domingo, 26 de fevereiro de 2012

Rubem Fonseca - Correntes d'Escritas - 2012




Cortesia Youtube:


http://www.youtube.com/watch?v=QqjLOOs8h5k
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Rubem Fonseca lendo um soneto de Camões



Cortesia Youtube:

http://www.youtube.com/watch?v=tg2CzeNJxC8&feature=related


Busque Amor novas artes, novo engenho,

para matar-me, e novas esquivanças ;

que não pode tirar-me as esperanças,

que mal me tirará o que eu não tenho.


Olhai de que esperanças me mantenho !

Vede que perigosas seguranças :

que não temo contrastes nem mudanças,

andando em bravo mar, perdido o lenho.


Mas, conquanto não pode haver desgosto

onde esperança falta, lá me esconde

amor um mal, que mata e não se vê ;


Que dias há que na alma me tem posto

um não sei quê, que nasce não sei onde,

vem não sei como, e doi não sei porquê.



Luís Vaz de Camões

Fonte: Luís de Camões, Líricas, selecção, prefácio e notas de Rodrigues Lapa, Imprensa Libânio da Silva, Lisboa, 1950.

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sábado, 25 de fevereiro de 2012

O acto de escrita de Fernando Pessoa


O acto de escrita de Fernando Pessoa

A Gil Fernando de Barreiros Tavares - meu pai - in memoriam
Era eu criança e citava-me Pessoa: "Grande é a poesia a bondade e as danças, mas o melhor do mundo são as crianças..." (Fernando Pessoa).


Daisy: Não te julgava tão realista, julgava-te mais poético. Não tens imaginação? Há várias realidades! Escolhe aquela que te convém. Evade-te no imaginário. Berenger: Fácil de dizer!
Eugène Ionesco, Rhinocéros.
When you read these I that was visible am
become invisible,
Now it is you, compact, visible, realizing my
poems, seeking me,
Walt Whitman, Full of life now

A escrita e o corpo*
1. Qualquer coisa ao ler Pessoa, o semi-heterónimo Bernardo Soares e os heterónimos, sem os reduzir uns aos outros, sugere, por um lado, um paralelismo entre a leitura e a escrita na sua legibilidade (o conteúdo, o que se diz, etc.) e, por outro, os traços da caneta, das linhas, da tinta no papel enquanto gesto material e corporal de escrever (1). Há algo de corporal em todo o trabalho da escrita. Incidirei a minha atenção sobretudo no Livro do Desassossego (L.d.D.). Não abordarei neste estudo a esfera da escrita dactilográfica tão frequente neste livro. A sua dimensão poética é do meu ponto de vista indiscutível, apesar de se considerar prosa. Veja-se um capítulo de O lugar do Anjo de Eduardo Lourenço cujo título é Uma poética do silêncio, (A propósito do L.d.D.). Esta leitura tenta, tanto quanto pode, não encerrar verdades mas abrir caminhos. Tentarei mostrar que este estudo não se limita ao meta-texto, nem à meta-escrita, nem à meta-poesia. Leitura que irá oscilar fundamentalmente entre Fernando Pessoa e Bernardo Soares. Fazendo-se por vezes o primeiro passar pelo segundo e vice-versa, quando designo um em vez do outro, respeitando-se no entanto esta curiosa alteridade. «É que Bernardo Soares, distinguindo-se de mim por suas ideias, seus sentimentos, seus modos de ver e de compreender, não se distingue de mim pelo estilo de expor», escreve Pessoa num texto «sobre a criação heteronímica » (ver Obra Poética de Fernando Pessoa, org. A. Quadros).
Um trânsito e um espaço abrem-se neste vai-e-vem da escrita no seu gesto material e da escrita no seu dizer. O sonho intersecta-se com os segmentos, os traços inscritos na sua materialidade no papel. Leia-se uma parte do poema interseccionista Chuva Oblíqua:
[…]
A grande Esfinge do Egipto sonha por este papel dentro…
Escrevo – e ela aparece-me através da minha mão transparente.
E ao canto do papel erguem-se as pirâmides…
Escrevo – perturbo-me de ver o bico da minha pena
Ser o perfil do rei Quéops…
De repente paro…
Escureceu tudo… Caio por um abismo feito de tempo…
Estou soterrado sob as pirâmides a escrever versos à luz clara deste candeeiro
E todo o Egipto me esmaga de alto através dos traços que faço com a pena…
Ouço a Esfinge a rir por dentro
O som da minha pena a correr no papel…
Atravessa o eu não poder vê-la uma mão enorme,
Varre tudo para o canto do tecto que fica por detrás de mim,
E sobre o papel onde escrevo, entre ele e a pena que escreve
Jaz o cadáver do rei Quéops, olhando-me com olhos muito abertos,
E entre os nossos olhares que se cruzam corre o Nilo
E uma alegria de barcos embandeirados erra
Numa diagonal difusa
Entre mim e o que eu penso…
[…]
(Chuva Oblíqua, Fernando Pessoa,)
As imagens, o sonho, a ilusão, as sombras, a escuridão e a luz no seu claro-escuro descrevem-se num espaço e num tempo pouco determinados: «Escureceu tudo… Caio por um abismo feito de tempo… Estou soterrado sob as pirâmides a escrever versos à luz clara deste candeeiro». As silhuetas e os esquemas começam a emergir como recortes ilusórios na folha de papel. Mas só a emergir? Não só. Começam também a re-inscrever-se para lá e para cá da folha de papel e a mover-se na página branca: «A grande Esfinge do Egipto sonha por este papel dentro…/ Escrevo – e ela aparece-me através da minha mão transparente./ E ao canto do papel erguem-se as pirâmides…». Os espaços-tempos de lá e de cá partindo da folha de papel na sua virtualidade afastam-se e aproximam-se de outro modo. Portanto, nessa diferença re-aproximam-se e re-afastam-se.
As linhas, a folha de papel, as letras, as palavras, as frases e a caneta são instrumentos duma geometria ou geografia flutuantes: «E o esplendor dos mapas, caminho abstracto para a imaginação concreta, / Letras e riscos irregulares abrindo para a maravilha» (Álvaro de Campos, vj. bibli.). Há neste sentido uma segmentação da escrita, do acto da escrita. Enfim, uma incisão, cesura não no sentido da métrica do poema mas da caneta enquanto movimento.
Os riscos de captura
2. Todavia, este estudo correrá porventura os riscos para os quais José Gil nos adverte na leitura de Pessoa embora noutro plano (vj. José Gil, O Devir-Eu de Fernando Pessoa). Riscos «do poder de captura» (Ibid.,p.9, sgs.). Há sem dúvida, digamos, esse perigo de des-leitura, e correspondente captura do leitor pelo texto pessoano caindo o primeiro, do ponto de vista deste autor, no logro, na «ilusão» de ser «o alvo exclusivo das palavras de Pessoa». Como bem analisou José Gil no texto do primeiro capítulo deste livro, o «plano-multidão» (o da voz, das vozes, da multiplicidade das vozes) pode induzir em dois sentidos distintos mas passíveis de se confundirem, salvo algumas condições que o autor clarifica. Sem poder ir mais longe na sua análise, posto que o espaço deste texto assim o exige, limito-me a citar dois passos finais desse capítulo do Devir-Eu de Fernando Pessoa encaminhando o leitor: «Ilusão, é certo, cultivada pelo próprio Pessoa: como se, de repente, o mundo se abolisse, o plano-multidão desvanecesse, e o leitor se julgasse o alvo exclusivo das palavras de Pessoa. Seria um falso devir-Pessoa, um mimetismo grotesco ou paralisante». No entanto, acrescenta-se, «a poesia pessoana suscita também um outro devir-Pessoa. Aquele que vem da força de atracção da espontaneidade da sua escrita-proferição, da sua escrita-fala intensiva. Cada heterónimo se exprime a partir dessa força primitiva espontânea. É ela que atrai e subjuga. Mas levando o leitor a entrar no plano multidão, a tornar-se ele próprio singular e contaminante. Não a abismar-se num Eu oco sem fundo, mas a entrar, como Álvaro de campos, “na substância do mundo» (Ibid.,p.32). Creio modestamente que a minha leitura poderá evitar estes riscos bem como a armadilha de uma imaginação psicológica ou até psicologista em torno do sujeito-Pessoa, do Eu-Pessoa. É o que tentarei elucidar.
A escrita e a terra de ninguém
3. Por vezes, a aparente secura da sua escrita, por muitos acusada de pouco ou não-poética – misto de prosa e poesia, entre o pensamento abstracto e o poético – é o que abre para o que chamarei uma terra de ninguém. Nesta terra de ninguém entra o mundo abstracto e geométrico de mapas e sinais mágicos: «desde que, perdida enfim a fé no esforço, me quero abandonar ao extravio, um termo clássico [plácido], um adjectivo espacial e sóbrio, fazem-me de repente, como uma luz de sol, ver clara deante de mim a página escripta dormentemente, e as lettras da minha tinta da caneta são um mappa absurdo de sinaes mágicos» (L.d.D. II p.37).
Por outro lado, as supostas aridez, secura, nulidade, neutralidade, quer dizer, «o signo do insignificante» das personagens, podem ser compreendidos num belo passo de um livro de Eduardo Lourenço que exemplifica a «única personagem» que é o «acto da escrita» enquanto elemento decisivo: «Na verdade, por mais surpreendente que seja o olhar – um olhar absolutamente neutro – que Bernardo Soares pousa sobre os telhados de Lisboa, sobre a face quotidiana e sobrenatural do mais insignificante dos companheiros de mesa ou de escritório, sobre a própria vida -, oscilando incessantemente entre a consciência da sua nulidade e a exaltação quase feliz da sua pouca existência, a única personagem deste verdadeiro-falso diário é o acto da escrita. Na escrita, o signo do insignificante subverte-se inexplicavelmente e a extraordinária irrealidade das coisas torna-se real» (Eduardo Lourenço, O Lugar do Anjo, p.105).
Esta parada, este contraponto entre «o acto da escrita» e a «própria vida», nas palavras de Eduardo Lourenço, cria um clima, uma espécie de região. Há uma pequena distância. Uma certa indiferença inscrita no cálculo e no cuidado do «acto da escrita». Essa distância é uma espessura ou um intervalo: «Quantos sou? Quem é eu? O que é este intervallo que há entre mim e mim?» (L.d.D. I, p.25). Intervalo que pode deslocar-se através do chamado sujeito da escrita, da sua vida, da realidade, do sonho, e do espaço-tempo do leitor. Digamos uma espessura do invisível.
Pessoa não escrevia só rápida e automaticamente, escrevia também pausadamente. A lentidão da escrita a) e a lentidão do sujeito poético b), se assim se pode dizer, cruzam-se e produzem um efeito de lugar indeterminado onde o imaginário deixa de limitar-se ao espírito do leitor e ao espírito do escritor. Exemplo para a): «Escrevo demorando-me nas palavras» (algures no L.d.D.). Exemplo para b): «Vou num carro electrico, e estou reparando lentamente, conforme é meu costume, em todos os pormenores das pessoas que vão adeante de mim. Para mim os pormenores são coisas, vozes, lettras (ou frases). Neste vestido de rapariga que vae em minha frente decomponho o vestido em o estofo de que se compõe, o trabalho com que o fizeram [...]» (L.d.D, I, 163, p.184).
Por outro lado, o cuidado e a demora da escrita reenviam para uma espécie de exactidão que não é propriamente emissora de sentidos pretensamente verdadeiros e exactos. É antes a exactidão do corte da ‘pena’ que responde mas também emite num espaço ressoante que se vai determinando numa escrita que parece estar a escrever-se. A escrita cruza-se com o gesto físico de escrever. Noutra perspectiva Eduardo Lourenço escreve citando Bernardo Soares: «O sentido é o Verbo exacto: nada há de real na vida que o não seja pelo simples facto que foi bem escrito”» (Op.cit, p.51). O «bem escrito» não é o mero escrever bem. O bem escrito é, por exemplo, o efeito de um «adjectivo» no «sítio exacto» desencadeando uma alteração da «paisagem» enquanto «escrita do ser» (Ibid, p.51): «[...] basta que um adjectivo, colocado no sítio exacto, ilumine a paisagem como um relâmpago para que o não-ser do mundo se suspenda e se transforme em escrita do ser» (Ibid, p.107). Por outras palavras, a exactidão faz-se não por uma colagem ou adequação, mas pelo efeito, digamos, de segmentação da escrita. Esta segmentação, este recorte cuidado, opera uma espécie de desdobramento resultante de um cruzamento das sensações do trabalho da escrita, do acto de escrita, dos movimentos, das letras, das palavras, das paisagens, do corpo e dos espaços brancos.
Quer dizer, em Bernardo Soares o trabalho da escrita é um trabalho no que se escreve e se trabalha ao escrever. Descreve-se o processo de como a própria escrita se vai des-crevendo ao escrever enquanto gesto corporal do autor: «As phrases que nunca escreverei, as paisagens que não poderei nunca descrever, com que clareza as dicto, à minha inercia e as descrevo na minha meditação, quando recostado, não pertenço, senão longinquamente, à vida. Talho phrases inteiras [...]» (L.d.D., II, 368, p.108). O espantoso é que, neste processo, Soares ao mesmo tempo (ou quase?) está a descrever paisagens em escrita na medida em que, ao escrever sobre a sua impossibilidade, desencadeia outras paisagens: «Em certa altura da cogitação escripta, já não sei onde tenho o centro da attenção – se nas sensações dispersas que procuro descrever, como a tapeçarias incognitas, se nas palavras com que, querendo descrever a propria descripção, me embrenho, me descaminho e vejo outras cousas» (Ibid., 304, p.307).
Mas este movimento é só do lado da escrita? E de que escrita se está a falar? A escrita pessoana é também o jogo espácio-temporal de memória. Porque é que é um jogo espácio-temporal de memória? Em que sentido se fala aqui de 'memória'? O poeta produz na leitura com os movimentos das sensações e as sensações dos movimentos um processo de retrojecção e projecção espácio-temporal. Um jogo não só de passado para o presente e vice-versa mas, creio poder dizer, para o futuro. É por isso que o leitor se sente projectado para atmosferas que não são datadas. Ou antes, são uma intersecção de tempos. Elas catapultam-no para um futuro ou um tempo indeterminados em relação ao nosso presente e ao presente que Pessoa viveu, fundindo-os no entanto imprevisivelmente. João Botelho parece ter intuído esse efeito chamando-o «distorção do tempo» (disse-o numa entrevista) e transformando-o em linguagem cinematográfica no seu excelente filme recentemente realizado - «Filme do Desassossego» (2010) - onde consegue recriar em cinema um Bernardo Soares. Pena é que não tenha captado o pautamento, a demora do escrever de Soares («escrevo demorando-me nas palavras») focando somente o seu carácter rápido e automático. Que me perdoem os entendidos, mas na minha ignorância sobre estas matérias creio que a forma extraordinária como Botelho move lentamente a sua câmara, na esfera da escrita cinematográfica, parece-me compensar de alguma maneira essa falta.
Jogo e máscaras
4. De outro ponto de vista, poderemos supor que o próprio Pessoa convivia na sua vida quotidiana com as suas «máscaras». Leia-se uma belíssima passagem de António Tabucchi (Pessoana Mínima, INCM, 1984, p.70) citando Roland Barthes, a propósito de um retrato de Pessoa tirado em estúdio: «Em Janeiro de 1914, ou seja, cerca de dois meses antes daquele dia 14 de Março que vê o nascimento triunfal dos heterónimos maiores («foi o dia triunfal da minha vida e não poderei nunca mais ter outro assim», diz na carta a Casais Monteiro), Fernando tira um retrato para mandar à tia Anica, à qual o ligava um terno afecto. É um retrato singular e vale a pena examiná-lo. Trata-se de uma fotografia tipo carte-postal, daquelas que se usavam na época para mandar às pessoas queridas. É uma pose de estúdio, com fundo neutro, como tantas. Mas «puisque toute photo est contingente – par la même hors de sens» [La chambre claire], como afirma Roland Barthes, «la Photographie ne peut signifier – viser une généralité – qu’en prenant un masque». O que é realmente singular é que Fernando veste um sobretudo escuro e um chapéu preto, como não era costume usar-se nos estúdios, onde a regra era «posar» em cabelo e de casaco. Dir-se-ia que o fotografado pretende sublinhar uma falta de autenticidade, uma impostura: como se quisesse imitar a imagem de si próprio («Je ne cesse pas de m’imiter, et c’est pour cela que chaque fois que je me fais photographier, je suis immanquablement frôlé par une sensation d’inauthenticité, parfois d’imposture…» [Barthes, Op.cit.]).» Na dedicatória dessa foto Fernando Pessoa escreve: «… provisoria representação visível de si-proprio…» (Pessoana Mínima, p.79).
Outros exemplos poderiam ser dados. Os frequentes instantâneos tirados caminhando nas ruas do Rossio, Baixa e Chiado. Dir-se-ia uma figura de ficção (do latim, fictio, de fingo; «fingir é conhecer-se») através da superfície de inscrição da fotografia. Uma figura estilizada, “quase parecendo fotogramas de um filme sobre o seu andar” (Fotobiografia de Fernando Pessoa, texto de R. Zenith,p.140, vj. bibli.). O jogo das máscaras, dos simulacros e dos fingimentos poderá estender-se a outras análises. Por exemplo, segundo o dizer do poema Autopsicografia parece ser necessário fingir o fingimento («finge tão completamente»), para que nessa dobra, nessa repetição, nesse reforço, nessa afirmação da negação do fingir (ao afirmá-lo) e ao mesmo tempo nessa negação dele (pois fingir o fingir é também negá-lo) se abram outros sentidos potencialmente infinitos. Não se trata tanto de dois modos de fingir e de dois modos de verdade que abram ainda para outro sentido de verdade e fingimento, num círculo ou quadrado que se fechariam. Mas de um espaço que partindo da multiplicidade virtual de sentidos faça o leitor saltar fora de um perímetro redutoramente terminológico e dualista:
O poeta é um fingidor.
Finge tão completamente
Que chega a fingir que é dor
A dor que deveras sente.
E os que lêem o que escreve,
Na dor lida sentem bem,
Não a dor que ele teve,
Mas só a que eles não têm.
[…]
Fernando Pessoa
Noutro ângulo, repare-se na lucidez de Pessoa quanto ao risco de parte da sua obra - ou da sua obra em parte? - ser considerada pouco ou «não-poética», neste caso pela mão de Caeiro segundo Ricardo Reis citado por Eduardo Lourenço: «Esta forma de olhar uma pedra pode ser definida como a maneira totalmente não-poética de olhá-la. O que é inacreditável em Caeiro é que ele cria poesia a partir desse sentimento. Sente positivamente aquilo que até agora não podia ser concebido senão como sentimento negativo» (Op.cit.,p.69). Não se trata propriamente de imagens nem de percepções dadas no sentido fotogramático. Também não se trata de um suposto plano inteligível. Usando uma metáfora, a atmosfera que daí decorre é como uma onda, um estado de coisas que banha o leitor como um recosto (citou-se acima no §3 um passo com este termo): “Encostei-me para trás na cadeira do convés e fechei os olhos, / E o meu destino apareceu-me na alma como um precipício./ A minha vida passada misturou-se-me com a futura, / E houve no meio um ruído do salão de fumo, / Onde, aos meus ouvidos, acabara a partida de xadrez.” (vj. bibli., Poesias de Álvaro de Campos, org. António Quadros).
Outras escritas
5. «Tornei-me numa figura de livro» (L.d..D, I, 212). Esta zona espectral, pelicular, «virtual» - à maneira de um ecrã desfocado de televisão mal sintonizada, ou de uma fotografia mal tirada - é o resultado desse desdobramento produzido literariamente: «O que quer isto dizer? Que verdade é esta que uma pellicula não erra?» (L.d..D., I, 153). Zona de inscrição das linhas delimitativas desdobradas das figuras, das personagens, das máscaras, das sensações, dos duplos, das sombras nos seus movimentos por vezes au ralenti. Esta zona seria o solo estruturante do espaço-imaginário poético. Aliás, na sua maturidade poética não terá sido Fernando Pessoa um sublime escriturário («correspondente estrangeiro em casas comerciais», definição escolhida por ele mesmo; vj. Fotobiografia, p.64) a par de um sublime poeta? «E, com um sorriso que guardo para meu, lembro que a vida, que tem estas paginas com nomes de fazendas e dinheiro, com os seus brancos, e os seus traços á regua e de lettra, inclue também os grandes navegadores [...]» (L.d.D., I, 150, p.166). «Escrevo como quem dorme e toda a minha vida é um recibo por assignar (Ibid., I, 211)». Aliás, ouso dizer que quem não consegue sorrir e mesmo rir com Pessoa não compreendeu suficientemente a sua obra. Uma ironia subtil vai atravessando o seu labor es-crítico, digamos assim, como quem, apesar de tudo, se sente, não si-mesmo, mas especial companhia de si-mesmo, o que é diferente. Foi isso sem dúvida que lhe deu alento e conforto para transformar, no seu «outrar», os por vezes aparentes tédio e melancolia da sua vida e da sua escrita num certo gozo da escrita e da vida: «Se houvesse de inscrever […] a que influências literárias estava grata a formação do meu espírito, abriria o espaço ponteado com o nome de Cesário Verde, mas não o fecharia sem nele inscrever os nomes do patrão Vasques, do guarda-livros Moreira, do Vieira caixeiro de praça e do António moço do escritório» ( L. d. D., 130, p.150 na edição de Richard Zenith).
Não sei se isto chocará alguns especialistas mas Bernardo Soares terá sido de algum modo um técnico da escrita ímpar. Mas técnico da escrita em que sentido? Frequentando até altas horas as firmas onde trabalhava com autorização dos patrões enquanto correspondente estrangeiro em casas comerciais ou «contabilista» nas palavras de Eduardo Lourenço (ver L.d.A. p.107). Utilizando as máquinas de escrever e os papéis das contabilidades para adiantar serviço em horários mais livres ao mesmo tempo que aí empreendia a escrita da sua obra e a do «ajudante de guarda-livros». Jogando estas duas tarefas uma com a outra, mantendo-as a par e ao mesmo tempo reciprocamente independentes. «Tenho ternura, ternura até às lágrimas, pelos meus livros de outros em que escrituro, pelo tinteiro velho de que me sirvo, pelas costas dobradas do Sérgio, que faz guias de remessa um pouco para além de mim» (L.d.D., 7, na edição de R.Zenith).
Extrapolando do contexto do livro A Origem da Obra de Arte de Martin Heidegger - que pensa a obra de arte plástica («as botas de camponesa» de Van Gogh) - para o poema, digamos que a pro-dução do poema no seu “carácter coisal” de obra confere-lhe um estatuto de corporalidade, de objecto de arte. Mas não tanto como objecto. Por exemplo, Pessoa no seu texto «Sobre a arte e o artista, ontologia da obra de arte» em «Páginas sobre literatura e estética» e na sequência de uma reflexão sobre a possibilidade do «poema» («suponha-se um poema, que penso escrever», Ibid, p.25) como «obra de arte», alude ao poema enquanto «objecto» ou «cousa». Mas não um suposto objecto na oposição ao sujeito. Pessoa fala de «objectivação». Esta diferença é subtil: «Vejamos o que quer dizer objectivação. A palavra implica a redução da ideia, ou seja o que for (que há-de ser ideia, e não objecto, para poder dizer-se que se objectiva) à categoria de cousa análoga a qualquer cousa que ocupa o mundo exterior» (Ibid, p.27).
Nada e tudo
6. «Crochet das coisas... Intervallo... Nada....» (L.d.D.,I,12,p.12).; «Sou o intervallo entre o que sou e o que não sou, entre o que sonho e o que a vida fez de mim, a media abstracta e carnal entre coisas que não são nada, sendo eu nada também» (L.d.D.,I,154, p.172).
Com Pessoa é preciso deixar vir à presença o que na aparência já nada tem a ver com a literatura: o carácter material-corporal do acto de escrever. É que, repetimo-lo, há uma dimensão física, corporal na escrita de Pessoa que muitas vezes passa despercebida. A cómoda (escrever de pé o Guardador de rebanhos, Chuva Oblíqua), mesa, papel, tinta, caneta, bico da caneta, corpo, sensações e movimento enquanto escreve o que escreve, etc. Mas o que aparentemente nada tem a ver com literatura tem-no parcialmente. Porquê parcialmente? Porque, por outra parte, há também um ‘nada’, um outro nada correlativo, diríamos assim, no dizer e no pensar poéticos. É o nada que escapa, se retira ao pensar e dizer poéticos enquanto tais. Ambas as polarizações, os dois nadas no seu extremar, se transmudam nesta gama de movimentos parciais. Sem querer forçar textos e contextos cite-se de passagem Jacques Derrida: «de uma certa maneira, ‘o pensamento’ não quer dizer nada» (2). Leia-se Fernando Belo num excelente passo do seu opúsculo Seja um Texto de Paixão, §7, Suplemento ao livro «Filosofia e ciências da linguagem, ed. Colibri»: «[…] a resistência do poema ao resumo, à paráfrase, à explicação, e mesmo à tradução em outra língua, a qualquer equivalência de sentido entre o que o poema diz e o que poderia ser (e nunca é) o mesmo sentido dito de forma não literária». E no entanto o pensamento atravessa o pensador e o poeta, embora de modo diferente em cada um e ainda pouco pensado ou até impensado. Como sugere Martin Heidegger: «Conhece-se sem dúvida muitas coisas sobre as relações da filosofia e da poesia. Mas nada sabemos do diálogo entre poeta e pensador que «habitam próximos sobre os montes mais separados» (Martin Heidegger, O que é a Metafísica?). Heidegger, vale a pena lembrar, foi leitor e escreveu sobre Hölderlin, Stefan George, Georg Trakl, Rilke, entre outros. Tendo sido amigo de René Char, poeta e Resistente francês ao regime nazi na Segunda Guerra Mundial. Há pois também ‘pensar’ na poesia: “a alta poesia pensa” (Fernando Belo, Ibid., §8). A poesia pensa na condição de haver um pensar que não seja estritamente significável: «Não: não quero nada. Já disse que não quero nada. Não me venham com conclusões!» (Campos, Lisbon Revisited, 1923, vj. bibli.). «Aquilo que com tantas preocupações a palavra crítica se esforça por alcançar, a poesia o é na sua fulgurância de sonho” (Eduardo Lourenço, Pessoa Revisitado, p.105). E Caeiro:
«Constituição íntima das coisas»...
«Sentido íntimo do Universo»...
Tudo isto é falso, tudo isto não quer dizer nada.
É incrível que se possa pensar em coisas dessas.
É como pensar em razões e fins
Agora, talvez se possa compreender como o ‘nada’ se joga com o ‘tudo’ em Fernando Pessoa. O ‘nada’ é complexo, e não se limita a um niilismo fatal. Daí o mito, «o nada que é tudo» da Mensagem de Pessoa. Ou ainda Álvaro de Campos no poema Tabacaria:
Não sou nada.
Nunca serei nada.
No entanto Campos acrescenta: Não posso querer ser nada.
E: À parte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo.
“À parte isso”, mas a partir disso também, esse nada que se des-nada (“Não posso querer ser nada”), se assim se pode dizer, é condição de possibilidade de “todos os sonhos do mundo”.
Voltando ao 'nada' material-concreto da escrita e ao 'nada' imaterial-abstracto' talvez como nenhuma outra a singularidade da escrita de Pessoa alcança as margens destes dois nadas. No entanto estes acabam por não se reduzir a 'nada' no sentido vulgar. Como é que escapam a um mero nada vulgar? É que nem a escrita material é meramente material e plástica escapando ao dizer poético da escrita, nem a escrita abstracta do pensamento é meramente abstracta escapando ao sentido poético. Por isso também poeticamente «Há metafísica bastante em não pensar em nada», diz o Mestre Caeiro. Pessoa, de modo subtil faz a travessia do suposto pensamento não-poético no poético. Eis que neste ponto a nossa reflexão oscila. Mas deixemo-la oscilar com a força da escrita de Pessoa.
Por outro lado, os dois nadas referidos como dois pólos apelam um ao outro na sua abrupta separação. Ou seja, por aquilo em que à partida nada têm a ver um com o outro. Transformando nestes contextos o questionamento do que é proximidade e distância sem que ambas desapareçam do horizonte do pensamento e da existência. Proximidade e distância instalando o espaço real mas também o espaço do imaginário e porventura literário. Não poderá residir aqui o que se chama «espaço literário» na análise de Maurice Blanchot (3)?
Outro elemento que provavelmente nos ajudará a compreender a intersecção, até a intercepção, destes dois nadas na escrita pessoana é o da “personalidade literária” ou “personagem” que foi Bernardo Soares segundo João Gaspar Simões (4). Este «não-heterónimo, quando muito semi-heterónimo como o próprio Fernando pessoa reconhece» (Ibid., p.163). A mediação (semi-heterónimo) entre o heterónimo e o não-heterónimo instala-se anulando estes dois pólos mas negando-se também porque precisa deles. Todavia, abre-se assim uma outra mediação; dá-se a mutação da mediação. Um novo espaço-tempo. Num magnífico passo, Gaspar Simões sugere uma espécie de Bernardo Soares desdobrado que, digamos assim, seria qualquer coisa de espectral, de pelicular: «Para todos os efeitos, repetimos, entre quem supostamente se confessa, nos fragmentos do Livro do Desassossego, «ajudante de guarda-livros na cidade de Lisboa» e esse mesmo virtual «ajudante de guarda-livros na cidade de Lisboa» não há mais nada em comum além da circunstância daquele que escreve as páginas do referido livro a cada passo aludir à condição profissional -«ajudante de guarda livros»- do redactor desse livro» (Ibid., p.165).
Retomando o ponto de partida deste §6, aquilo de que aparentemente estamos a tratar, a escrita pela escrita (que supostamente já nada tem a ver com a escrita poética), por um lado, e o pensamento abstracto que se pretende e supõe definidor - mas que por isso mesmo supostamente também já nada tem a ver com o conteúdo poético - fundem-se e transmudam-se estruturando um outro terreno aberto de reflexão literária. Talvez abrindo-se novos caminhos para a transdisciplinaridade e para a relação realidade/ficção.
Conclusão
7. […]
Acho tão natural que não se pense
Que me ponho a rir às vezes, sózinho,
Não sei bem de quê, mas é de qualquer coisa
Que tem que ver com haver gente que pensa...
Que pensará o meu muro da minha sombra?
[…]
Que pensará isto daquilo?
Nada pensa nada.
(Caeiro)
Finalizando e repetindo alguns pontos, não será que paradoxalmente entre aqueles dois nadas, entre esses não-ser, poderá haver um nada, um terceiro nada, quer dizer, uma espécie de vazio entre eles? Parece difícil de apreender, pois o nada, os nadas nada delimitam. Paradoxalmente ainda, pode-se dizer que se inscreve aí um elemento, um meio que não é uma mediação, uma intermediariedade no sentido habitual. Numa palavra, diria que ambos os nadas, no seu extremar, no seu excesso polarizado, refluem intersectam-se no espaço indefinido entre eles a tal ponto que o seu anterior sentido na polarização se transmuda nesta nova mediação, transmudando esta por sua vez. No entanto, estas duas instâncias devém múltiplas nas gradações pro-duzidas. Superam-se assim os dualismos através da inovação do pensamento e dos movimentos da escrita de Fernando Pessoa. Eis que se nos afigura um meio, um elemento na plena acepção da palavra. “Substância do mundo” como escreve Álvaro de Campos.
A dimensão imaginária da obra de Pessoa não se reduz às da literatura e da poesia tal como são habitualmente supostas. 1) Por um lado, como se viu, na medida em que ela extravasa para o carácter parcialmente não literário ou poético da mera materialidade e corporalidade da inscrição (caneta, papel, tinta, etc.). 2) Por outro, na medida em que extravasa para o carácter do sentido, do pensamento, que escapa sempre, paradoxalmente, a qualquer explicação ou captação do dizer poético (apesar da obra pessoana tanger o pensamento conceptual-abstracto sem a ele se limitar).
A escrita de Pessoa inscreve-se no campo da poesia e da literatura, mas acima de tudo na poesia, seja em verso ou em prosa. Ela pro-duz, como vimos, uma articulação singular ao material, ao corporal (ver acima 1)), ao mesmo tempo que estabelece a ponte com o pensamento abstracto (ponto 2)). Assim, estes dois campos refluem, no seu excesso, no campo habitualmente tido como literário, transformando-o.
Objectar-se-á que esta tese nada traz de novo, pois implicitamente a sua pretensão, já antiga, dada e adquirida, é a de relacionar a realidade com a literatura. Tentemos elucidar a questão. Tanto um pólo como o outro (1 e 2) que, à partida, nada tinham a ver com literatura, afinal têm mas já de outra maneira. Como de outra maneira? A realidade material e corporal do inscrever da caneta, do papel e da tinta (ou do dactilografar), riscos, rabiscos 1), e a dimensão do pensamento abstracto e conclusivo («Não me venham com conclusões!» […] «Tirem-me daqui a metafísica!» Campos, Lisbon Revisited, 1923) 2) que supostamente já nada têm a ver com literatura, repassam por dentro e por fora, transformando-os, os supostos espaços, já pretensamente dados e adquiridos, da realidade e da literatura. Um exemplo de 1): «Escrevo atentamente, curvado sobre o livro em que faço a lançamentos a história inútil de uma firma obscura; e ao mesmo tempo o meu pensamento segue, com igual atenção, a rota de um navio inexistente por paisagens de um oriente que não há. As duas coisas estão igualmente nítidas, igualmente visíveis perante mim: a folha onde escrevo com cuidado, nas linhas pautadas, os versos da epopeia comercial de Vasques e C.ª, e o convés onde vejo com cuidado, um pouco ao lado da pauta alcatroada dos interstícios das tábuas, as cadeiras longas alinhadas, e as pernas saídas dos que sossegam na viagem». Reenviando o corpo para o acto de escrita e para o seu dizer. Segue-se um breve exemplo de 2): «metafísica das sensações», reenviando a esfera da metafísica para as sensações do campo poético (5). Mais do que um movimento por dentro há um movimento por fora - de fora - voltando às próprias coisas e transmudando o sentido habitual do que é inerente à literatura. Deste modo estrutura-se um outro espaço literário, usando de novo a expressão de Maurice Blanchot, abrindo-se um novo terreno para o plano poético. Tarefa que a experiência da escrita de Pessoa que aqui tentámos elucidar ajudará porventura a compreender.

Luís de Barreiros Tavares

16/12/2010

Notas:
(1) Este breve estudo não se enquadra no que é comum chamar-se análise literária. Em primeiro lugar porque o nosso propósito não é esse, embora se trate de uma reflexão sobre a linguagem poética. Enfim, uma reflexão sobre a esfera literária. O que naturalmente implica uma relação à dimensão literária, mais propriamente poética e preliminarmente à questão da linguagem.
Em traços largos, a tese esboçada neste breve estudo consiste em focar alguns elementos que aparentemente nada têm a ver com poesia e literatura. No entanto, tenta-se demonstrar como esses elementos podem não só ter a ver com poesia e literatura como também poderão contribuir para novas formas de leitura neste âmbito. Por certo seria interessante articular com as linhas de força deste texto uma análise literária, por exemplo, nos campos semiótico e linguístico. Mas modestamente tal tarefa ultrapassa a minha competência.
Respeita-se a ortografia da edição do L.d. D. da Ática (1982).
(2) Derrida , J, De la Gramatologie (1967), Ed. Minuit, Paris, 1992, p.142.
(3) Noutro plano ver o nosso texto no site da SLP :
(4) Ver o Apêndice “O Livro do Desassossego, um falso diário íntimo” in João Gaspar Simões, Fernando Pessoa, breve história da sua vida e obra, Lisboa, Difel, 1983, p.164.
(5) Sobre este tema ver Gil,J., Fernando Pessoa ou a Metafísica das Sensações, Trad. M.S. Pereira, Relógio D'Água, Lisboa, 1987.
Bibliografia de Fernando Pessoa:
Pessoa, F., (Obras de Fernando Pessoa), O Livro do Desassossego, por Bernardo Soares, edição Richard Zenith, Assírio e Alvim, Lisboa.1998.
Pessoa,F., Livro do Desassossego, por Bernardo Soares, Ática, 2 vol., (recolha e transcrição dos Textos de Maria Aliete Galhoz e Teresa Sobral Cunha., Pref. Jacinto do Prado Coelho), Ática, Lisboa, 1982.
Pessoa, F., Obra em Prosa de Fernando Pessoa, Textos de Intervenção Social e Cultural, A ficção dos Heterónimos, Eur.Amér, Intr. e Org. A. Quadros, 1986.
Pessoa, F., Poemas de Alberto Caeiro, ed. bilingue, trad. Pablo del Barco, Ed. Visor, Madrid, 1980.
Pessoa, F., Poesias de Álvaro de Campos, in Obra poética de Fernando Pessoa, Intr. org. de António Quadros, Eur. Amér., 1986.
Pessoa, F., Obra poética de Fernando Pessoa, Poesias I, II e III, Intr. org.António Quadros, Eur.América, 1986.
Pessoa, F., Páginas sobre Literatura e Estética, Intr. org. A.Quadros, Eur. América, 1986.
Zenith, R., Fernando Pessoa: Fotobiografia, Lisboa, Círculo de Leitores, 2008.
Outros autores:
Belo, F., Seja um Texto de Paixão (Suplemento ao livro Filosofia e Ciências da Linguagem), Colibri, Lisboa, 1993.
Blanchot, M., L’Espace Littéraire, [1955], Folio, Paris, 2007.
Derrida , J, De la Gramatologie (1967), Ed. Minuit, Paris, 1992.
Gil,J., Fernando Pessoa ou a Metafísica das Sensações, Trad. M.S.Pereira, Relógio d'Água, Lisboa, 1987.
Gil, J., O Devir-Eu de Fernando Pessoa, Relógio d’Água, Lisboa, 2010.
Heidegger, M., A Origem da Obra de Arte, trad. Maria da Conceição Costa, Ed.70, Lisboa, 1992.
Heidegger, M., Qu’est-ce que la Métaphysique ? in Questions I, trad. Henry Corbin, Gallimard, Paris, 1990.
Lourenço, E., Pessoa Revisitado, Leitura estruturante do drama em gente, Gradiva, Lisboa, 2003.
Lourenço, E., O Lugar do Anjo, ensaios pessoanos, Gradiva, Lisboa, 2004.
Simões, J. G., Fernando Pessoa, breve história da sua vida e obra, Lisboa, Difel, 1983.
Tabuchi, A., Pessoana Mínima, INCM, Lisboa, 1984.

Parte deste texto sobre Fernando Pessoa (§3) foi publicada no nº 8 da revista Nova Águia: Luís Tavares, (2011), 2º semestre, «Pessoa : A escrita e a terra de ninguém» Revista Nova Águia, nº8, pp. 161-162.

Agradeço a revisão do texto à Dra. Elsa Rodrigues dos Santos.


Desenho: Fernando Pessoa; pincel, tinta da china em papel Canson Ingres Vidalon, 2010.
Por Luís de Barreiros Tavares
Desenho oferecido a Eduardo Lourenço

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Outras pistas, notas e motes. Alguns lidos posteriormente à realização deste texto.

"(...) dá-se uma dupla transformação através da assunção dos nomes próprios do autor e do editor. O primeiro produz escrita por sobre a prosa prosaica, o segundo cria um livro, ele que não fazia senão guardá-los: "Escrevo atentamente, curvado sobre o livro em que faço lançamentos a historia inutil de uma firma obscura; e, ao mesmo tempo, o meu pensamento segue, com igual attenção, a rota de um navio inexistente por paisagens de um oriente que não ha" (p.122) [L do D]. O desdobramento ficcional não se produz tanto pela construção de um espaço imaginário, mas pela duplicidade da escrita que irrompe do texto. A prosaica escrita que ele [Bernardo Soares] vai lançando no papel é e não é "a historia inutil de uma firma". Se é essa referência que constitui o efeito de real, é essa, no entanto, a que é objecto de ficcionalização pelo próprio acto de escrita. A maior ficcionalidade advém, paradoxalmente, do elemento mais verosímil, porque mais prosaico: "a folha onde escrevo com cuidado, os versos da epopeia commercial de Vasques e Cª". A única convergência com o real é pois a de tomar a escrita escrevendo-se: "Avanço a penna para o tinteiro (...) Começo" (Ibid)."

Maria Augusta Babo, A escrita do livro, Lisboa, Vega, col. Passagens, 1993, pp.184-185.

"Na linguagem verbal, a voz e o gesto na oralidade e o traço da mão na escrita permanecem ainda como vestígios do corpo e é sobretudo por essas duas vias (da voz e do gesto), que irrompem o pulsional e o "impensado" da linguagem, provocando frequentes desencontros ou diferimentos entre a palavra dita e a entoação do dizer, ou entre a palavra dita e a gestualidade."

Maria Lucília Marcos, Princípio da Relação e Paradigma Comunicacional, Lisboa, Edições Colibri, 2007, p.50.
"A poesia não vem simplesmente da imaginação, nem da inspiração, nem do esforço. Ela extrai-se das coisas, dos dias que passam, e também dos livros de poesia. Não precisa de ser escrita, pode ser o efeito de um risco de um lápis, como é o caso da poesia de Fernando Pessoa aqui exposta. Esta poesia é formada materialmente pelos riscos de Pessoa que um dia, talvez sem intenção, a extraiu das Poésies de Mallarmé. Não se trata de simples frases, que depois se foram transmutando em poesia, escorrendo para as letras em português. É antes poesia material do lápis e de um olhar que desintegra o texto, libertando outros poemas que contém dentro. Subtraindo a Mallarmé algo que o complicava, simplificando-o absolutamente, e ao mesmo tempo criando as pontes por onde a poesia vai errendo em busca de poetas. Será absurdo dizer que encontrei um inédito de Pessoa?"




José A. Bragança de Miranda, Envios, uma experimentação filosófica na internet, Lisboa, Vega, 2008, pp.116-117.


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"A imagem da linha não é casual. Tal como, numa linha de escrita, o ductus da mão passa continuamente da forma comum das letras aos traços particulares que identificam a sua presença singular, sem que em nenhum ponto, apesar da precisão do grafólogo, se possa traçar uma fronteira real entre as duas esferas, assim, num rosto, a natureza humana passa de modo contínuo na existência, e precisamente esta incessante emergência constitui a sua expressividade."

Giorgio Agamben, A Comunidade que Vem, Trad. A. Guerreiro, Lisboa, Presença, 1993, p.23.


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"Mas devemos ser sensíveis, na obra completa de Pessoa, a um materialismo poético bastante particular. Se bem que seja um grande mestre da imagem surpreendente, este poeta reconhece-se à primeira leitura numa espécie de nitidez quase seca do dizer poético. É, aliás, por isso, que ele consegue integrar na própria sedução poética, uma dose excepcional de abstracção. Digamos que, constantemente preocupado com que o poema não diga exactamente aquilo que diz, Pessoa propõe-nos uma poesia sem aura. Não é nunca na sua ressonância, na sua vibração lateral, que é preciso procurar o porvir do pensamento-poema, mas na sua exactidão literal. O poema de Pessoa não procura seduzir ou sugerir. Por muito complexa que seja a sua composição, ele é em si mesmo, de forma cerrada e compacta, a sua própria verdade. Digamos que, ao contrário de Platão, Pessoa parece dizer-nos, que a escrita não é uma obscura reminiscência, sempre imperfeita, dum algures ideal. Que, pelo contrário, ela é o próprio pensamento, tal qual."

Alain Badiou, Meditações Filosóficas, Pequeno Manual de Inestética, Volume II, , trad. Joana Chaves, Ed. Instituto Piaget, 1999