domingo, 7 de fevereiro de 2016

Arqueologias I - texto para exposição de pintura na Fábrica do Braço de Prata







                                                  Arqueologias I


                                                                «A arte não reproduz o visível, ela torna visível»
                                                                                                                                            Paul Klee


1. O formato-suporte de todas as obras aqui expostas é o quadrado. Trata-se, em grande parte, de uma homenagem ao “Quadrado” de Kasimir Malevitch (1878-1935), mais propriamente ao “Quadrado (Quadrângulo) negro sobre fundo branco” (“… o ícone do nosso tempo” segundo o artista). Obra capital da célebre exposição de 1915 (“0.10”) do pintor da vanguarda russa nascido na Ucrânia[2]. Também a tela-suporte desta obra tinha forma quadrada. Passaram precisamente cem anos desde que aquela pintura foi exposta pela primeira vez. Não só abordamos nesta exposição o quadrado, a figura do quadrado, mas também o círculo, bem como outras figuras geométricas que despontaram o Suprematismo. Por isso, realizámos neste ano de 2015, e com o objectivo de os expor agora, alguns trabalhos concluindo a série que se iniciou com um outro em 2008 (“Portal”). Grande parte da série foi realizada em Setembro e Outubro de 2012. Uma das obras que fizemos recentemente intitula-se “Nada” (2015). Este será o trabalho que culmina a experiência plástica que fizemos nesse período. Ele é o resultado paradoxalmente quase nulo e absoluto do que encontrámos no tempo que dispusemos para tal: os elementos decisivos do célebre “Quadrângulo” de Malevitch. São eles, entre outros o que Malevitch designa “Nada libertado”, “deserto…branco abissal”, “infinito”…
De facto, a experiência plástico-pictural sobre o quadrado teve eco na arte do séc. XX a vários títulos. Por exemplo, Josef Albers (1888-1976), pintor e teórico da famosa Bauhaus, cujo percurso incidiu em grande parte sobre a forma-quadrado, realizando diversas obras intituladas, precisamente, “Homenagem ao quadrado”, nas décadas de 50-60 do século passado. Se bem que Kandinsky não fosse adepto da linguagem construcionista nem do neoplasticismo de Mondrian - achando mesmo este último demasiado “puritano” -, não deixou de inscrever nas suas obras de teor mais geométrico e ao mesmo tempo orgânico (meados da década de 20 e década de 30) a experiência do quadrado, entre outras formas. Inclusive, poderemos observar uma espécie de quadrículas coloridas que lembram, de alguma maneira, as que se encontraram mais tarde nas pinturas rupestres de Lascaux. Veremos mais à frente esta questão da arte do Paleolítico Superior. Mas muitos outros retomaram e desenvolveram estas experiências.
A par daquela obra fulcral de Malevitch no desenrolar da arte e mais propriamente da pintura do séc. XX, estão também o “Quadrado branco sobre fundo branco” (1915), o “Quadrado vermelho” (“Realismo pictórico de uma camponesa em duas dimensões”, 1915), bem como o “Círculo Negro” (primeira versão de 1915). Como se sabe, o Suprematismo partiu daí, destes ensaios elementares. Sem podermos, no entanto, desenvolver aqui esta questão, digamos que a génese do quadrado monta a algumas experiências pictóricas de Malevich em 1913, segundo as palavras do próprio artista.
2. Mas, porquê o título da exposição: “Arqueologias I”? Se bem que em nosso entender o Suprematismo seja, no fundo, uma corrente inspiradora, abrindo um espaço plástico amplo na arte moderna e contemporânea, ele é ao mesmo tempo um trabalho arqueológico. Porquê um trabalho arqueológico? Ele indaga o espaço plástico (com a componente do tempo) com o trabalho sobre a superfície da tela enquanto suporte da génese potencial de um outro espaço de pensamento plásticos, quer dizer, como experiência artística.
 De facto, se remontarmos ao pré-histórico, quer dizer, mais propriamente, à arte rupestre do Paleolítico-Superior, todo um processo genesíaco se inscreve na reflexão, se assim se pode dizer, perante o fascínio da materialidade das paredes e das rochas, quer nas cavernas, quer ao ar livre (gravuras no imenso espaço de Foz Côa, p. ex.), emergindo uma dimensão espiritual. Poderemos assim encontrar conexões entre a remota arte pré-histórica e a pintura contemporânea através da reflexão ou pensamento do espaço na materialidade das superfícies como génese espiritual enquanto tal. Tudo isto precedendo mas abrindo caminho ao longo percurso histórico da arte passando, por exemplo, pela “perspectiva” (It. prospectiva) renascentista.
Os efeitos de luz e sombra foram, entre outros, um estímulo para a criação parietal paleolítica. Daí o fascínio pelas rugosidades, texturas, anfractuosidades das superfícies rochosas e argilosas nas suas colorações, manchas e linhas naturais, geológicas. Consoante os efeitos de luz natural (do sol, do luar das tochas nocturnas, etc.), as formas parietais adquiriam aspectos diversificados, génese de imaginário, e mesmo efeitos de ilusão de óptica. Foi isso, precisamente, que inspirou os artistas-feiticeiros, esses xamãs ancestrais, no trabalho pictórico e de gravação, num jogo com aquelas superfícies naturais. Sabe-se hoje que a topologia de certos espaços pictóricos nas cavernas obedecia a determinadas condições acústicas. Estas permitiam a articulação entre certas sonoridades, as imagens e o espaço.
3. Por essa razão, pelas “Arqueologias I” (primeira série agora exposta), também constará uma outra obra. Não fará parte da série na sua coerência a preto e branco, encontrando-se, todavia, em articulação e estabelecendo pontes possíveis com os restantes trabalhos. É igualmente uma pintura em formato de quatro lados iguais (um quadrado), cromaticamente diferente da série a preto e branco. Intitula-se “Imemorial”, tendo como subtítulo: "Falarão também os confins dos tempos do nosso tempo?" (técnica mista e colagem (pedra) sobre tela, 150cmx150cm, 2000). Portanto, é um trabalho realizado 15 anos antes dos mais recentes quatros expostos nesta mostra. Os seus tons são basicamente barrento-avermelhados, com algumas figuras e motivos rupestres. Uns em decalque partindo de certas figuras de sítios arqueológicos rupestres (gruta de Rouffignac,em França, p.ex.), outros de inspiração nossa. Nesta pintura pode encontrar-se já um gesto nascente de matéria quebrada ou estalada na parte central. Esta irá ser experimentada quase na totalidade da série de 2012 (com um dos pontos de partida num trabalho de 2008, modificado em 2010: “Portal”) que, como dissemos, culmina em 2015. Nesta matéria estalada, quebrada, poderemos ainda encontrar analogias e proximidades com as anfractuosidades das rochas antigas de que falámos.
Por outro lado, esta experiência matérica terá afinidades estéticas com o tempo, a duração temporal de milénios, mas igualmente com o efeito temporal indefinido resultante de um processo criativo de poucos anos, meses, dias e, mesmo, horas (a matéria usada começa a gretar em uma duas horas).
 Faz-se assim a ponte do tempo entre o presente e o passado remoto imemorial. Por outra parte, os cacos, estes fragmentos matéricos, evocam de alguma maneira as camadas arqueológicas de terrenos e “sítios” onde se encontram ossos, crânios estalados (restos de alimentação, etc.), cacos de cerâmica, de utensílios, vestígios de habitação… Em suma, qualquer coisa com familiaridade às ruínas, aos traços do tempo e do espaço.
Despertou-nos este aspecto quando há pouco tempo revimos uns documentários arqueológicos. Um sobre o trabalho de André-Leroi Gourhan e outro sobre as explorações no parque arqueológico de Foz Côa.
4. Note-se, no entanto, que o estalado produzido nestes trabalhos não é o chamado craquelé. É importante assinalar este ponto, pois não se trata aqui de imitar este efeito pictórico, ao contrário do que muitos possam pensar como base destes trabalhos. É um estalado de matéria, mais profunda e espessa do que a tinta. O craquelé  é tinta estalada com o tempo, embora actualmente haja meios técnicos para o simular e produzir. Será neste caso um craquelé imediato, simulando um efeito antigo, imitando o que acontece nas pinturas com décadas e séculos, enfim, simulando as marcas do tempo. Contrariamente, no caso dos trabalhos desta série, trata-se antes de matéria estalada, mas matéria que não é a tinta tradicional, quer dizer, nem tinta de óleo nem acrílico. É cal viva (óxido de cálcio), sem um certo preparo final para caiar… É geralmente vertida a quente sobre a tela. Por vezes misturada com tinta preta de água para as tonalidades cinzas e cinzentos (vj. o trecho final sobre os elementos de trabalho). Portanto, não há qualquer enfoque a priori no dito craquelé… Há, porém, outros materiais com que se pode produzir o estalado; foi o que aconteceu em “Imemorial”…
Mas podemos supor um trabalho de escalas, como que ampliando significativamente o efeito visual do dito craquelé… Com efeito, e retomando aqui Malevitch, é curioso que as camadas de óleo na mancha negra de uma das versões (cremos que a primeira) do “Quadrado negro sobre fundo branco”, sofreram um interessante processo de craquelé. O que permite uma leitura de escalas da textura gretada, aspecto que algumas das obras aqui expostas experienciar (p. ex.: Hylê (no grego: matéria) - técnica mista sobre tela, 50cmx50cm, 31/08/2012). Assim, a produção da matéria estalada nestas pinturas que agora expomos seria uma experiência de adentramento na matéria, fazendo, ao mesmo tempo, emergir dela, num olhar como que vendo o dentro de (a partir de) fora…
Não se tratando de tinta nem de qualquer método de simulação de craquelé, não há, por assim dizer, qualquer processo mimético ou representacional. Tanto mais que as configurações e formações do estalado e gretado são totalmente aleatórias. Por outro lado, a matéria fragmentada constitui o trabalho pictural, ao passo que o craquelé vem, por acréscimo, sobrepor-se à pintura. Por outra parte, este efeito irregular e aleatório das reconfigurações da matéria fragmentada, quebra, corta, precisamenente, o rigor, a rigidez, a depuração das formas quadradas dos próprios suportes (telas quadradas) e das formas quadradas inscritas pictoricamente. Mantendo-se assim uma tensão entre o extra-pictural e o intra-pictural, conferindo-se assim um novo questionamento da pintura como objecto…
5. Este momento estético-plástico das superfícies e texturizações é fulcral. E retomamos este ponto porque não queríamos deixar de lembrar o que Leonardo de Vinci (1452-1519) encontrava de fascinante ao contemplar os muros velhos. Leonardo incitava a olhar as manchas e as texturas dos muros velhos como fontes da imaginação. Quase cinco séculos mais tarde, o catalão Antoni Tàpies trabalha na sua obra pictórica - com um fulgor extraordinário - todo o motivo deste estímulo material, matérico e, ao mesmo tempo, “espiritual”, como o próprio artista faz questão de assinalar. Como se o muro-porta-selada - expressão que criamos aqui para caracterizar uma das linguagens de Tàpies, ou um dos “talismãs” do artista (aqui, expressão dele próprio), fosse, digamos assim, uma barreira e, ao mesmo tempo, um portal em abertura espácio-temporal. Talismã, precisamente, pois, segundo Tàpies, o fim ou um dos fins últimos da obra plástico-pictórica seria a possibilidade ou a potência do seu efeito curativo, terapêutico mediante o toque, o contacto com a matéria.
O muro e a sua superfície como matéria de contemplação e meditação encontram-se também na tradição oriental do budismo Zen (cf. pintura: As pestanas, o muro e Bodhidharma (eyelashes, wall and bodhidharma).
Ainda a propósito da superfície, a relação figura-fundo na pintura moderna e contemporânea ganha outra complexidade chegando mesmo a produzir-se um efeito de indistinção ou de jogo de permuta. É o que se pode chamar como carácter biplano na pintura moderna abstracta no século XX[3]. Encontram-se exemplos significativos em, p. ex., Mark Rothko (a nebulosidade e as pinceladas esfiadas) e Clyfford Still. Neste último, lembramo-nos das pequenas manchas-rasgos-cromáticos, digamos, onde se divisam alternadamente, quando nos detemos algum tempo frente à obra, efeitos de relevo (saliência) e de reentrância…
6. O quadrado é sem dúvida um tema-ponto de partida para o carácter abstracto desde o pré-histórico. Recordem-se os signos abstracto-geométricos em Lascaux. Enigmáticos signos… talvez tenham a ver com armadilhas, projecções de territorializações e desterritorializações, para empregar conceitos de Deleuze (vj. Gilles Deleuze e Félix Guattari em Mille Plateaux), uma vez que aquelas demarcações são moventes, consoante os movimentos das presas de caça (e também na contemplação dos animais no mundo; tema que não iremos tratar aqui). Signos também de apropriação mágica, de captura, estranhas grelhas, ou cercas, configurando formas quadrangulares (quadrados e rectângulos…).
7. Por outro lado, em Foz Côa, as placas quebradas, talvez com o passar do tempo, produzem um efeito surpreendente em jogo com as sinuosidades das múltiplas linhas emaranhadas expressando animais (p. ex.: Rocha 1 - das escavações de 2007: http://www.arte-coa.pt/index.php?Language=pt&Page=Gravuras&SubPage=ArteRupestre&Sitio=29). Mas, sem dúvida que as fracturas na pedra já existiam no tempo dos homens do Paleolítico-Superior. Portanto, como dissemos mais acima, elas foram um dos muitos elementos motivadores da génese espiritual do humano na sua dimensão artística. É o jogo de reentrâncias e saliências, do vazio e da matéria.
8. Apesar, de um dos elementos centrais ser o quadrado, a forma quadrangular, tanto assim que todas as pinturas são realizadas em suportes quadrados (muitas delas inscrevendo formas quadrangulares), e sendo que a obra de Malevitch é central nesta série e mesmo no conjunto com o extra-quadro (“Imemorial”), vários outros artistas são evocados. Não só pelas vertentes geométricas que alguns abordam (Mondrian…), mas também pelo campo matérico de alguns (Tàpies, Bram Bogardt, David de Almeida). No caso de David de Almeida há um propósito acentuado e provocatório na incoerência entre título e obra: a homenagem a este artista português intitula-se “Máquina”, quando a obra de David de Almeida, nada tem a ver, ao que supomos, com tecnologia e maquinaria….
Todos os trabalhos comportam uma dimensão material expressiva (as texturas…). Alguns dos autores evocados nesta série não trabalham com técnicas mistas, ou, pelo menos, pouco. Outros mesmo nada. Mas nesta série não pretendemos fechar o processo criativo simplesmente em formas geométricas. Tratou-se também de conferir, a partir da dimensão material, uma expressão alargada a outros signos e linguagens, pondo em diálogo várias possibilidades. Até porque vários trabalhos desta série são ainda preliminares. Trata-se da primeira série, porventura preparatória para uma outra fase…. Todavia, certos trabalhos são já uma conclusão do processo, como é o caso de “Nada” (2015).
Assim, articulam-se nalguns trabalhos transitórios elementos com base num determinado material, sempre no suporte quadrado e explorando um ou outro elemento sígnico de um artista: Miró: formas aleatórias esboçando seres sígnicos a partir do trabalho dos materiais em causa; Klee: a seta na sua geometria e enquanto “vector”…; Joan Hernández Pijuan, a) o próprio utiliza espessura e densidade acrílica, b) os seus trabalhos são meditativos, componente que tentamos manter transversal ao conjunto da série; David de Almeida, artista que usa técnicas mistas e texturas, idem relativamente à dimensão meditativa; Tàpies com as suas geometrias de portas e marcas espaciais, acontecendo o mesmo elemento meditativo; Bram Bogart com suas as suas massas meio panificadas, digamos, ou como que de plasticina, ricamente cromáticas (aspecto que escapa à nossa série que se resume ao preto e branco), etc.
9. Por outro lado, como se a pintura, entendida normalmente como película pictural no suporte bidimensional ganhasse aqui uma dimensão textural, uma espessura conferindo um carácter tridimensional, objectal. Como se alguns destes trabalhos, uns mais expressivamente, apelassem a objectos tridimensionais enquanto extractos retirados de um local de origem, como acontece com certas placas arqueológicas (artísticas) extraídas de um local ou paisagem. Para não falar da relação do próprio caixilho ou armação como constituindo objecto com a pintura. Não é isso, por exemplo, o que sugere Miró quando inverte uma tela expõe o bastidor?
Este elemento objectal talvez faça ponte com o ready-made de Duchamp, apesar do grande gesto deste artista ser de outro campo que não cabe, de momento, aqui tratar. Note-se no entanto que há quem aproxime o ready-made de Duchamp à pintura e não à escultura. Porquê? Precisamente, porque Duchamp se afastou da pintura através do processo ready-made, é legítimo e há mesmo quem sustente que o ready-made, apesar da sua tridimensionalidade, terá mais a ver com a pintura do que com a escultura. Não há dúvida que o ready-made era uma resposta há pintura, uma negação dela. Mas não só pura negação; por isso ele se manteve na história da arte enquanto uma questão da pintura: “Se Duchamp tivesse renunciado a toda a ambição artística renunciando à pintura, não se falava mais dele hoje. Com toda a evidência o readymade é, entre outras coisas, a certificação do seu abandono da pintura [“Marcel, não mais pintura, procura trabalho”, em 1912], a maneira pela qual este último se encontrava implicado nesta confirmação  e, por isso mesmo, tornado significativo. Ele significa para a pintura que ela morreu e faz-lhe significar que não é mais pintura. Não foi senão por esta razão, que os readymades pertencem paradoxalmente à história da pintura e não, por exemplo, apesar da sua aparência e qualidades tridimensionais, à da escultura. ainda será necessário mostrar que não é somente negativamente e que o readymade “fala” de facto de pintura, mesmo e sobretudo se não se trata disso. Pode e deve ser interpretado, hoje, como qualquer coisa que estabelece um laço paradoxal com a história e a tradição da pintura”[tradução a rever][4]. Qual o alcance deste problema?  
Mas tentemos deixar aqui algumas notas deixando no ar a questão. De facto, a multiplicidade e multiplicação do quadrado espraia-se a um campo tridimensional, para o cubo, tal como o círculo para a esfera. A experiência de Duchamp foi um outro modo de extrapolar para a tridimensionalidade (para não falar da quadridimensionalidade temporal). O arrancamento de um objecto ao seu espaço (des-contextualizando-o), inscrevendo-o em seguida num outro - o espaço da exposição – (re-contextualizando-o), apelando a um público e inscrevendo por seu turno um título (um nome casual), é uma maneira de repensar o sentido do espaço…
10. A arte contemporânea funciona hoje muito graças ao espaço envolvente (sala, ambiência, paisagem…). Mesmo a pintura, com a reprodutibilidade técnica (W. Benjamin), já desde os princípios do séc. XX, conta hoje muito com a fotografia. A fotografia de um quadro, de uma instalação, inscreve as obras, reenquadrando-as, num espaço desdobrado (o espaço branco da página do catálogo, da sala onde se encontram tanto a pintura como a instalação ou a escultura, etc). A bidimensionalidade da fotografia ilude o espectador numa tridimensionalidade, ajudada pelo próprio espaço museológico contemporâneo. Por exemplo, a fotografia de uma obra num espaço de exposição; a fotografia de uma fotografia num espaço de exposição, etc. Enfim: obra+espaço envolvente… como se este constituísse também já a obra…
Veja-se como os museus construídos hoje, principalmente quando projectados por arquitectos de renome, se articulam, ou são condição de possibilidade de articulação espacial com as obras expostas. Pode ser - não é obrigatório que o seja -  um dos riscos que se correm no fascínio exteriorizante de uma certa estetização off (questão a tratar noutro lugar), digamos, de um certo de fora quando somos gratuitamente cativados pela pura reprodutibilidade dos catálogos, das monografias, acrescentando a isto o pouco tempo e disposição em nos determos em torno das obras nos espaços de exposição. Em vez de um certo fora, esse a ter em conta, recai-se numa clausura, por assim dizer, um fora que adentra sem jogo: um sair que mais não é do que um entrar precisamente no circuito fechado de um certo mero entretenimento embalado por esse espaço que afinal se reconfigurou, o da facilidade e de uma certa estética do que é simplesmente um “trabalhar para a fotografia”. Tudo levando a crer, numa certa ilusão de óptica - muito sob um efeito, de alguma maneira, dos simulacros de hoje -, de que se trata de exterioridade no pleno sentido da palavra. É evidente que não se pretende aqui subestimar a questão da fotografia nas potencialidades da sua força expressiva e artística.
11. Mas o quadrado e o cubo na sua problemática abordando o tridimensional ou possibilidade aberta para o visionamento do objecto representado segundo várias posições (trás, frente, lado) recuam a Picasso (Cubismo) e ainda a Cézanne, o germinador desta arte da “planeidade” e da “tal-qualidade pictural”[5]. Cézanne despontou decisivamente, como condição de possibilidade do cubismo, com as célebres paisagens do Mont de Saint Victoire.
Por isso, há uma objectalidade ou, diríamos, uma concreção no “Quadrado” de Malevitch pelas “sensações e massas picturais” de que ele fala. Portanto, digamos que não se trata só do abstracto, não só do “não-figurativo”, para usar uma expressão preferida pelo artista. Daí também o desdobramento suprematista no que se chama o “abismo branco”, o “nada libertado”, o “infinito”…
12. Para terminar, não queríamos deixar de referir um trabalho que se inclui na série. É uma homenagem a Santa-Rita Pintor (1889-1918; 11 anos mais novo do que Malevitch!) que - do muitíssimo pouco que se salvou (Santa-Rita, à beira da morte, exigiu que todas as suas obras fossem destruídas) - teve uma atenção muito especial relativamente à linguagem geométrica e especialmente aos esboços quadrangulares e ao próprio quadrado. Santa-Rita reclamava-se cubofuturista; Malevitch respeitou e seguiu atentamente durante algum tempo  esta corrente. Contamos publicar no próximo número da revista Nova Águia (nº16), a sair em Outubro de 2015, um estudo sobre estes elementos[6]. Por volta de 1913-1915, eles são extraordinariamente enfocados e ensaiados na obra do pintor português, justamente em eco ao “Quadrado” de Malevitch.

 Luís de Barreiros Tavares



Link com algumas obras desta série no blogue escrita-fone:
Ver também nosso texto sobre Malevitch: http://escrita-fone.blogspot.pt/search?q=malevitch



[1] Texto para a exposição na Fábrica de Braço de Prata – Sala Kandinsky – de 12/06/2015-30/07/2015. Foi-me também solicitada realização de um texto para uma determinada revista. Mas parece ter havido um malentendido e um um problema de encaminhamento da coisa por parte de terceiros… Também chegou a estar patente na exposição. Assim, é agora numa primeira versão trazido à luz on line. Este texto poderá ainda sofrer alguns desenvolvimentos, para além de precisar de eventuais revisões e reparos.

[2] Assistimos a interessantes aulas de José Gil sobre Malevitch na UNL.Vj. no Youtube, na nossa página: José Gil – “Questões de Arte Moderna”.
[3] Devemos a chamada de atenção para este conceito a Teresa Cruz nas aulas da UNL.
[4] Cf. Thierry de Duve, Résonances du readymade, Duchamp entre avan-garde et tradition, Paris, Hachette, p. 125-127.
[5] Veja-se a este propósito as análises de Malevitch; nelas refere também a “uniplaneidade" nalgumas paisagens de Braque.
[6] Entretanto o artigo foi publicado na revista e consta on line: http://escrita-fone.blogspot.pt/search?q=+%22Ecos+de+Santa-Rita+e+Mal%C3%A9vitch:+O+Quadrado+e+o+C%C3%ADrculo%22+-+Publicado+na+revista+NOVA+%C3%81GUIA+16+-+Lu%C3%ADs+de+Barreiros+Tavares