quarta-feira, 14 de março de 2012

Marcel Duchamp: alguns apontamentos e questões em aberto





Duchamp: Alguns apontamentos e questões em aberto.

Foi nas aulas de José Gil que aprofundei o meu interesse pela obra de Duchamp.


a) Mas realmente o que é que acontece, o que é que se está passar, quando o objecto é descontextualizado e recontextualizado? Que jogos de sombra e de luz devêm (vj. textos de José Gil a propósito do desenho e o seu jogo com a pintura em Jorge Martins in Escritos sobre Arte e Artistas)? Por um lado, eis a imagem da ausência apelada (sombra?) pelo lugar vago deixado pelo objecto na 'descontextualização'(sobre o jogo sombra/luz vj. a mensagem deste blog sobre Tàpies). Por outro lado, essa imagem da ausência é também suscitada pelo lugar preenchido (ocupado) pelo objecto 'recontextualizado' (luz?). Mas sombra e luz imbricam-se, fundem-se sem deixarem de ser ‘luz’ e ‘sombra’. Imagem da presença (do objecto) em relação com a imagem da ausência (do objecto). Quer dizer, a imagem da ausência encontra-se implicada com a imagem da presença. A imagem da presença (recontextualização) retroage sobre imagem da ausência (descontextualização). Em suma, oscilação retrojectiva-projectiva. Jogo de memória, difícil de descrever… Que objecto é este?

b) Há aqui uma desfocagem? Neste sentido, não haverá um entrelaçamento de luz e de sombra? Já não só um entrelaçamento de nome e de verbo (vj. Crátilo de Platão). Sendo assim não haverá um novo e outro tipo de pregnância real-linguagem a partir dos efeitos contemporâneos de luz e sombra na arte, por um lado, e nas novas tecnologias, por outro? Mas debruçemo-nos, por agora, sobre a arte contemporânea. Embora, objectos artísticos e técnicos estejam implicados (vj. p.ex Leonel Moura). Em que dimensão, em que dimensões nos encontramos já?

c) A frase "deslocamo-nos para regiões mais verbais" de Duchamp. O conceito (urinol), em suma, o verbal foi subvertido e transmutado pelo objecto por força do efeito da arte no início do século XX (por exemplo Malevitch e Duchamp, autores em foco neste estudo que a meu ver são nossos contemporâneos). Provavelmente é discutível a aproximação conceptual / verbal, mas ensaiemo-la um pouco. Objecto que, no seu jogo de 'descontextualização' e 'recontextualização', re-colocou em questão – levantando-a - e deixando-a em aberto as noções de 'modelo', 'cópia' e 'simulacro' (vj. estas noções no Sofista de Platão) (1). Toda uma doxa de determinações ou uma doxa da filosofia, como diria Deleuze, são varridas. Porquê? Porque, precisamente, nesse mesmo movimento estes conceitos sofrem uma qualquer mudança cronológica que altera precisamente o movimento tradicional e institucionalmente tido (suposto) como cronológico. E isto perpassa o tema da descrição e da fenomenologia. Provavelmente o relogismo (horlogisme) duchampiano terá aqui pertinência. Mas não nos sentimos de momento habilitados a ir mais longe. Talvez mesmo algo mude ao nível da lógica no seu carácter intemporal (não cronológico). Aquele objecto já não é aquele objecto. Ou antes: é e não é
Na descontextualização e na recontextualização produziu-se um efeito-de-real nesse jogo de des-locação, oscilatório e fantasmal da imagem da ausência e da imagem da presença (vj. supra) mediante efeitos de luz e de sombra implicados um no outro. Conceito e objecto colaram-se, deram a volta um ao outro, e, descolaram-se, tomando ‘formas de forças’ diversas das determinações tradicionais que os delimitam.

d) Sujeito e objecto não fazem sentido na medida em que o ‘antes’ e o ‘depois’ cronológicos se modificaram. Mas que mudança é esta? Digamos que há uma alteração cronológica do próprio cronológico. O que implica por sua vez a mudança de critérios do que é da ordem do temporal, (temporal supostamente acima na hierarquia metafísica do tempo relativamente ao cronológico). Tornando-se doravante o temporal implicado de maneira inovadora no processo cronológico; o cronológico deixa, assim, de ser tão linear como era suposto pensá-lo até então.

e) Uma das possíveis perspectivas para agenciar esta alteração é a seguinte: um efeito-de-real operado pela luz e sombra reais (quanto à luz, não nos interessa aqui a constante na sua velocidade: 300.000 km/s) nos seus movimentos perceptivos provocados pelas criações artísticas de um lado, e pela técnica, de outro.
Efeito-de-real que agora se antecipa aos pretensos conceitos que outrora se supunham antecipar-se-lhe - em Platão as coisas participavam (metexis) das ideias. Este efeito de real, hoje, profetizado por Malevitch e Duchamp, atravessa (retroactivamente?) os antigos conceitos segundo novas formas de forças alterando-os e atravessando-os, por assim dizer, por força das novas formas de percepção (2). Os conceitos eram elucidativos das chamadas coisas mesmas e, no limite, estas a eles adequadas (os ta auta platónicos; não os conceitos deleuzianos; sobre conceito em Deleuze vj. Gil, J., O Imperceptível Devir da imanência). Evidentemente que conceito tem origem latina (concipio, conceptus…), e não é rigorosamente correlativo do eidos platónico. Mas tentemos fazer aqui uma redução ao termo ‘conceito’ invocando o carácter conceptual de certa arte contemporânea.

f) tornaram (com o tempo?) abstractos mas coisificados (concretizados). Quer dizer, coisificados de tão abstractizados (vejam-se as advertências de Nietzsche, p.ex. em Acerca da Verdade e da Mentira). Porém, sem o devir-outra abstractização conceptual do novo tipo de objecto: o readymade. Eis o que nos traz o ready-made enquanto algo novo (que todavia se pode traduzir por 'já feito'; 'já fabricado'). Ready-made com todas as potencialidades perceptivas que ele implica na sua paradoxal actualidade. Evidentemente que a própria noção de conceito vai mudando. Mas por ora não temos fôlego nem é o momento mais indicado para analisar estas questões.

g) Hoje vivemos algo que passa pela interacção da mutação lenta de um processo com a súbita mutação deste, num duplo movimento; mutação esta que, na sua complexidade, é como que um avesso daquela, e reciprocamente.

h) Os conceitos eram tidos como as próprias coisas. Mas pretensamente ressalvados da interferência do objecto das percepções e das sensações (o tal processo de separação, de oposição sensível/inteligível que foi sofrendo mutações de pontos de vista ao longo dos séculos). Todavia, com o ready-made, o objecto, desta feita, subverte o conceito pela e na percepção que nesse próprio movimento (descontextualização e recontextualização) muda as nossas formas de percepção do real e do objecto. O tempo joga aqui inevitavelmente.

i) A percepção atravessa o processo criativo do objecto, através da ideia (conceito) e do acaso que determinarão o momento? Há qualquer coisa de virtual que subverte o conceito e o objecto por um-não-sei-o-quê de percepção e de efeito perceptivo sobre o real transmutando-os num devir-outro-conceito e num devir outro-objecto. Daí talvez a pertinência de, no acaso, se poder ainda falar de conceito e de objecto quando eles mudam?

j) Trata-se de um objecto conceptual? Mas que é um conceito? E sabemos que os ready-made de Duchamp foram a mola para a futura arte chamada 'conceptual'. Porém, aqueles, os ready-made, não se situam no plano dos ta auta ( as ‘coisas mesmas’, as ‘próprias coisas’ ideadas, eidos, eide, platónicas, e a seu modo abstractizadas). Mas, usando ainda um binómio da tradição, poderemos afirmar que se entra num plano outro do sensível (aistheton) e num plano outro do inteligível (noeton)?

l) E no entanto, qualquer coisa de totalmente outro devém. Não o 'outro' que subverte o ‘mesmo’, quer dizer, o outro da ordem do simulacro. Simulacro discursivo; e é importante este ponto, pois o simulacro de maior risco, segundo Platão, é o da palavra (discurso, logos). Simulacro que se insurge no logos, e também no pensamento, dianoia. Dianoia que, como se sabe, tem, segundo este grande pensador grego – quer se queira quer não - algo de comum com o lógos. Este simulacro (phantasma) é, pois, recusado por Platão (V.Sofista).

m) Ensaiando aqui o esboço de um estudo comparativo, se assim se pode dizer, dá a impressão que Duchamp opera uma estranha reviravolta com o simulacro e com a simulação. Digamos que ele converte o ready-made em simulacro coisificado (vj. descontextualização, recontextualização). Ao mesmo tempo que, paradoxalmente, o converte em conceito (o objecto devém conceptual), ele é ideado, digamos. Por outras palavras, abre-se um leque de possibilidades e de novos critérios para o que é da ordem do conceito. Seria interessante estudar que tipo de trânsito novo decorre entre os antigos 'modelo' e 'cópia' (herdados de Platão), passando pelo simulacro. Um exemplo interessante, o Objet-Dard de Duchamp entretecido de modo complexo com o conceito, o objecto e o simulacro, no seu jogo fonético com ‘objet d’art’. Quer dizer, palavra, objecto e sentido (conceito?) jogam de modo imprevisível de tal maneira que escapam às determinações categoriais da tradição. Se bem que Platão no Crátilo faça jogos de palavras, mas cremo noutro contexto.

n) Portanto, ocorre um novo tipo de coisificação do conceito. Mas, num outro sentido, esse conceito coisificado - segundo a nova modulação operada pelo objecto conceptual que é o ready-made - é paradoxalmente des-coisificado,na medida em que, precisamente, o ready-made o retira, p.ex., da coisificação (ta auta), paradoxalmente também agora, teorética tradicional e hoje mesmo doxal (que, por seu turno, do ponto vista platónico era des-coisificação, uma vez que se tratava de ‘ideia’ abstracta: Idea, eidos, eide...) Esta descoisificação se foi fixando com o tempo da tradição (desde há cerca de 2500 anos ao tempo de Platão) numa segunda forma de simulacro insuspeitável. Assim, conceito des-coisificado que acaba por ser coisificado (daí, como dissemos acima, o próprio, as coisas próprias: as ideias, os eide são, em Platão, as coisas mesmas – os ta auta, em suma, são as coisas).

o) Porquê um plano outro do sensível? Porque através da 'anestesia' e do 'não-retiniano' (Duchamp) se entra no e pelo objecto num plano conceptual. Todavia, no mesmo movimento, na dobra, na curvatura deste plano conceptual (o ‘inteligível’, segundo a perspectiva da tradição) abre-se um outro plano do sensível e do objectal, agora no e pelo novo conceito.

p) O readymade entrou na história da pintura em vez de na da escultura. O readymade subverteu toda uma tradição herdada de Platão fundada no mimético e no representacional (vj. República de Platão). A pintura era imitação de imitação. O plano conceptual modifica-se por força da própria imagem pictural que, entrando no espaço tridimensional (descontextualização, recontextualização), altera as próprias noções de objecto, de referente mimético e de imagem pictórica. Então, o conceito modifica-se por ele mesmo. Porquê? Por outras palavras, porque, retroactivamente, ele mantém o nexo com a imagem pictórica que, por seu turno, se abriu ao espaço tridimensional através do objecto já modificado (e assim, já de alguma maneira conceptualizado), alterando-se os próprios critérios de referente e, por arrastamento, ou por tabela, se quisermos, o próprio conceito de pintura.


Luís de Barreiros Tavares

20/11/2008 (com uma ou outra ligeira alteração)

A propósito da questão do reenvio do readymade para a pintura.

Suponhamos então que há um propósito de sugestão, digamos que virtual, de saída da representação (a representação do objecto) para fora da tela. Ora, o objecto referente do qual se procede à sua representação (o objecto representado) desloca-se também de si mesmo por via do movimento, do gesto da escolha de um objecto. Duchamp chega a inverter o objecto, como acontece com o urinol e a roda de bicicleta. Por outro lado, o objecto representado e a representação como que se fundem e se separam. Nestas condições não será fácil discernir o representado e a representação, pois os seus critérios e os critérios para os determinarmos se alteram entretanto. “Indiscernibilidade”, para empregar um conceito de Deleuze. A realidade e/ou real torna-se como que “quadro” por via desses movimentos, desse movimentos transitórios em intersecção. E a tela, bem como o conceito de quadro, por sua parte, alterando-se, altera o real. A realidade, todavia, permanece sem se reduzir ao momento transitório de ser “quadro” (passar por se quadro). Pelo contrário, não será essa certamente o propósito de Duchamp. A saber, o real, a realidade não passam a limitar-se metaforicamente a ser “quadro”. Ou antes, a parte do real ou da realidade (noções que guardam a suas diferenças) em que consiste o “quadro” ou “tela pintada” (como elementos virtualmente parciais do real ou da realidade) na condição de supormos a dita saída virtual, senão metafórica, da pintura para fora do quadro, será mais um momento transitório para outros sentidos do mundo. Convém também analisar a questão da descontextualização com o readymade com o exemplo dado nas linhas logo acima. Com efeito, convém ter em conta a questão da saída virtual do objecto da tela com a questão da saída do objecto readymade do seu contexto habitual e sua recontextualização. Os critérios de objecto representado, o referente, a representação do objecto, planeidade da tela e tridimensionalidade do real alteram-se nesta intersecção estruturando um novo estado de coisas.



Se rodarmos uma roda de bicicleta, observamos que, consoante as variações de aceleração, o efeito perceptivo da rotação varia ao ponto de por vezes sermos induzidos a pensar e/ou a percepcionar (?) que a roda gira em direcção oposta. Isto vê-se nas jantes modernas niqueladas das rodas dos automóveis ou até nas rodas das carroças nos filmes do Far West, p.ex. Variando estes efeitos ao ponto de os raios das rodas, neste caso os da bicicleta, parecerem por vezes parar ou até oscilar numa e noutra direcção.

No entanto, referimo-nos aos raios da roda da bicicleta... E estes, oscilam, detém-se, invertem a direcção enquanto raios reais na sua virtualidade de movimento.

Guinamos assim da ilusão perceptiva para a percepção de que, precisamente, essa ilusão de percepção é ainda uma ilusão? Talvez...


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Cortesia Youtube:

http://www.youtube.com/watch?v=U-p4o6p608o



Cortesia Youtube:

http://www.youtube.com/watch?v=uzHXus7dQlw&feature=results_main&playnext=1&list=PL32603D37697D0F60


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"7.

[...] Dans le temps un même objet n'est pas le même à 1 seconde d'intervalle.

Quels rapports avec le principe d'identité?"


"11v.

Quand la fumée du tabac sent aussi de la bouche qui l'exale, les 2 odeurs s'épousent par infra mince (infra mince olfactif)."


"18. La différence (dimensionelle) entre 2 objets faits en série [sortis du même moule] est un infra mince quand le maximum (?) de précision est obtenu."


in Duchamp. M., Notes, Paris, Champs, Flammarion, 2005.


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