tarahumara: numa região em que a rocha tem ar e estrutura de fábula, ver-se-á que a lenda passa a realidade e não pode ali haver realidade alheia àquela fábula.

 
Antonin Artaud, Os Tarahumaras, Lisb., Rel.D’Água, Trad. Aníbal Fernandes, p.77







como vós vedes. as vãs. veredas do verão.

são breves limiares luminosos. que se diluem. ou.

circulam no corpo. e o vento breve invade-as.

em vão as oscula ou as circunscreve.

em os muros do rumor. vão. do verão antigo nunca olvidado.

Motta Cardôzo, A Noção da Inocência





Se declaras que tal forma é Deus, estás a homologá-la, porque ela uma forma de entre as muitas nas quais ele se manifesta (mazhar); mas se dizes que ela é outra coisa, outra que não Deus, estás a interpretá-la, da mesma maneira que se te incumbe a interpretares as formas vistas como em sonho.

Ibn ‘Arabi





1. Se há um hermetismo, ou mesmo um certo barroquismo, na poesia de Cardôzo, esse hermetismo abre para uma dimensão imensa que transborda na sua escrita (1).

Para melhor nos fazermos entender procedamos ao esboço de um possível estudo comparativo. Assim, essa dimensão lembra, embora em contextos e em registos temáticos e psicológicos bem diferentes – talvez até em certos aspectos nos antípodas – o que Henry Corbin chama de «imaginal» ou «mundus imaginalis» (2). Trata-se de uma noção adoptada por este investigador para traduzir o «’alam al-mithâl » desenvolvido pelo poeta sufi de tradição islâmica Ibn Arabi (1165-1240) na linha de um conjunto de autores do sufismo islâmico. Poetas e escritores que se inscrevem nesta tradição são por exemplo: Sohravardî (séc.XII)) ou o jovem Sheik iraniano ‘Ali Ibn Fâzel Mâzandarânî (3).

Mas muito antes do islamismo, o sufismo tem origem na Pérsia com "influências de todas as filosofias e religiões que, durante séculos antes do Islão, ali se confrontavam, tais como o neo-platonismo, o budismo, o cristianismo e o maniqueísmo (Marguerite-Marie Thiollier, Dicionário das Religiões, Trad. João A. Vaz,E.P.S) (3). De modo algum nos consideramos entendidos acerca da literatura mística sufi. Muito longe disso. Limitamo-nos neste estudo simplesmente ao recurso a um ou dois pontos nestas questões que nos parecem pertinentes para a argumentação do que defendemos no que respeita à dimensão imagética da poesia de Cardôzo. Salvaguardando, por assim dizer, qualquer eventual colagem ou sincretismo, e com a consciência dos riscos teóricos que podem incorrer num certo delírio comparativo quando vertentes poéticas e literárias tão díspares como estas são questionadas entre si. No entanto, talvez fosse interessante estudar muita da poesia e literatura ocidentais à luz desta perspectiva que não separa radicalmente o mundo e a vida imaginários do mundo e vida reais. Como se essa separação Ocidental se tratasse de uma salvaguarda ou de um pressuposto racional e racionalizador com vista a não perder uma pretensa lucidez e discernimento. Enfim, para não cair numa espécie de delírio que traduz um fantasma que afinal ainda assombra um certo racionalismo: o fantasma do múthos sobre o lógos. Ora, não é verdade que, no revés, o actual mundo Ocidental entretanto tão tecnologizado foi invadido por imagens, de outro teor (as imagens técnicas, do ecrã, etc), que por seu turno o mergulharam de alguma maneira numa nova confusão, numa nova espécie de delírio entre imagens e realidade? E no entanto, não será que nós, ocidentais, vamos perdendo uma certa capacidade para uma imaginação autónoma tanto a nível colectivo como individual? A nossa imaginação, hoje, parece-nos mais servida pelo que é imposto segundo os meios da técnica e dos media e de um certo cinema. Ao mesmo tempo que um esgotamento das imagens se manifesta paradoxalmente através desta profusão. E já nem os remakes de filmes, e já não são só os dos anos 30, mas também dos anos 80 - tal é a falta de originalidade e imaginação que nos assola - parecem poder salvá-las e salvar-nos. Não será por isso que é posto em causa, segundo vários teóricos, se vivemos actualmente num mundo de imagens? É que o próprio conceito de imagem é hoje uma questão deixada em aberto.

2. Mas voltando a Henry Corbin convém lembrar que foi o primeiro tradutor de Heidegger para língua francesa. Heidegger, que por seu turno fora profundo leitor e estudioso de poetas como Holderlïn, Rilke, etc., bem como dos pensadores pré-socráticos, também eles poetas e físicos (physikoi).
Como dissemos, este estudioso do pensamento esotérico islâmico designou e traduziu o ‘alam al-mithâl de Ibn Arabi com a noção latina de mundus imaginalis. O mundus imaginalis é um mundo que não consiste nos meros planos da imaginação nem do imaginário, tão-pouco do «real». E no entanto ele circula na espiritualidade sufi como uma espécie, diríamos, intermédia e coexistente, embora autónoma, com a imaginação, o plano sensível e o plano inteligível. Ou nas palavras de Corbin, o imaginal situar-se-ia platonicamente «entre a percepção sensível e a percepção inteligível», ganhando porém uma força ontológica que não se encontra neste pensador grego que, como se sabe, foi o primeiro teórico a pôr em causa a questão das imagens poéticas, nomeadamente as dos mitos - com o objectivo de reforçar o advento do lógos já iniciado com os pré-socráticos. Embora, como se sabe, recorra ao múthos já numa outra reformulação.
Corbin fala-nos do Nâ-kojâ-Âbad ou huitième climat (oitava região) mencionados na obra de Sohravardî intitulada L’Archange empourpré: “Je vien de rappeller le mot utopique. Chose étrange, ou exemple décisif, nos auteurs se servent en persan d’un terme qui semble être le calque linguistique: Nâ-kojâ-Âbad, le «pays du Non-où». Et pourtant il s’agit de tout autre chose que d’une utopie (Vj. Corbin, H., Face de Dieu Face de l’Homme, p.9)». Por outro lado, leiamos o que Corbin escreve a propósito de A Ilha Verde Situada no Mar Branco, obra de Mâzandarânî (autor já acima mencionado), ou mais propriamente «Récit des choses étranges et merveilleuses qu’il avait contemplées et vues de se yeux dans L’Île Verte Située dans la Mer Blanche (Op.cit., p.31)»: «Nos voyageurs, eux, abordent à L’Île Verte. Il ya là une une cité située au bord de la mer; sept murailles, pourvues de hautes tours, la protègent de leur enceinte (c’est le plan symbolique par excellence). Il y a lá une végétation luxuriante, d’abondantes rivières. Les édifices sont construits en un marbre diaphane. Les habitants ont tous le visage beau et jeune, et portent de magnifiques vêtements. Notre shaykh iranien sent son cœur s’envoler d’allégresse… (Op.cit,p.33). Partindo deste passo poderemos perceber a força imagética que emana de obras como estas, a par da força cromática e da luz inebriantes. Paralelo que poderemos estabelecer com o mundo poético de Cardôzo, p.ex., no seguinte poema apresentado em epígrafe. Quanto à luz e cor: “como vós vedes. as vãs. veredas do verão./ são breves limiares luminosos. que se diluem. ou./ circulam no corpo…”.» Quanto ao espaço e ao tempo: “… e o vento breve invade-as./ em vão as oscula ou as circunscreve./ em os muros do rumor. vão. do verão antigo nunca olvidado.(N.I.,XXI)” Quanto aos deuses ou a uma estranha realidade veja-se num outro poema: “assim houvera o instante./ e/ quem o movera. imóvel. deus./ e os periclitantes discípulos de uma religião diáfana. ou religiões/ (D.E.IX)”.

3. Eis uma leitura que nos ocorre sobre esta esmeraldina «Ilha verde» de Sohravardî: não será que esta «Ilha verde situada no mar branco» – título só por si belíssimo - é o oásis (e Corbin também faz referência ao oásis, op.cit.) transfigurado num misto de miragem e realidade encontrada, posto que, precisamente, se trata de facto de um encontro com um oásis real que salva da sede e que, contudo, é supra-imaginário uma vez que consuma o imaginário aspirado, transmutando, por sua vez a realidade, e remetendo, por assim dizer, para um outro sentido de real? Quer dizer, transmuta-se o próprio utópico como um real-imaginal.
A Ilha verde seria o oásis com as fontes e riachos enquanto o mar branco seria o deserto de sol transfigurado pelo próprio contraste em relação à frescura do retiro da ilha (oásis) com sua água e luxuriosa vegetação. A miragem e a alucinação enquanto contemplação do próprio oásis real que afinal não é um oásis ilusório.
Dir-se-á: mas toda a poesia que se preza cria imagens. Sem dúvida, mas o que se tenta aqui observar é a capacidade muito própria de transparecer imagens intensas que pelo facto de nos surgirem como se nos fossem imanentes elas já são reais porque nos mostram um mundo a descobrir que virtualmente perpassa o próprio mundo que nos rodeia. Imanência, portanto de superfície e ao mesmo tempo de profundidade, porquanto nos revela que o mundo e o espaço mentais são infinitos tais como o mundo e o espaço que nos rodeiam.

4. Assim, em Cardôzo a força das imagens resulta de uma espécie de atmosfera que o poema transpira. Muito ajudada pela evocação do Verão, associado ao sol, ao calor e a uma certa amplitude espacial.
Por outro lado, será interessante observar que tanto estas obras como a deste poeta português invocam um certo mito da eterna juventude ou da adolescência. Como se se tratasse de um apelo a um qualquer plano que perpassasse as diversas idades e, ao mesmo tempo, fosse um retorno à infância, ou antes, se quisermos, um «devir-criança» (usando palavras de Gilles Deleuze). Criança que, recordada pelo adulto - estádio ao qual ela chegará pela ordem natural das coisas - se cruzaria simbolicamente com ele, porquanto também o adulto à criança retornaria, num qualquer tempo-espaço-mundo imaginários. Do que relevaria por seu turno uma espécie de osmose simbolizadora, através de uma outra espécie de memória, não somente retrospectiva (retorno do adulto à criança), mas também prospectiva (processo da criança para o adulto), como um plano de eterna juventude:

a) O adolescente e o «deus».

b) o efebo.

c) rapaz e rapariga.

d) no corpo pelo corpo cujo sexo não é explicitado no poema.

Seriemos e prestemos mais atenção às alíneas a) e b) uma vez que estas se articulam mais e remetem para analogias com os textos em causa e com o «imaginal». No que respeita a a) citemos primeiro uns passos de «l’Archange empourpré» de Sohravardi belíssimamente ilustrados por Corbin: «Au début du récit que Sohravardî intitule L’Archange empourpré, le captif, qui vient d’échapper à la surveillance de se geôliers, c’est-à-dire de quitter momentanément le monde de l’expérience sensible, se trouve dans le désert en présence d’un être à qui il demande, puisqu’il voit en lui toutes les grâces de l’adolescence: «D’où viens-tu? ô Jouvenceau!» Il reçoit cette réponse: «Comment? je suis l’aîné des enfants du Créateur (en termes gnostiques le Protoktistos, le Premier-Créé) et tu m’appelles jouvenceau?» Là même, dans cette origine, est le mystère de la couleur rouge pourpre que revêt son apparition: celle d’un être de pure Lumière dont la ténèbre du monde créaturel atténue l’éclat en la pourpre du crépuscule. « Je viens d’au-delà de la montagne de Qâf… C’est là que tu fus toi-même à origine, et c’est là que tu retourneras, lorsque tu sera enfin débarassé de tes liens. (Corbin, H., Face de Dieu, Face de L’homme, p.9»; em seguida um passo de Cardôzo: “como se fosse o fogo da adolescência. ainda ardente./ e tão efémero (I.F., 1ª parte, VI).”
b) “ó nudez interdita, como a de um efebo./ como se fosse a primeira. ou. a última vez da vida. (I.F., 1ª parte, VI))”; “que futuro tem a eternidade. hoje e aqui./ corpo ocidentalíssimo./ descoberto e belo. que se ofereceu. efebo efémero./ instante supremo fórmula feliz talvez (D.E.,XII)”.
Depois, seguem-se estas alíneas menos importantes para o presente estudo sem no entanto deixarem de reenviar para a intensidade das imagens poéticas: c) “será um rapaz iníquo./ será uma rapariga obcecada. ambos./ ao sabor do que se pensa (D.E.,IV)”. d) “é então. que o teu corpo esvelto. se revela. e resvala./e a noite./ enorme./freme. aureolada de ouro. sobrevém. (I.F.,V)” ; “de súbito. a manhã navega./ a nudez inóspita. – delapido-a. – quem segrega/ a beleza . antiquíssima. a de um corpo que cala o prazer. e cega./ o ocidente intacto. (…) (N.I., XX).” O tal plano, mais que imaginário e no entanto num certo registo de real: “a infância ainda ecoa. ainda eclode./ tão íntima. tão lúcida./atravessa os dias. como uma seta./ que inflige ternura. (N.I.,V)”.
Por conseguinte, o mundo poético de Cardôzo constitui-se enquanto estrutura onde o real e o imaginário se permutam e transmutam um no outro e, sem desaparecerem, originam uma outra dimensão onde o onírico e o imaginário adquirem tal intensidade que torna possível um certo milagre poético, pois o «imaginal» cardoziano e o mundo «real» coabitam sem o risco do delírio e da loucura enquanto a própria escrita sustentar esta ponte lançada entre um certo real e um outro: “(…) humana face da loucura./ talvez eterna ou divina. talvez breve./ como foi. na verdade.(D.E.,XII)”; “e essas puras deidades./ que irrompiam. e supuravam sexo./ em vez de pura eternidade. corrompida/ como um corpo. abandonado. ermo./ insólito./ o de quem isto escreve. (D.E., XIV)”.

5. Como é possível este estado de coisas? Somente pela forma como se assume a emergência poética e se reconhece ao mesmo tempo que um mero meio-termo no plano da imaginação é ainda uma forma de manter um hibridismo entre o «real» e o fictício ou «fantasia» (Corbin). Quando, pelo contrário, é na assumpção da força imagética que se dá sentido à contrapartida do real que nos rodeia, reavivado e coexistente com o mundo poético sem que, por isso mesmo ambos se excluam: “(…) depois a remota eternidade de um corpo./ ou de uma tarde nua. abomináveis aves. as de/ um verão imperfeito. o mundo./ se o fôr./ mais não é do que frívola eternidade./ a de um instante. ou a de um contorno leve. o da nudez. (…)» (D.E.,I); “ que futuro tem a eternidade. hoje e aqui. corpo ocidentalíssimo. (D.E.,XII)”. Daí que, a título de exemplo, e embora numa perspectiva teofânica (o que não se enquadra na poesia mais carnal, e não-teosófica de Cardôzo) Ibn’Arabi escreva estas linhas no seguimento de uns versos em Traité de L’Amour (Tratado do Amor) : “La première fois que je pénétrai en Syrie, je savourai, par expérience directe, la réalité que je viens d’exprimer et je ressentis un attrait inconnu et tenace pendant un événement (qiçça) divin prolongé qui pris dans mon imagination une forme corporelle.” Prosseguindo com : “En entrant en Syrie, ma raison fut trouble./ Je ne vis d’amoureux comme moi possédés./ De qui suis-je épris? Je ne puis le comprendre./Le Bien-Aimé est-Il Celui qui m’a crée?/Ou bien demeure-t-il fait à ma ressemblance?” (4).
Uma triagem é feita pela própria fusão e cisão entre esses dois mundos através da obra poética. De facto, como já referimos acima, o pensamento Ocidental tem alguma dificuldade em assimilar estes paralelismos.
É neste sentido, e ressalvadas as devidas diferenças contextuais tal como já assinalámos, e convém repeti-lo, que evocamos o «mundus imaginalis» como exemplo comparativo para o que tentamos indicar: ou seja, a força dimensional do espaço onírico e imaginário, ou antes imaginal (recorrendo à expressão de Corbin) que se instala como mundo no poema de Cardôzo.
É no jogo leitor-texto-escritor, dessa escrita que suspende e se suspende, que se abre aquela dimensionalidade, onde a letra e a palavra – inscrição – entram nesse espaço-tempo e o abrem, inaugurando um fora ou um «de-fora» (nas palavras de Maurice Blanchot) (5). Letra e palavra, ajudadas pela pontuação percutida, entram e abrem dando a volta ao sentido convencional do dentro/fora. E por isso se constitui um mundo: “(…) assim. se iniciara/ o suicídio colectivo. das/ pombas. que habitavam o bairro antigo. e não só./ também o templo erigido aos deuses. aqui perto. como se fosse densa floresta de eternidade. ignoro/ porém o futuro puro dos instantes. flutuantes. ou extáticos (D.E.,X)”.

6. O poema parece por vezes querer sobreviver numa relação umbilical a si mesmo. Numa dobra, num barroquismo que chega a ser nostálgico e melancólico. Digamos que se pode entrever até um certo solipsismo poético numa contorção narcísica que transparece alguma mágoa do próprio homem e do poeta (6).
Todavia, é precisamente essa condensação escrita, essa obsessividade, que faz eclodir o significante numa dimensão de mundo: “esculpe-se a palavra. forma-se o poema. (I.F.,1ª parte,XIV)”. Sem que se perca o labor da letra e da palavra enquanto tais.
A luz, nocturna ou diurna que, por um lado, se adivinha no espaço aberto pelo poema, e, por outro, no tempo “antiquíssimo” que se estende numa espécie de presente onde o efémero e o eterno se cruzam, vem, retroactivamente, dar sentido à construção sintáxica e rítmica da pontuação e da linguagem que por seu turno a tornam (essa luz) manifesta: “aflora-se o cerne solene do dia. oh ofício diáfano. tão efémero./tão fugidio./que nem errância. ou sussuro consente.// é então. que o teu corpo esvelto. se revela. e resvala./ e a noite./ enorme./ freme. aureolada de ouro./ sobrevém (I.F.,2ª parte, V).”; “a tarde. intrusa. impregna./ inunda./ a casa mansa./ como um corpo lindo./ que frima o corpo fugaz.// a íngreme noite. demora. depois./ desagua (…) (I.F., 1ª parte, I).”
Pouco ou nada falámos aqui da celebração do corpo, tema tão caro a Cardôzo. E até de um certo tom profano que transpira a sua poesia. Não faz parte do propósito deste estudo. Deixaremos o resto, que é muito, à curiosidade do leitor.



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Notas:

(1) Os livros intitulam-se A Duração da Eternidade, A Imperfeição da Felicidade e A Noção da Inocência, de edição de autor, constando um exemplar de cada na Biblioteca Nacional, e, entre outras referências, uma recensão por Elsa Rodrigues dos Santos, no site de recensões da Sociedade de Língua Portuguesa (www.slp.pt). Doravante os mesmos serão indicados nas citações deste estudo com as respectivas siglas: «D.E.», «I.F.» e «N.I.» acompanhadas da numeração dos poemas ou de uma outra nota caso seja necessário.

(2) Nomeadamente, entre outras: Henry Corbin, L’Imagination Créatrice dans le Soufisme D’Ibn Arabi, Paris, Aubier; ou ainda, o livro do mesmo autor: Face de Dieu, Face de L’Homme, Paris, Flammarion.

(3) No entanto há fortes dissidências do sufistas e fatimidas relativamente ao Islão tradicional. Sobre várias vias, práticas e técnicas corporais de libertação espiritual alheias ao islamismo ortodoxo -religião de submissão: muslim, islam - leia-se o capítulo 7 do excelente livro de Moisés Espírito Santo (Os mouros fatimidas e as aparições de fátima, Lisboa, Ed. Instituto de sociologia e etnologia das religiões, UNL, 2000). Embora também houvessem discordâncias entre vertentes sufistas, nomeadamente Ibn Arabi e Ibn Thumart, vendo-se assim a complexidade destas questões e as pontes com o Corão (Op. Cit., p.247).

(4) Ibn ‘Arabi, Traité de L’Amour, Trad. Maurice Gloton, Paris, Albin Michel, Col. Spritualités Vivantes, p.52.

(5) Cf. p.ex., Blanchot, M., L’Espace Littéraire. Seria interessante elaborar um estudo sobre o poema de Cardôzo a partir do que Blanchot reflectiu sobre o espaço literário. Portanto, já num contexto da literatura europeia e, digamos, menos heterodoxo do que o presente estudo. Talvez fique para outra oportunidade. Leia-se a este propósito o que Blanchot escreve numa passagem sobre Mallarmé: «L’espace poétique, source et «resultat» du langage, n’est jamais à la manière d’une chose; mais toujours, il s’espace et se dissemine» (Blanchot, Le Livre à Venir, Paris, Folio, 1990, p.320).

(6) Por exemplo, é notório por vezes um cunho trágico em Cardôzo; além disso ele remete para o corpo e para a carne com uma possível sublimação destes através do verbo. Se bem que, por outro lado, não deixe de haver em Cardôzo um reenvio para uma espécie de celebração do corpo através da inscrição física que constitui a própria escrita. Por outras palavras, qualquer coisa como uma degustação (índice oral) erótica da palavra mediante o acto de escrever (índice escrito) numa interessante osmose entre escrita e fala. Ao passo que o mundo imaginal da tradição Sufi reenvia pela própria palavra para a coalescência entre a dimensão espiritual e a «imaginação criadora» (imagination créatrice). Enfim, diferenças, que as há e muitas, entre estes autores e Cardôzo, o qual se inscreve indiscutivelmente na atmosfera da poesia de tradição europeia. Mas o propósito deste estudo, tal como já foi dito, é outro.



18/09/09

Luís de Barreiros Tavares

Com leves acrescentos (três ou quatro linhas e uma nota de roda-pé) relativamente à versão publicada no Site da SLP. Também foram alteradas as referências dos nomes: em vez de "Motta Cardôzo", "Manoel Cardôzo".
Pela minha parte, assino "Luís de Barreiros Tavares" em vez de "Luís Tavares".

Texto publicado no Site da Sociedade da Língua Portuguesa (SLP).









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