quinta-feira, 30 de maio de 2013

Possível texto-carta inspirado nalgumas leituras do livro "Experimentum Humanum" de Hermínio Martins. Algumas questões que ficam no ar. 'Enhancement', posteridade, etc.















Advertência. Este texto já não é propriamente uma carta. Ampliou-se após a versão definitiva como carta. Continua em elaboração.

L.T. : Gostaria de deixar-lhe uma passagem da entrevista que fiz ao Eduardo Lourenço (01/06/2012) que me parece ir de algum modo ao encontro das questões que estamos a debater e das que gostaria de colocar-lhe agora:

1. Eduardo Lourenço: (…) A crítica feita pela filosofia iluminista dos deuses em geral e do Deus em particular, no sentido da tradição religiosa depois do Cristianismo, deixou um vazio preenchido pela razão. Com esta segunda dose a partir da qual os homens tentam organizar o mundo segundo critérios racionais, com a ciência que por sua vez tem criações fantásticas. Parece que é a única coisa que nunca falhou até hoje, mas a gente não sabe que espécie de vitória é esta, o que vai dar daqui, não se sabe se estamos a fabricar monstros, não é? Que a gente nem imagina o que seja. Tanto pode ser efectivamente a conquista de uma sociedade com as coisas cada vez mais autónomas, mais racionais, capazes de dominar tudo o que nos cerca e... Mas também dominar os outros. E poderemos estar a criar um mundo em que a ideia de liberdade nem sequer tem lugar, desaparece...  
Luís Tavares. : A tal ausência? 
E.L. : Pois, por exemplo, as crenças de gerações, como as do Antero, e mesmo as da nossa [de Eduardo Lourenço] - lá fora terá sido de outra maneira -, haviam sido substituídas por outra crença, a crença no progresso, com provas. De facto a ciência [e a técnica] não tem que demonstrar nada porque está sempre a fabricar coisas. Mas a gente não sabe o que está a sair dali, a gente não sabe nada disso.  
L.T. : A biogenética, engenharia genética...  

E.L. : Exactamente. Estamos a entrar dentro do Santo dos Santos, não é? Portanto, estamos a fabricar uma nova humanidade... é possível... Ou, uma hipótese metafísica e um pouco ficcional do Saramago: "o mundo onde não se morre" [alusão ao livro de José Saramago, As Intermitências da Morte]. O Saramago dizia que era um mundo, mas não só, era um pesadelo. A humanidade passaria a ter problemas que a morte soluciona, por definição. O que será um mundo desses aonde as pessoas não morrem mais? O que é preciso fazer para os matar outra vez, para descobrir a morte? Ainda não estamos lá [risos]. Mas as pessoas têm o instinto da eternidade... toda a gente tem, vive-se disso, não se vive de outra coisa. Mas a ciência vai tornar possível  virtualidades. Nós supomos que a espécie humana já atingiu o limite das perfeições. Mas a gente não sabe. O que será o ano 5000? Ainda nem sequer passaram trezentos anos depois da Revolução Francesa e as modificações são tais, de tal ordem, que isto [o Mundo] já será irreconhecível daqui por um pouco de tempo. Portanto não temos ideia do Mundo. Mas nós temos a tendência a pensar - a considerar o Mundo, e não fazemos outra coisa - que o presente contém o sentido de todo o passado e antecipa de algum modo o futuro. Não é verdade. Não há antecipação. A imprevisibilidade...
L.T. : Ficamos um pouco cegos com o presente...?
E.L. : A imprevisibilidade. Nós vimos do futuro, não vimos do passado. Mas esse futuro a gente não sabe de onde vem. Ainda não o vimos. Quem podia imaginar que, depois dessas conquistas dos direitos humanos, etc., coisas como o holocausto pudessem existir? Não estava escrito em parte nenhuma. De forma que a maldade humana é capaz das coisas mais inverosímeis...
E de resto, o próprio holocausto foi possível já com os progressos da tecnicidade, se não não era possível liquidar tanta gente daquela maneira sem que ninguém se apercebesse no mundo. Portanto o progresso tem leituras ambíguas.

L.T. : Até se chamam "fábricas de morte", não é?
E.L. : Fábricas de morte. E numa nação que era uma das nações de ponta desse progresso científico. E os alemães já no século dezanove eram uma nação das mais adiantadas do mundo. (…)”

2. O Hermínio Martins diz a dado passo num dos vídeos “O egoísmo geracional … O que é que eu vou fazer para a posteridade quando a posteridade não faz nada por mim? Há pessoas que dizem isso.” Logo a seguir tece um comentário que ainda não me foi perceptível auditivamente. Não sei se tem a ver com questões de ordem sociológica.
Tenho consultado o seu livro e ainda não encontrei esta abordagem.
Por um lado esta perspectiva parece modificar a nossa concepção tradicional de imortalidade, uma vez que esta se encontra de algum modo relacionada com a posteridade. Pois, em geral entende-se o trabalhar, o viver para a posteridade como um trabalhar-viver para "depois da morte". Sem me poder alargar muito em argumentos, creio ser o que se tem feito ao longo dos tempos, desde que o homem é homem, como se costuma dizer, e é o que todos fazemos de uma maneira ou de outra, desde até ser lembrado pelo vizinho do lado. Nesse sentido, contamos que a posteridade faça algo por nós. Já com os nossos ancestrais havia o “duplo” que Edgar Morin estuda no seu muito interessante livro “O Homem e a Morte”. Curiosamente, o duplo, acompanhava paralelamente o vivo.
Mas, enquanto, por um lado, segundo aquela citação, a posteridade deixa de acontecer, deixamos de contar com ela, enfim, deixa de fazer sentido, por outro, ela parece tomar o lugar, digamos, do presente, da actualidade. Um certo futuro passa a tomar o lugar do presente. Precisamente uma certa hiperpresença intensificada pela aceleração, pela imediatez, por um certo fascínio da técnica cujos variados dispositivos nos levam a viver um espécie de futuro que já está aí. Por exemplo, ao nível da ciência, as linhas de fronteira entre a ficção científica e a ciência ficção encontram-se esbatidas, como, por exemplo, indicou no outro dia o Bragança de Miranda num encontro. 
Se esta permuta, este câmbio, esta troca entre presente e futuro - para não falar agora do passado -  se efectua, não será que poderemos dizer que se alteram os critérios ou o modo como o humano faz face ao que é da ordem do mortal e ao que é da ordem do imortal? Isto com todas as implicações teológicas, metafísicas, etc. – como o Hermínio Martins refere -, que subjazem a essas tomadas de posição.
É curioso Platão dizer no Górgias ( 493 a b) que de uma certa maneira já estamos mortos.
Para já uma tradução possível de uma edição francesa:
“(…)
Sócrates: Opinamos mal, portanto, ao dizer que aqueles que não têm nenhuma necessidade são felizes.
Cálicles:  Sim, pois partindo daí, as pedras e os mortos seriam muito felizes.
Sócrates: No entanto, mesmo seguindo a maneira pela qual a tens em conta, a vida é uma coisa bem estranha. De facto, pergunto-me se Eurípedes (133) não disse a verdade na seguinte passagem:
«Quem sabe se viver não é morrer,
E se morrer não é viver?»
E é possível que realmente nós estejamos mortos, como eu ouvira dizer a um sábio homem (134), que pretendia que a nossa vida actual é uma morte, que o nosso corpo é um túmulo e que esta parte da alma onde residem as paixões é de natureza a mudar de sentimento e a passar de uma extremidade a outra. (…)”

(133) No seu Polydos, fr.639 N.)
(134) Este sábio homem era provavelmente o pitagórico Filolau…
Platon, Gorgias, Trad. Émile Chambry, Flammarion, 1977. 

É curioso que este "passar de uma extremidade a outra " produz uma impressão de efeito de separação. Uma espécie de potência de estar e não estar, de ser e não ser, ao mesmo tempo, num lugar, num sentimento mediante as paixões que justamente reenvia etimologicamente para 'corte', 'cortar', 'separar'.
E Pessoa, na poesia: “cadáveres adiados que procriam”. Escutemos Heraclito no fragmento 62: "Imortais, mortais; mortais, imortais. A vida destes é a morte daqueles e a vida daqueles é a morte destes." (versão de Gerd A. Bornheim, Os Filósofos Pré-Socráticos, Cultrix, São Paulo). O mesmo fragmento na versão de George Steiner: "cada um deles vive na morte do outro, cada um deles morre na vida do outro" (A Poesia do Pensamento, Trad. Miguel Serras Pereira, Rel. D'Água, 2012, p.39). Ou ainda, como o Hermínio escreve: “(…) a Humanidade, o “Grande Ser” [alusão a um conceito de Comte] (o continuante de todos os seres humanos que já existiram ou existem agora) é composta maioritariamente de mortos (o que ainda é verdade)” (Experimentum Humanum, p. 414).
Evidentemente que isto é uma maneira de dizer, são maneiras de dizer. Por isso sublinhei "de uma certa maneira". Há que distinguir as coisas. Mas estabelecendo, por exemplo, um paralelo dos termos 'morte' e 'vida' com os de 'presença' e 'ausência', poderemos dizer que hoje, ao nível da hiperactualização, da hiperpresença  - mediante a imediatez dos media e do chamado 'tempo real', da 'aceleração', etc. -, dá-se uma ilusão de presença por força precisamente de tanta presença. Esta ilusão de presença manifesta-se, muitas vezes sem que nos demos conta, como ausência, pelo facto de a maior parte do tempo perdermos a noção de uma certa densidade temporal que permita, seja condição de possibilidade de intensificação do presente. Por isso dizemos hoje frequentemente que o tempo passa depressa ("como já passou um ano!"). Não quer isto dizer: "é como se não tivéssemos vivido, não nos dando devidamente conta do presente, ou, mais ainda, de um certo sentido do tempo, que é um dos mais profundos sentidos da vida"? Por outras palavras, esta sucessão contínua de presentes faz com que o tempo esteja sempre a passar numa ilusão de presença. Daí de súbito darmos por que o tempo passou. O que é o mesmo que dizer que não demos por ele quando passava na sua densidade, digamos, enquanto presente intensivo. Donde a ausência que referia e, por assim dizer, uma como que correspondente desaparição, desaparecimento. Ora, não é o chamado 'desaparecimento' conotado com 'morte'? É como se não se tivesse vivido efectivamente, ou aproximadamente tanto quanto se pode no fluxo da vida, aquele presente, aqueles presentes. É por isso que se pode falar metaforicamente de uma espécie de morte, pois estes efeitos poderão produzir mais tarde - no final da vida? - o estranho sentimento de não se ter afinal vivido com a intensidade digna da vida. Usando uma expressão: como se a vida nos tivesse "passado ao lado". É natural que sintamos que escapa sempre qualquer coisa. Pelo menos que estas reflexões sirvam na medida do possível para oura compreensão do presente vivido, enfim, da chamada vida real que necessita sem dúvida, também, de uma certa distanciação pelo sonho, pela imaginação e/ou imaginário, condições de, através dessa mesma distância e tensão, vivermos a vida já de outro modo. Quer dizer, as reflexões sobre as noções de morte e de vida talvez sirvam pelo menos para as equacionarmos nas suas interacções, condição de possibilidade de as reformularmos no mistério que é afinal a existência, a nossa existência e o sentido pleno da vida. 
A 'durée' de Bergson fará aqui sentido? Os devires em Deleuze também?
Evidentemente que nos nossos dias, o efeito de real produzido por toda a realidade tecnológica tem implicações novas nas nossas concepções e percepções do mundo. 
Por outro lado, não é estranho e ao mesmo tempo interessante que, literalmente e mesmo realmente, tenhamos de admitir a impossibilidade de estarmos cá (no mundo) ao mesmo tempo não estando? E não é estranho e ao mesmo tempo interessante que, conforme o que tentei mostrar acima, de alguma maneira, metafórica mas também realmente, se possa estar cá não estando? 
Os efeitos de real do "em tempo real" da instantaneidade da velocidade da luz da informação não produzirão por seu turno o efeito de ubiquidade que tem vindo a ser um dos propósitos mesmo das ciências duras da Física de partículas? E a ubiquidade não se traduzirá porventura numa das formas de estar num lugar ao mesmo tempo não estando, porque precisamente se está em dois ou quase?
À luz disto não se deverá reequacionar o célebre princípio de não contradição (também chamado de contradição) tematizado e definido por Aristóteles?
Não será este um dos grandes problemas antropológicos e ontológicos? A aspiração de poder estar morto estando vivo e reciprocamente? Estar e não estar? De uma certa maneira ser e não ser? Embora a recíproca não implique simetria, pois seria fácil e retórico demais. 
O extraordinário filme "As asas do Desejo" de Wim Wenders é uma excelente alegoria destas questões e de outras, certamente.
Claro que estas coisas ditas como respostas não passam de retórica e de figuras de retórica. Mas só faço tentativas de aproximação a problemas destes para os quais não tenho solução. 

3. De facto, ao mesmo tempo, este estado de coisas, nos nossos dias, relativamente a uma espécie de actualização quase total, de um hiperpresente, produz um efeito, não só de quasi-ubiquidade (telepresença, p.ex., devido à aceleração e mesmo à instantaneidade das telecomunicações informatizadas), mas também, juntamente com estes factores, um efeito de novas concepções espácio-temporais. Como diz o Hermínio Martins no início da primeira sessão gravada em vídeo, há três tópicos fundamentais no séc. XXI sobre a questão do Humano, enfim como questões do movimento transhumanista: “1. A possibilidade de um melhoramento (enhancement) da espécie homo sapiens sapiens; 2. Passagem para uma outra(s) espécie(s) que não a do sapiens sapiens; 3. Passagem para algo de outro com a transferência da mente, das “nossas mentes na totalidade” para supercomputadores superinteligentes…
Aliás, aproveito para citar mais um interessante passo a propósito do “homo duplex” como “nova versão”: “Como organismos, somos criaturas cujas vidas não podem ser explicadas em termos de finalidades segundo a ortodoxia ultradarwiniana, mas como bioengenheiros, segundo a mesma ortodoxia, embora sem direito ontológico a possuir finalidades, estamos empenhados em realizar um sem-fim de finalidades transformativas. Neste paradoxo aparece uma nova versão do homo duplex, pois na transformação do homem pela engenharia genética, estamos a desempenhar o papel do homo hominans em relação ao nosso próprio ser como homo hominatus , ao mesmo tempo agentes e pacientes da biotecnologia, agentes cada vez mais potentes, e pacientes cada vez mais transformáveis por nós próprios, nos fenótipos e nos genótipos, cada vez mais engenheiros e cada vez mais engenhados, cada vez mais relógios e cada vez mais relojoeiros (…) (Op.cit., p.310).” Sobre homo hominans e homo hominatus, digamos que o Hermíno mostrou uma interessante extrapolação ou desdobramento de natura naturans e natura naturata; vj. Espinosa, p.ex.
Mas voltando aos três tópicos, diria que o terceiro, e no seguimento das suas leituras, vai no sentido da aspiração a um enhancement que tem a ver com um redimensionamento do mundo ou a passagem, por assim dizer, para (um) “outro mundo”, com todas as implicações metafísicas e religiosas, etc. que esta expressão comporta e arrasta consigo, curiosamente, para este mundo, o nosso mundo. Na minha leitura, a seguinte passagem do seu livro parece-me ir nesse sentido: “As redes/teias de comunicação cada vez mais abrangentes e densas, aproximam-se hoje ainda mais de um sensorium mundi da Terra, para a nossa espécie, pois acedem também a uma infinidade de sensores electrónicos ou microschips que se poderão colocar através da Terra e no fundo dos mares, e os sensores assim instalados comunicam-se entre si, constituindo uma “Internet das coisas”, providenciando uma datasphere ou esfera de dados planetária (Op.cit., p.73).” De facto, confesso que por vezes estou persuadido, já hoje, de uma “dimensão outra” com o advento das novas formas de comunicação tecnológicas na linha cibernética e digital, com os telemóveis e computadores, para citar só estes dispositivos. Não sou dos que nasceram com eles, e o que mais noto é que, não só a percepção do mundo se alterou, como muitos defendem, e concordo, mas digamos que se passou para outra coisa que chamaria “outra dimensão” ou “uma outra dimensão”. Mas que outra dimensão? Empregando noções de Dilthey, direi modestamente que por agora não sei bem explicar nem compreender, tanto mais que a par das ciências humanas e das ciências naturais vai também, em crescendo, a chamada tecnologia, a questão da técnica, daí a Filosofia e Sociologia da Técnica.
Respeitando aquela enumeração acima dos 3 tópicos, eu tentaria, para facilitar as minhas questões, tematizá-los em 2 perguntando se podem ir a par um do outro, cruzar-se mesmo, ou se são essencialmente incompatíveis, embora eu não compreenda muito bem o porquê deste empolgamento do enhancement (melhoramento, aumento...) sobre o qual, segundo me parece, o Hermínio Martins também não alimenta grandes entusiasmos: 1. Um enhancement da espécie e/ou do género, ou mesmo a passagem para outra(s) espécie(s) (junto aqui os tópicos ‘1’ e ‘2’ do grupo de três inicialmente apresentados que referi acima). Recordo que numa das sessões eu disse mais ou menos que ‘género’ poderá remeter, p.ex., para  semânticas e etimologias de genes (genética) e genes, genos, no grego, remetendo para eidos (veja-se a entrada ‘genos’ em Peters, Termos Filosóficos Gregos, reenviando, p.ex. para O Sofista, 253 d. Ora eidos é do plano teorético e noético, pelo menos na linha platónica… E também em Peters as categorias aristotélicas (no latim: summa genera); 2. Um enhancement planetário, global (creio que o tópico ‘2’  - “passagem para outra espécie” - do grupo de 3 inicialmente apresentados, se pode incluir também neste) onde, por exemplo, ao mesmo tempo o “Homem é agente geogónico consciente” (Vernadsky; Experimentum Humanum, no seguimento da p.73). Para não falar, num outro plano, das influências  antropogénicas planetárias (p.ex., dióxido de carbono / buraco de ozono). Ora, as vertentes deste tópico 2 parecem conduzir, aproximadamente, pelo menos, ao plano que referiu das mentes e da mente humana conectada, ou melhor, transferida para supercomputadores (“máquina artificial superinteligente”). Qualquer coisa de uma outra ordem do global, ou antes, do planetário?
Por outras palavras ponho uma primeira questão ao Hermínio:
Mas poder-se-á articular, e como, enquanto Experimentum Humanum, a questão do enhancement no contexto do “género humano”, melhoria da espécie (tópico 1) com a do enhancement do “próprio mundo”, nosso mundo como dimensão planetária correlativa também da transferência da(s) mente(s) humana(s) com os ditos supercomputadores (tópico 2.), sendo a “passagem para outra espécie” comum a ambos os tópicos? Há compatibilidades ou são dimensões que na sua imprevisibilidade nos impedem de saber qual sobrevirá?
Uma outra questão sobre o “egoísmo geracional”:
Os enhancements têm a ver com aquela “não posteridade” que referi acima quando o citei sobre a noção de “egoísmo geracional”; implica também questões sociológicas?

Este texto encontra-se sob revisão.

Luís Tavares

25/05/2013



Mensagem breve resumindo uma das questões:


L.T. : Para simplificar e tentar tornar mais claro, uma das minhas questões resume-se a isto: como é que o Hermínio Martins considera a "condição humana" (expressão que vem no subtítulo do seu livro Experimentum Humanum) do ponto de vista das "mentes humanas" e dos "supercomputadores superinteligentes"?

L.T.

25/05/2013


Alguns textos em anexo sobre o contemporâneo, o presente, a presença, ausência, a questão e a metáfora da morte, etc.



“Celui qui appartient véritablement à son temps, le vrai contemporain, est celui qui ne coincide pas parfaitement avec lui ni n’adhère à ses prétentions, et se définit, en ce sens, comme inactuel; mais précisément pour cette raison, précisément para cet écart et cet anachronisme, il est plus apte que lesa utres à percevoir et à saisir son temps.”


“La contemporanéité est donc une singulière relation avec son propre temps, auquel on adhère tout en prenant ses distances; elle est trés précisément la relation au temps qui adhere à lui par le déphasage et l’anachronisme. Ceux qui coincident trop pleinement avec l’époque, qui conviennent parfaitement avec elle sur tous les points, ne sont pas des contemporains parce que, pour ces raisons mêmes, ils n’arrivent pas à la voir. Ils ne peuvent pas fixer le regard qu’ils portent sur elle.”


Giorgio Agamben, Qu’est-ce que le contemporain?, Rivages Poche, 2008, pp.10 -11.





§ 2. TA ONTA. A EXPERIÊNCIA GREGA DO ENTE COMO PRESENTE (HOMERO, ILÍADA, I, v. 68-72)


Sabe-se que ὄѵ, ὄѵτα , são derivados das formas arcaicas ἐόѵ, ἐόѵτα, as únicas que foram utilizadas pelos poetas e pensadores iniciais. Que nos diz Homero sobre a palavra  ἐόѵ? Homero fala do Vidente  (ὁ μάѵτις, der Seher). Caracteriza-se como aquele «que conhecia» (ὅς ἤδη), quer dizer aquele que «viu» (oἶδεѵ): e é porque ele sempre já viu que pode ver e pre-ver, quer dizer ser o adivinho. O que é que ele antecipadamente viu? Homero nomeia-o triplamente: o ente (τὰ τ’ἐόѵτα), o ente-a-vir (τὰ τ’ἐσσόμεѵα), o ente-que-foi (πρό  τ’ἐόѵτα).

Toda a análise heideggeriana se apoia neste verso particularmente precioso, uma vez que nos oferece um uso da palavra  ἐόѵτα, o ente, que nos permite situá-la em relação ao presente. A análise que é infelizmente quase impossível de restituir, na medida em que repousa inteiramente na distinção de dois termos alemães para os quais o francês apenas possui um nome, a palavra «presente»: das Gegenwärtige e das Anwesende. O único recurso, portanto, é abrir no interior da nossa língua, ainda que recorrendo à perífrase, uma diferença que esta não possui em si, mas sem a qual a interpretação heideggeriana do ente permaneceria inacessível. Todavia, dado que essa diferença não pode ser claramente marcada linha por linha, adoptámos, para evitar toda a confusão, uma convenção tipográfica: a palavra «presente» traduzirá gegenwärtig, enquanto a palavra presente (sem aspas) ficará reservada para Anwesende.

O que diz τὰ τ’ἐόѵτα, quando é distinguido de  τὰ τ’ἐσσόμεѵα  e de πρό ἐόѵτα? Diz o ente que é, enquanto oposto ao que será, tal como ao que foi: diz o ente no sentido do «presente» (gegenwärtig). Fica assim delimitado um modo particular de tudo o que é presente, modo que consiste em ter «chegado à demora, no interior da região do desvelamento» (12). O passado e o futuro, em compensação, embora não sendo menos entes, nomeiam o que cai fora da região do desvelamento, fora dessa Gegend a partir da qual Heidegger nos convida a pensar a palavra gegenwärtig (13). Mas, embora estando fora, só a partir dela podem ser pensados: aproximam-se ou afastam-se dela (14). Quer dizer, por um lado, que o facto de estar «ausente» da região do desvelamento constitui uma certa maneira de nela estar presente (anwesend) – a saber: no modo de aí-não-estar-presentemente, ou no modo da ausência. Por outro lado e em consequência disto, que toda a amplidão do presente (das Anwesende), na multiplicidade das suas modalidades, deve ser pensada como um modo de irradiação a partir do desvelamento, quer dizer do «presente» (gegenwärtig).

Torna-se assim aparente que, desde o começo da experiência grega,  ἐόѵτα  tem um duplo significado, que deriva da ambiguidade essencial do presente: enquanto distinto do passado e do futuro, ἐόѵτα significa o «presentemente» presente (das gegenwärtig Anwesende); mas, na medida em que o passado e o futuro são também entes, ἐόѵτα significa tudo o que é presente (das gegenwärtig und ungegenwärtig Anwesende). Ora, o que importa essencialmente compreender é a relação implicada por estas duas significações. Se Anwesende e gegenwärtig são duas maneiras de dizer o presente, e se a primeira cobre indubitavelmente um campo mais extenso do que a segunda, não é menos um total contra-senso entender a Anwesende como um conceito geral em relação ao qual o Gegenwärtig constituiria um caso particular. Tal como o nosso desenvolvimento precedente tendia a mostrar, é antes a partira do Gegenwärtig que é possível pensar a amplidão da Anwesende, e a multiplicidade dos modos da sua manifestação (15). Por outras palavras, é a partir da região do desvelamento, e só dela, que é possível pensar o que, sem estar «presentemente» no desvelamento, todavia só se define em relação a ele, a saber, os outros modos do presente: o ente futuro e o ente passado.

O que Heidegger se esforça aqui por nos fazer compreender é que, para os Gregos, só há presente relativamente ao desvelamento. É porque é possível ao ente a demora no desvelado (logo, estra «presente») que o ser-velado é ainda uma maneira de se relacionar com essa região e, através disso, se desdobrar como presente (anwesend), ainda que seja no modo de ausência, quer dizer, da ocultação.



12. Holzwege

13. Ibid….

14. Ibid….

15. Ibid… « Não devemos nunca representar o presente no sentido lato […] como o conceito geral do presente, na sua diferença em relação a um presente particular, o “presentemente presente” (das gegenwärtig Anwesende) e o desvelamento que nele reina, que regem de parte a parte a essência do que se ausenta (des Abwesenden), quer dizer do presente não “presente” (als des ungegenwärtig Anwesenden)».



Marlène Zarader, Heidegger e as Palavras da Origem, trad. João Duarte, Inst. Piaget, 1998, p.115.

Actualidade de Marx

"Sem dúvida que um certo Marx, um certo marxismo, morreu. Aliás estava já morto muito antes do fim do comunismo soviético e da queda do muro de Berlim e das consequentes proclamações da sua morte. Já morto, portanto, muito antes da certidão de óbito oficial. Mas, dizíamos, há um outro Marx, um outro espírito de Marx, que persiste, imperecível, um espectro ainda à solta, que continua a rondar, porque é o espectro filosófico da mais imperativa das Ideias, o espectro ético-político, na fórmula de Derrida, da «democracia por vir». Derrida escreveu, como referimos, um importante livro de filosofia, de teoria marxológica, em que se trata de pensar Marx, o «tempo» ou a intempestividade  de Marx, a partir da categoria de espectro: da recorrência dos espectros nos textos de Marx, da sua pregnância aí como imagem ou metáfora. Trata-se, em termos derridianos, de revelar o pensamento de Marx, essa filosofia inseparável do espírito da revolução, não apenas como uma ontologia - a ontologia materialista dialéctica de Marx - mas, pelo viés de certos textos, como uma «hantologia» (de hanter, verbo francês para rondar, assombrar, perseguir, visitar com frequência, não parar nunca de vir, voltar: forma do ser, ou do extra-ser, do espectro, forma espectral do «ser» ou o ser da espectralidade como tal, irredutível a toda a ontologia, à «metafísica da presença»). Pensar os espectros de Marx e com eles, a partir deles, o espectro de Marx, o espírito «hantológico» de Marx, Marx como espectro. Mas justamente, Derrida esclarece que o espectro não é simplesmente o fantasma, não é o morto, o intruso irreal, que regressa a contratempo para nos recordar uma herança (cena de Hamlet). O espectro é «o que não é morto nem vivo, nem real nem irreal», e que por isso está aí em permanente estado de vinda, de ronda, como plano fantasmático da própria realidade objectiva, por exemplo como «a dimensão do fantasmático no político» (1). Ora em rigor é isso o que define o estatuto contemporâneo de Marx, da herança de Marx, a sua forma de actualidade, a sua relação connosco enquanto seus herdeiros, seus legatários, destinatários do legado, isto é, enquanto responsáveis pelo destino teórico, filosófico, político, do espectro do marxismo: nem vivo nem morto, nem uma coisa nem outra absolutamente e todavia paradoxalmente uma e outra, ao mesmo tempo passado e futuro, ultrapassado e inultrapassável. Não é essa, aliás, a realidade irreal, o modo fantasmal de existência, de todos os grandes filósofos da história da filosofia, a sua forma de «eternidade»: mortos-vivos, espíritos vivos ou sempre revivíveis, sempre regressíveis, de pensamentos mortos, fantasmas cujas Ideias antigas continuam a inteligibilizar as nossas novidades, espectros cujas sombras continuam a iluminar as nossas obscuridades?
«Será sempre um erro não ler e reler e discutir Marx. Quer dizer também alguns mais - e para lá da "leitura" ou da "discussão" de escola. Será cada vez mais um erro, uma falta à responsabilidade teórica, filosófica, política. Agora que a máquina de dogmas e os aparelhos ideológicos "marxistas" (...) estão em vias estão em vias de desaparecimento, já não temos desculpa, apenas álibis, para nos desviarmos dessa responsabilidade. Não haverá futuro sem isso. Não sem Marx, nenhum futuro sem Marx. Sem a memória e sem a herança de Marx: em todo o caso de um certo Marx, do seu génio, de pelo menos um dos seus espíritos» (2)."


(1) Jacques Derrida, Sur la parole, Éd. de l'Aube, La Tour d'Aigues, 199, ..121.
(2) Jacques Derrida, Spectres de Marx, pp. 35-36 

in Sousa Dias, Grandeza de Marx, por uma política do impossível, Lisboa, Assírio & Alvim, 2011, pp. 38-40.

Marque-se que, não obstante ser um interessante trecho num interessante livro de Sousa Dias, é curioso que o nome "Marx" é referido frequentíssimas vezes em cerca de duas páginas (20 vezes, incluindo as 5 da citação final de Derrida)!


 Links de vídeos com Hermínio Martins


"Filosofia e Sociologia da Técnica"






"Tecnologia, Modernidade e Política"









"A Condição Tecno-Humana no Séc. XXI" (debate)











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