quarta-feira, 30 de março de 2016

Fernando Echevarría: I. Luz, sombra e movimento II. Excursos | Estudo publicado na revista Nova Águia 17 | Por Luís de Barreiros Tavares





Fernando Echevarría: I. Luz, sombra e movimento II. Excursos

                                 
                                    Luís de Barreiros Tavares






                                                *                                                                                             

Luís de Barreiros Tavares, "Fernando Echevarría: I. Luz, sombra e movimento II. Excursos", Revista Nova Águia, nº17, 1º semestre, 2016, pp. 62-68, Zéfiro.


      
                                                                      I

                                        Luz, sombra e movimento


Esperamos a sombra.
A clara sombra e o lugar devido
às tuas mãos alçando-nos a taça
e o doce vinho.
Depois o sério movimento alarga
estar-se ouvindo,
por trás de ti extraviada,
a sombra que esperamos longa e larga
como pensar beber o último vinho.

Fernando Echevarría, A Base e o Timbre


A)A sombra, enquanto tema frequente na poesia de Fernando Echevarría, no seu sentido amplo e claro em relação à luz, é descrita num excelente ensaio do grande poeta António Ramos Rosa (1924-2013) citando alguns passos de um outro poema: “No poema Essa Sombra [do livro Sobre as Horas], o movimento parte do interior da sombra (do corpo) e espraia-se numa vasta felicidade cósmica («se nos abrir por dentro longas ruas // de respirar, enfim, grandes, abertas / - água de folhas, indefinível lua, / somente expostas, quase nem concretas»). Estes versos dão-nos a dimensão física da plenitude, uma sensação de presença, uma frescura total.” (“Fernando Echevarría – Entre movimento e imobilidade”, Incisões Oblíquas, p.108). Há uma relação entre a respiração, a luz e a sombra, movimento lento que abre para espaços amplos.
                                                    
B) Movimento, sombra e luz da «clara sombra» sugerem como que uma brisa suave que se ouve ou se escuta: “Depois o sério movimento alarga / estar-se ouvindo, / por trás de ti extraviada, / a sombra que esperamos longa e larga”. Mais uma vez o movimento amplo e sereno apela a um espaço-tempo poético, o qual por sua vez transmite serenidade. “ (…) a sombra e a luz comunicam entre si numa complexa trama espácio-temporal” (R. Rosa, op.cit, p.110). Assim, o movimento do corpo feminino como que se ouve no seu gesto, na deslocação de ar que este inscreve no espaço. Também o movimento físico em relação com a sua sombra sugere a lentidão de um movimento em câmara lenta. A lentidão calma do movimento no poema revela-se numa espera suave que o percorre, um sentido espácio-temporal; um mover devagar e de um vagar… dando lugar: “Esperamos a sombra”, “a sombra que esperamos longa e larga.”
Ainda um passo de Ramos Rosa a propósito dessa duração e vagar em Echevarría: “ … o presente do poema, mais que um instante, é um processo temporal em que a duração é sinuosa e enroladamente sucessiva. Num ritmo vagaroso, em que a substância de cada palavra é extremamente valorizada, o poema vai instaurando o lugar da presença ou de uma correspondência actual de diversos planos da realidade” (Idem, p.110).
Nesta brandura do esperar (“Esperamos a sombra”), o pensar, por seu turno, enquanto suspensão calma, estrutura o sentido do poema como génese de um espaço-tempo de serenidade e meditação.

C) A sugestão da sombra, do ar e do corpo feminino em movimento apelam a uma respiração plena numa atmosfera ampla mediterrânica. Assim, os efeitos da luz e da sombra, do sol e da claridade ampla em muitos outros poemas marcam-se certamente com a influência do Mar Mediterrâneo banhando a costa da Argélia e de Argel, a sua capital, onde Fernando Echevarría viveu alguns anos – Argel apelidada Alger la Blanche (ver Parte II: Excurso pictural).  
A transparência, entre outros efeitos a ela análogos, releva deste jogo luz-sombra. O poeta e ensaísta Fernando Guimarães, no seguimento de uma interessante análise ao livro de Echevarría A Base e o Timbre, encontra alguns termos relacionados com a luz e a sombra: “A simples leitura desses poemas mostra que há neles duas palavras que, de certo modo, os saturam: luz (à qual associaríamos o adjectivo luminoso e as formas do verbo iluminar) e sombra. Acrescente-se ainda que – pelas suas incidências significativas – nos é dado aproximar de luz outros termos que ocorrem frequentemente, como, por exemplo, manhã (ou madrugada, madrugar, amanhecente, matutino), cristalino, transparência (ou transparente), cintilar (ou cintilante), etc., e, por sua vez, de sombra o verbo nublar” (“Os «conceitos puros» em Fernando Echevarría”, A Poesia Contemporânea Portuguesa, p.28).

D) O elemento “vinho” alia poeticamente as atmosferas criadas e os cinco sentidos: 1) o paladar (“ e o doce vinho”); 2) o olfacto associado ao paladar; 3) o ouvido (“estar-se ouvindo”); 4) a visão (a sombra-luz de “A clara sombra”); 5) o tacto (“… o lugar devido / às tuas mãos…”). E os movimentos dos corpos (“…o lugar devido às tuas mãos alçando-nos a taça”).
O vinho encontra-se igualmente investido de erotismo, pois serve o amor entre homem e mulher: “às tuas mãos alçando-nos a taça” / (…) por trás de ti extraviada, / a sombra que esperamos longa e larga / como pensar beber o último vinho.”
                                                      
E) Noutro plano, o ritmo e a cadência do poema produzem um efeito curioso em que o trabalho de leitura do leitor não faz esquecer o trabalho de escrita do escritor, sem que ambos se confundam numa identificação acrítica. O poema sugere múltiplas possibilidades nos planos do sonho e do imaginário sem a eles se limitar, na condição, precisamente, de que estes também emergem da força do sentido da palavra no trabalho de escrever.
Uma certa frieza e mera abstracção que possam eventualmente ser atribuídas, sem mais, à sua obra, só revelam uma perspectiva redutora na forma como se entende a poesia. Precisamente essa dimensão abstractiva em Echevarría retira um certo facilitismo declamatório, imprimindo, pelo contrário, uma leitura mais impactante e pensante. Dimensão aliada ao ritmo pausado (“vagaroso”, vj. R. Rosa) e a muitos outros aspectos, como as dimensões filosófica e de pensamento constituindo o seu poetar.
Com efeito, no prefácio à Obra Incompleta de Echevarría, Maria João Reynaud não só se refere aos temas da sombra e da luz, como também a uma certa abstracção: “Daí que em Uso da Penumbra, o leitor experimente a sensação de estar perante um livro total: um livro onde a tensão intrínseca entre a luz e a sombra, ou o excesso e a carência, se resolve numa espécie de transparência enigmática, em imagens analógicas de potencial abstracto” (p.23).

F) Lembremos que Echevarría escreveu livros de poesia cujos títulos são Introdução à Filosofia (1981), Fenomenologia (1984), ou ainda o último publicado até à data: Categorias e outras Paisagens (2013).
Ainda sobre A Base e o Timbre encontramos este passo de Fernando Guimarães: “O desenvolvimento da poesia ao longo de um espaço como este acaba por confinar, como já disse, com um sentido muito especial de abstracção e depuração. É o que particularmente ocorre em Introdução à Filosofia (1981) e Fenomenologia (1984). Não se recusa à poesia o que poderíamos, com maior ou menor rigor, designar por um conjunto de filosofemas, muitos deles provenientes da tradição filosófica tomista ou daquele «regresso às coisas» em que os fenomenologistas, na linha dos ensinamentos de um Husserl, tanto se empenharam.”
Em Fernando Echevarría a referência à Fenomenologia supõe uma condição prévia de leitura” (Op. cit., p. 29).

G) Por outro lado, em Fernando Echevarría as imagens, emergindo da escrita, como que nela se rebatem, convertendo-a, num duplo movimento, enquanto outra e nova condição de imaginário, mas também de presença (“sensação de presença”, “presente do poema”, “lugar da presença”, Ramos Rosa). Como é possível? Leia-se, por exemplo, este belíssimo passo de Echevarría no seu livro Figuras: “Escrevemos docemente. Se a figura / sobe de estar tão funda a essa mesa / é que escrever se lembra. E só da altura / de se lembrar percorre a linha acesa // a ponta de escrever, que traça a pura forma de rosto (…)”
Aqui podemos escutar alguns ecos e ressonâncias com a poesia interseccionista de Fernando Pessoa ortónimo no seu poema “Chuva Oblíqua” (1914): “A grande Esfinge do Egipto sonha por este papel dentro / Escrevo – e ela aparece-me através da minha mão transparente. / E ao canto do papel erguem-se as pirâmides…// Escrevo – perturbo-me de ver o bico da minha pena / Ser o perfil do rei Quéops… / De repente paro … (…)”.
Por assim dizer, naquele duplo movimento produz-se uma nova impressão e experiência do que é a escrita. Como se produz? Precisamente quando a escrita assenta, digamos assim, sobre si mesma, numa ins-crição, entrecruzando-se a materialidade e o sentido, despontando outra compreensão do espaço poético.
Com efeito, cria-se também nesta espécie de assentamento da escrita como que uma ressonância (no plano da voz e da escuta) e uma reverberação (no plano da luz-sombra, do reflexo e da visão).
                                                       
H) Daqui decorre simultaneamente um processo de abstracção poética transfigurando-se tanto as imagens, numa estranha transparência e esquematismo em movimento, quanto o próprio sentido do que se entende por inscrição que constitui o trabalho de escrever.
Trabalho de escrever, quer no seu plano semântico, quer na plena acepção de matéria da escrita (traços, espaços brancos-papel, tinta, bico da caneta, caneta, letras, palavras, frases, textos, punho, corpo, mesa, realidade envolvente ao leitor e ao escritor, etc.).
O sentido do concreto ganha uma nova e outra força com o carácter material e físico da escrita que tentámos analisar. Digamos até que também se altera a compreensão da realidade e do humano.

I)Talvez valha aqui lembrar o antigo e belíssimo passo de Píndaro (séc.VI a.C.) numa das suas Odes Píticas (VIII – “Para Aristómenes de Egina, Vencedor na Luta”; 446ª.C.): “Tu que existes exposto ao que os dias te trazem, o que é ser Alguém? O que é não ser Ninguém? O humano é o sonho de uma sombra.
Mas quando chega o esplendor dispensado por um deus, há uma luz brilhante entre os homens e a vida torna-se doce.”
                                                                              

                                                                II
                                              Excursos

Nota: O excurso é um desvio do tema, do assunto. Estes excursos, talvez também extrapolações, são pertinentes em nosso entender. Pois partindo dos temas centrais deste estudo sobre a poesia de Echevarría (Parte I, “Luz, sombra e movimento”), ventilam-se possíveis horizontes de pensamento, revelando o poder da poesia ou, por exemplo, do “pensamento-poema” (na expressão de Alain Badiou num estudo sobre Pessoa). Por outras palavras, a experiência da poesia e da arte no seu trabalho de pensamento abre novos caminhos trazendo-nos outras experiências não imediatamente esperadas. Novos modos de compreensão, coabitação, conhecimento e agir no mundo. Assim, durante a realização deste ensaio, não perdendo a ponte do movimento-poema, ocorreram e amadureceram um pouco algumas questões, principalmente no 3º excurso.
A propósito de obras mais extensas, como um tratado, Walter Benjamin (1892-1940) assinala a importância dos excursos: “na densidade ornamental […] desaparece a diferença entre desenvolvimentos temáticos e excursos “. Este passo de Benjamin (“Arquitectura de interiores”, in Imagens do Pensamento, Assírio & Alvim) foi recolhido do livro de Maria Filomena Molder O Químico e o Alquimista – Benjamin, Leitor de Baudelaire. Nele (cerca de 270 p.) a autora apresenta uma secção de 49 excursos em cerca de quarenta páginas. Diga-se que foi neste seu livro que encontrámos a feliz designação para esta espécie de apêndices, se assim se pode dizer. Tomámos a liberdade de o fazer neste breve artigo com três excursos.
                                      
                                          Excurso pictural

Tópico: “Assim, os efeitos da luz e da sombra, do sol e da claridade ampla em muitos outros poemas marcam-se certamente com a influência do Mar Mediterrâneo banhando a costa da Argélia e de Argel, a sua capital, onde Fernando Echevarría viveu alguns anos – Argel apelidada Alger la Blanche” (ver acima Parte I, C))

Seguindo o tópico e dando de passagem um exemplo pictural a propósito da luminosidade do poema em epígrafe de Echevarría (Parte I), ocorre lembrar a extraordinária luz mediterrânica captada nas belíssimas micro-pinturas a óleo sobre madeira que o grande pintor Henrique Pousão (1859-1884) realizou na ilha italiana de Capri. Precisamente, estas imagens pictóricas ilustram o que em termos de luminosidade, sombra e claridade analisámos na poesia de Echevarría:


                                                 ** 


Sobre esta pintura citamos um interessante passo de Carlos Silveira: “Com um olhar analítico e quase fotográfico, o pintor selecciona detalhes que lhe servem como pretexto para uma pesquisa formal sobre a luz. Pode ser um motivo tão trivial como um lance de escadas de uma habitação, onde o pintor regista a presença corpórea da luz nos degraus e muros da habitação caiada, criando uma notável filigrana de manchas lilases e de azul cinza [diríamos sombras claras] que dialogam com o azul profundo do céu meridional.
Ou ainda a respeito de uma outra pintura do mesmo ano (“Rua de Capri”, 1882), aludindo à frescura e claridade das sombras e suas relações com a luz: “Interessa-lhe traduzir os efeitos de uma luz aberta e mediterrânica sobre as superfícies estáveis da arquitectura de Capri: num dos melhores estudos da série, um jorro de luz em primeiro plano introduz a presença concreta de um portão verde, que fecha o ponto de fuga do nosso olhar, enquanto de cima uma luz filtrada faz-se sombra [diríamos de novo “sombra clara”] nos alçados laterais das habitações, densificados em tons de ocre”.[1]






                                                                                             ***



                                  Excurso fenomenológico

No poema Essa Sombra [do livro Sobre as Horas], o movimento parte do interior da sombra (do corpo) e espraia-se numa vasta felicidade cósmica («se nos abrir por dentro longas ruas // de respirar, enfim, grandes, abertas / - água de folhas, indefinível lua, / somente expostas, quase nem concretas»). Estes versos dão-nos a dimensão física da plenitude, uma sensação de presença, uma frescura total.” (“Fernando Echevarría – Entre movimento e imobilidade”, Incisões Oblíquas, p.108) (Parte I, A))

 Dir-se-ia que a sombra, «a clara sombra» em Fernando Echevarría, tem alguns ecos com a «sombra branca» de que fala José Gil. A par da citação acima de Ramos Rosa (abrindo a Parte I, A)), a seguinte passagem do livro A Imagem-Nua e as Pequenas Percepções - Estética e Metafenomenologia (p. 224) de Gil abre possibilidades de leitura do poema em epígrafe (Parte I): “A sombra branca estende-se por toda a paisagem, acompanha a imagem-nua. Funda a sua unidade, que é a unidade da coisa percebida. É o «elemento» do espaço da imagem, a sua matéria-imagem, o tecido «de que são feitos os sonhos». O espaço interno do corpo não é percebido nem perceptível; nem pensado nem, em si próprio, pensável. Não é tematizável uma vez que não tem determinações positivas. Faz todavia a imaginação mover-se: quando percebemos uma coisa e a sua percepção «remete para», esse movimento parte para um núcleo obscuro mas branco, de um interior impenetrado mas para sempre invisível da própria coisa. Assim, em toda a parte do campo perceptivo (espaço de reenvio), a sombra branca habita o visível.
Porque o corpo de outrem se dobra de um alhures, lança uma sombra sobre o mundo”.
Algumas linhas à frente José Gil prossegue com uma referência ao “Aberto” de Rainer Maria Rilke (1875-1926), estabelecendo analogias com a “sombra branca”: “Devemos entender o Aberto de Rilke como uma primeira divisão entre a luz e as trevas: e a visão permanece no limiar do Aberto, partilhando a partilha que o Aberto inaugurou. Cada coisa se oferece doravante à luz conservando para si, entretanto, a sua parte de obscuridade invisível” (p.225).


                                        
                                        
                           Excurso contemporâneo


Tal como o fogo violento incendeia uma enorme floresta
no cume da montanha e de longe se avistam as labaredas –
assim do bronze incontável daqueles que marchavam
subia pelo ar o fulgor resplandecente até ao céu.

(Homero, Ilíada, Canto II, 455-458)

“O progresso e a catástrofe são o anverso e o reverso de uma mesma medalha.”

Hannah Arendt


Peguemos no carácter pausado, “no ritmo vagaroso (Ramos Rosa, Parte I, B)) de certa poesia, no seu movimento, como a de Fernando Echevarría, apelando ao pensar. António Ramos Rosa, citando Echevarría, estabelece uma relação entre movimento e imobilidade, tal como o título do seu ensaio indica: “A chave do segredo cósmico, como diz Hans Urs von Balthasar[2] na sua Liturgia Cósmica, é o movimento ou mais exactamente, a relação entre a imobilidade e o movimento, cujo equilíbrio constitui a essência do ser criado. A poesia de Fernando Echevarría é percorrida por movimentos que tendem à identificação com um espaço originário (que pode ser o espaço mais familiar recuperado pela experiência poética). Por vezes, os movimentos interpenetram-se («atravessarmos o vento de uma rua / sentindo-nos ser atravessados») ou tendem a fundir o olhar e a distância («Que braço a inventar fica mais perto / de sermos a pupila e a distância»), mas quase sempre esses movimentos conduzem à imobilidade, ao vazio, ao silêncio, ao sono, ou seja, a algo anterior, originário, que é o alvo pré-reflexivo desta poesia que procura o fundo inicial («sentindo-nos abertos / fundos de casa», «em direcção a um campo de fundura / a que talvez alguém chamará rasto»)”(op. cit., “Fernando Echevarría – Entre movimento e imobilidade” p. 108).
De facto, nesta perspectiva, não há assim uma tão acentuada dicotomia ou bipolarização entre movimento e imobilidade (movimento e estado de repouso). Por vezes, limitamo-nos a um mero registo terminológico, que é necessário, mas deverá no entanto apelar à própria reflexão do que é referido e significado pelos termos na sua articulação. Ora, repousar, é um “tornar (re) a pousar” (re-parar, estacionar). E o repouso será um voltar, um tornar ao pouso (poiso). Aliás, sem nos alongarmos muito em etimologias, “pousar” releva do latim “pausar”, “pausa”, donde o carácter “pausado” e pensado que referimos no poema. Por outro lado, o “re-parar” não é senão um re-movimento, como o atesta, por exemplo, a expressão “sono reparador”, renovando a energia física e psíquica, com todas as implicações biológicas que isso acarreta, etc., reenviando para o sentido de “restauro”…
Por isso também, num regime de liberdade com a poesia, na imobilidade há movimento, e reciprocamente. Não será o “movimento”, o “mover”, um “parar”, por seu turno, a imobilidade? Sem dúvida que importa manter a distinção entre os dois termos e noções de “movimento” e “imobilidade”, daí a pertinência de cada um na linguagem. Mas perceber que na complexidade da sua distinção - empregando a terminologia de Edgar Morin -, há uma articulação, uma outra-dupla articulação, digamos, reformulando os seus sentidos. Edgar Morin, na sua proposta epistemológica da complexidade (abarcando as ciências, físicas, naturais e humanas), assinala – a par das relações “complementares, concorrentes e antagónicos” – a importância da diferença entre “distinção” e “disjunção” (oposição). Enfim, trata-se também, segundo Morin, de requestionar as oposições “binárias” de várias noções reformulando um outro olhar sobre elas. Noções como as de “unidade” e “diversidade”, ou as de “ordem” e “desordem”, já que também estas últimas apelam a um amplo leque de questões nos nossos dias, como, por exemplo, a de nos interrogarmos sobre o que é a Ordem ou a Nova Ordem Mundia[3]l.
Mas leia-se a seguinte passagem de Morin sobre a relação ordem / desordem no pensamento da complexidade no seu livro Ciência com Consciência: “A necessidade de pensar conjuntamente, na sua complementaridade, na sua concorrência e no seu antagonismo, as noções de ordem e desordem, põe-nos muito exactamente o problema de pensar a complexidade da realidade física, biológica e humana. Mas, a meu ver, para isso é necessário conceber um quarto olhar, um novo olhar, isto é, um olhar dirigido para o nosso olhar, como muito bem disse Heinz von Foerster[4]. Temos de olhar para o modo como concebemos a ordem, e de olhar para nós mesmos olhando para o mundo, isto é, de incluir-nos na nossa visão do mundo”(itálicos nossos)[5].
É que na bi-polarização ou oposição extremada, os dois pólos confundem-se (ou fundem-se) porque não são compreensivamente articulados. Mas, deste modo, ao mesmo tempo separaram-se (ou cindem-se), e vice-versa.
Não será a relevância do movimento, da aceleração e da ultrapassagem, aliados a um conceito monolítico de progresso nos nossos dias, precisamente o esquecimento do sentido pleno e genuíno de “repouso” e de “parar”? Não é isso que dá sentido às expressões correlativas: “parar para pensar”, “é tempo de pensar”? Não será o ímpeto actual da vida nas nossas sociedades (que supostamente não param) o que efectivamente provoca panes, paragens efeitos de bloqueio, acidentes, imprimindo imperceptivelmente um revés no ambicionado progresso dito civilizacional, progresso (pro-gressus) que mais não é do que um regresso (re-gressus) sem se dar conta? Sem dúvida, um dos problemas que vivemos na “era da técnica”.
Daí as catástrofes ecológicas, industriais e naturais[6], as alterações climáticas (EUA e China principais implicados), os efeitos terroristas aliados a perversos mecanismos – ilocalizados ou deslocalizados – de “Rede” na era digital; as altas corrupções que alastram por todo o Globo, a desordem europeia com os fluxos de refugiados, as guerras dispersas no Globo, “Fragmentos da Terceira Guerra Mundial”, segundo o Papa Francisco, após os atentados de Paris 13/11/2015; o triunfo voraz do capitalismo liberal, ou capitalismo puro e simples enquanto religião do trabalho e do dinheiro (Walter Benjamin)[7]. Esta aparência de presente imediato e de actualização permanente deixa-nos paradoxalmente ultrapassados pelos acontecimentos[8]
A tradição do Ocidente, partindo do Logos grego, relevou o “movimento” desde Heraclito (Panta rei – tudo flui), Aristóteles (Física), Galileu, Iluminismo (Aufklärung), Positivismo, etc… resultando na grande civilização planetária, global, científica e tecnológica que, não obstante os seus aspectos cruciais e extraordinários no caminho do humano, parece descambar no que é a ultrapassagem pela ultrapassagem, o que, se não redunda paradoxalmente na paragem ou no recuo, retumba paroxisticamente na catástrofe do Grande Acidente[9]. Importa pois, um certo contrapeso da poesia… e, diríamos mesmo, de um certo Oriente.








Post scriptum:
E ver vinha de ver, e se movia
por um agora de alma
onde acender-se a língua
iluminava
a base que pensarmos mais ainda
nos pensava.

Fernando Echevarría, A Base e o Timbre, 1974.


Imagens:

*Desenho - Retrato de Fernando Echevarría, por Flor Campino.
**Pintura de Henrique Pousão, "Muro e escadas", óleo sobre madeira, 36,5 x16 cm - Capri 1882 (Museu Nacional de Soares dos Reis – Porto).
***Pintura de Henrique Pousão, "Rua de Capri", óleo sobre madeira, 36,5 x16 cm - Capri 1882 (Museu Nacional de Soares dos Reis – Porto).


Referências:

1.
Echevarría, F., Sobre as Horas, Lisboa, Livraria Morais Editora, 1963.
Echevarría, F., A Base e o Timbre, Moraes Editores, Fevereiro 1974.
Echevarría, F., Media Vita, Porto, Brasília Editora, 1979.
Echevarría, F., Introdução à Filosofia, Nova Renascença, 1981.
Echevarría, F., Figuras, Porto, Afrontamento, 1987.
Echevarría, F., Obra Inacabada, Pref. Maria João Reynaud, Porto, Afrontamento, 2006.

2.
Badiou, A., Petit Manuel d’Inesthétique, Paris, Seuil, 1998.
Ferreira, A. Gomes, Dicionário de Latim-Português, Porto Editora.
Gil, J., A Imagem-nua e as pequenas percepções - estética e metafenomenologia, trad. M. S. Pereira, Lisboa, Rel. D’Água, 1996.
Guimarães, F., A Poesia Contemporânea Portuguesa, 3ª edição, Vila Nova de Famalicão, ed. Quasi, 2008.
Homero, Ilíada, trad. Frederico Lourenço, Lisboa, Biblioteca Editores Independentes / Cotovia, 2007.
Kirk, G.S., & Raven, J.E., The Presocratic Philosophers, Cambridge, University Press, 1975.
Molder, M. F., O Químico e o Alquimista – Benjamin, leitor de Baudelaire, Lisboa, Relógio D’Água, 2011.
Morin, E., Ciência com Consciência, trad. Maria Gabriela de Bragança, Lisboa, Europa-América, 1984.
Nancy, J.-L., A Equivalência das Catástrofes – Após Fukushima, trad. J. Leandro Rosa, Ed. Nada, 2014.
Pessoa, F., Obra Poética, Poesia-I 1902-1929, Intr. e Org. António Quadros, Lisboa, Ed. Europa-América, 1985.
Píndaro, Odes Píticas para os Vencedores, trad. do grego e notas António de Castro Caeiro, Lisboa, Prime Books, 2006.
Rosa, A. Ramos, Incisões Oblíquas, Estudos sobre poesia portuguesa contemporânea, Lisboa, Caminho, 1987.
Rilke, R. Maria., Poemas, As Elegias de Duino e Sonetos a Orfeu, Prefácio, selecção e tradução de Paulo Quintela, Porto, Ed. O Oiro do Dia, 1983.
Rodrigues, A., Henrique Pousão, Lisboa, Inapa, 1998.
Silveira, C., Liberto da Academia e perseguindo a luz: o percurso fulgurante de Henrique Pousão: http://www.dezenovevinte.net/artistas/pousao_cs.htm#_edn6
Virilio, P., L’accident originel, Paris, Galillée, 2005.











[1] Carlos Silveira, “Liberto da Academia e perseguindo a luz: o percurso fulgurante de Henrique Pousão”


[2]  Foi um sacerdote, teólogo e escritor suíço (1905-1988). É considerado um dos mais importantes teólogos do século XX.
[3] Ou “A desordem mundial” (Adriano Moreira, DN, 09/03/2016).
[4] Heinz von Foerster (Austríaco-Americano - 1911-2002), um dos arquitectos da cibernética, foi influenciado pelo Círculo de Viena e por Wittgenstein, relacionando a Física e a Filosofia. “Detestava ser categorizado como pertencendo a uma determinada disciplina académica”: https://en.wikiquote.org/wiki/Heinz_von_Foerster
[5] Edgar Morin, Ciência com Consciência, p. 72.
[6] vj. o muito interessante livro de Jean-Luc Nancy, A Equivalência das CatástrofesApós Fukushima:”Não se julgue que a conjunção produzida em Fukushima é excepcional. Não o é certamente no Japão, como também não o é à escala mundial. É certo que um abalo sísmico e uma central nuclear frágil não se encontram frequentemente, mas em todo o lado onde se manipula a energia nuclear estão presentes riscos com dimensões pouco ou nada calculáveis” (p. 44).
Ver também a entrevista a Giorgio Agamben (“Deus não morreu. Ele tornou-se dinheiro”): "O capitalismo é uma religião, e a mais feroz, implacável e irracional religião que jamais existiu, porque não conhece nem redenção nem trégua. Ela celebra um culto ininterrupto cuja liturgia é o trabalho e cujo objecto é o dinheiro": http://www.ihu.unisinos.br/noticias/512966-giorgio-agamben
[8] P. ex., quanto à crise que hoje se vive no Brasil a todos os títulos: “Os humoristas sentem-se ultrapassados pela realidade, acham que ela é ainda mais absurda dos que as suas caricaturas” (“Brasil para rir, pensar, desinquietar” - Jornal Público, 27/12/2015).
[9] Um livro a ter em conta: Paul Virilio, L’accident originel; autor conhecido pelo seu tom alarmista:”Além da ética, a bio-ética inquieta-se hoje, parece, com os riscos maiores que as descobertas «revolucionárias» das biotecnologias fazem correr a espécie humana, conduzindo amanhã à ameaça de uma espécie de HIROSHIMA CELULAR, onde a bomba genética devastará desta vez a própria forma do Homem, como a bomba atómica tinha, em seu tempo, devastado o horizonte do seu meio envolvente.”
“A este título, as ameaças sobre a vida não faltam, entre a procriação medicamente assistida, a clonagem, ou ainda o direito à morte assistida e a eutanásia, sem falar das armas biológicas. Tudo está a postos para o Grande Acidente do Livro da Vida” (p. 79).