quarta-feira, 3 de maio de 2017

José-Augusto França, "Guilherme Pobre – Santa-Rita Pintor", Revista Nova Águia, nº19, 1º semestre, 2017, pp. 168-177, Zéfiro.


  


                                       

                            Guilherme Pobre – Santa-Rita Pintor

                                                  José-Augusto França

"São quatro quadro que emanam da alta sensibilidade moderna do meu amigo Santa Rita Pintor." (Álvaro de Campos, sobre os extra-textos na Orpheu 2)

Nota: adicionámos imagens nesta versão online

Abertura[1]: Muito se tem falado, escrito, e muito bem, como acabámos de ver ou de ouvir, sobre Fernando Pessoa – a múltipla personalidade de Pessoa – sobre Sá-Carneiro, Almada Negreiros, Amadeo de Souza-Cardoso, entre os de Orpheu. Mas o colaborador mais evidente do fatídico 2 de Orpheu foi Santa-Rita Pintor. Fernando Pessoa e Mário de Sá-Carneiro dedicaram-lhe poemas na sua própria colaboração no nº 2, onde ele tem os seus 4 extra-textos que revelam uma nova personalidade na criação artística portuguesa. Também se deve a um dos colaboradores desse número do Orpheu, Raul Leal, o primeiro texto de interpretação de Santa-Rita Pintor daí a ano e meio na revista Portugal Futurista. Assim tem sido e assim continuará a ser, naturalmente. O génio dos outros quatro necessita de exegeses sucessivas, mas talvez também Santa-Rita Pintor precise de mais alguma atenção. Alguma atenção lhe vou dar neste texto chamado “Guilherme Pobre” que a si mesmo ele se anunciava.
Leitura do texto: Pouco se sabe da vida breve de Santa-Rita, nascido em Lisboa em 1889 e falecido em 1918, em Abril. Foi como bolseiro a Paris em Abril de 1910 como escolar das Belas Artes de Lisboa. Não ingressou na escola parisiense, tendo falhado nas provas de admissão. Perdeu a bolsa em 1912, por conflito com o embaixador da recente República Portuguesa, o jornalista militante João Chagas, quando ele – Santa-Rita – se gabava de ser monárquico, admirador de D. Carlos (“artista”), pronto a escrever sobre a obra dele. E que havia investido no desejo da restauração que lhe daria poder e deveria ser acompanhado pelo regresso dos Jesuítas que a república expulsara, e também a  reinstauração da Inquisição. Sabemo-lo por cartas de Sá-Carneiro a Fernando Pessoa, de 1915, já ele regressara a Lisboa em Setembro do ano anterior por causa da Guerra [1ª Grande Guerra]. E aqui se movia no âmbito da Orpheu, de uma maneira, veremos, sempre em referência a Sá-Carneiro, que lhe dedicara os seus poemas sem suporte no nº 2 da revista, etc.
vamos ver o que ele representa para Santa-Rita. Outra via de informação sobre estes anos de vida do pintor vem de uma biografia que, desde 1922, e sobretudo, o pintor Henrique de Vilhena consagrou ao seu primo, o pintor Manuel Jardim, que cruzou amistosamente Santa-Rita em Paris e depois em Portugal, mas à distância de Coimbra, e não sem um mal-entendido que ficou registado em correspondência. E ainda de Vilhena há um artigo tardio que ficou a meio no jornal “Acto” de 1950.
Mas a informação vem também de outros contemporâneos de Paris e de Lisboa, dos anos ditos futuristas, que também em Paris foram e almejaram ser os de Santa-Rita, ali espectador da primeira exposição em 1912 que os pintores italianos apresentaram e que Aquilino Ribeiro reportara para a ilustração portuguesa em Lisboa.
O famoso manifesto que em 1908 Marinetti publicara no Figaro antes da chegada de Santa-Rita, portanto, teve tempo de por ele ser lido e endoutrinado, de modo a, de volta a Lisboa, Santa-Rita se declarar encarregado pelo teórico italiano de difundir a “Boa Nova” estética. Implicaria isso um contacto, mesmo de confiança com Marinetti, a cuja conferência de 1911 assistiu, segundo o repórter Diogo de Macedo, e os seus camaradas pintores, italianos quase todos, sobretudo Severini, instalado em Paris. Mas não há provas disso, e pode suspeitar-se de uma efabulação Santa-Rita. O que é na opinião vinculada pelas cartas de Sá-Carneiro, já porém posteriores e com razões de queixa. Mas não só porque o poeta tivera o seu período de fascinação pelo pintor ao conhecê-lo, e de lhe ter dedicado os poemas no Orpheu, onde o pusera em versos no poema Apoteose: “Marinetti + Picasso = Paris<Santa Rita Pintor + Fernando Pessoa / Alvaro de Campos !!!!”. Em 1914, já na narrativa Confissão de Lúcio, publicada nesse ano, Santa-Rita está presente sob o nome de Gervásio Vila-Nova, “personagem, escultor emigrado também com o seu corpo macerado e esguio de linhas quebradas e a sua obra de torsos contorcidos, enclavinhados, monstruosos, dado a um público que coitados, não podiam sentir a sua beleza e sobretudo, uma alma diabólica” que domina o narrador até ao rompimento dramático da narração.
Nas cartas que escreve a Fernando Pessoa, Sá-Carneiro vai dizendo que “com ele todo o cuidado é pouco, e descrevendo-o como um tipo fantástico”, cada vez mais intolerável, insuportavelmente vaidoso, maçador e, mesmo, malandro. Até às queixas finais, já de Setembro de 1915, após o Orpheu, quando o ouvia disposto a captar-lhe a revista Orpheu, que ele, Sá-Carneiro, já não podia pagar a tipografia; e “isso seria pior que a morte da revista”. Assim escreve Sá-Carneiro a Fernando Pessoa. Nela, porém, Sá-Carneiro dera abrigo a quatro hors-textes de obras suas, numa nova orientação de colaboração artística que se inaugurava no nº 2 e no nº 3 deveria ser satisfeita por Amadeo de Souza-Cardoso.
Já vemos a importância destas quatro obras quando anteriormente Sá-Carneiro duvidara da sua criação artística, ou dela mesma troçara, nomeando em carta de 1912 um quadro intitulado “WC” que, na opinião citada do autor, do pintor, “só dez pessoas no mundo podiam não só compreender, como ver”. Duas outras obras suas intituladas “Portugal” e “Ruído num quarto sem móveis” – seria esse quadro objecto de uma paródia feita ao pintor numa crónica para a Revista Lisboeta de Teatro no seu número de Março de 13, em texto sobre o “cubismo nacional”, de um tal jornalista Eduardo de Freitas, que anunciava a sua exibição com escândalo no Salão dos Independentes (Salon des Indépendants) em Paris e reproduzindo um quadro realmente de Picabia. Blague ofensiva que o comportamento polémico, antipático e intolerável de Santa-Rita dava razões e originava más relações com os poucos emigrados da vida artística local.
Um deles, Diogo de Macedo, haveria de descrevê-lo saborosamente em 1930, nas suas memórias 14, Cité Falguière [memórias dos tempos de Paris]. Como já em 21, no Diário de Lisboa: o Bento, o Semedo, o Bastos, Amadeo, ainda impressionista e caricaturista, mas que “se a morte não o tivesse levado seria hoje o maior pintor português”. E de Modigliani também fala, porque foi este que levou Amadeo a ouvir a conferência de Marinetti. E foi ali, nessa conferência que ele, Diogo de Macedo, pela única vez fala em Santa-Rita. Em 42, Macedo voltaria a falar no Pintor, numa panorâmica ordenada, a primeira de todas, nos primórdios do nosso modernismo, na revista Aventura. Em Lisboa, o caso Orpheu, levantou escândalo jornalístico, politicamente assanhado por Pessoa, como sabemos[2], é verdade que logo arrependido, como todos os seus amigos. Menos Santa-Rita que, como assegurou Raul Leal, era o mais sincero de todos eles.




Mas foi o pintor o alvo preferido nas colunas do Século Cómico, de 8 de Julho, num desenho de Stuart Carvalhais, e numa poesia trocista de Belmiro Acácio de Paiva (pseudónimo de Acácio de Paiva), que punha “Em foco”, imitando versos do Sá-Carneiro, de invenção tipográfica: “Santa Rita, Rita Santa, pó pó! / Ó guarda pó de setim Catedral / Ah! ah! ah! Estou a polir as unhas! Al! Ri pó pó! Tiro liro! liro ló! […] … Le nez dans le Cou!” caricaturado por isso mesmo. 89 artigos ou alusões ao Orpheu ficaram registados nas colagens de caderno recolhido no espólio de Fernando Pessoa na Biblioteca Nacional. Mas Orpheu chegou ao teatro de revista também ainda em 1915, no então Éden nos Restauradores, como “Satanás”, no “Diabo a quatro”, a endoidecer por ter lido a revista. O Orpheu nº 3 não houve, só provas tipográficas de algumas páginas recuperadas em edição de 1983. Santa-Rita não levou avante o seu projecto que afligia Sá-Carneiro e Pessoa, protelada e evasivamente, em suas correspondências, ele que também lhe dedicara no Orpheu a sua “Ode Marítima”.
Mas o Pintor continuara a agir no minúsculo meio que era o do Chiado e que anunciava a exposição de Amadeo, como futurista – embora de modo algum o fosse em suas obras – a dois passos no Calhariz, na Liga Naval, agitara em Dezembro de 16, então, com a benção baptismal de Almada Negreiros. Amadeo de Souza-Cardoso deveria ter sido o artista destacado em hors-textes, correspondentes, no nº 3, da revista de Sá-Carneiro. Mas não, certamente, no Orpheu que fosse, ou tivesse podido ser, de Santa Rita. E uma grave altercação entre os dois pintores se registou então na Brasileira, em vias de facto, de que o frágil Santa-Rita saiu agredido pelo Amadeo, robusto e exasperado pelas suas provocações. Provocações habituais, ao que consta nas anotações cronicadas nesta brevíssima época. Santa-Rita, em 1915, projectou realizar três conferências futuristas uma da quais sobre a sua participação na Orpheu – o facto é conhecido, passo adiante. Na verdade é que, em Abril de 16, a revista monárquica extremista “A ideia nacional” dirigida por Homem Cristo Filho – um polemista que viria a pretender ter carreira no Fascismo italiano, depois de começar a tê-la com o Sidonismo em 18 – apesar da colaboração que recebia de Almada, como de [António] Soares, [Jorge] Barradas de Stuart [Carvalhais] e da direcção artística de [José] Pacheco. Ele (Homem Cristo Filho) atacara os futuristas, “fautores da desordem e da revolução”, “novos arautos da Anarquia, sem fé nem Pátria que mereciam ser corridos à gargalhada, senão a chicote, quando insolentes e perigosos”. O que lhe valeu uma resposta prudente, de Santa-Rita, a garantir-lhe o carácter absolutamente nacionalista da sua doutrina, e o seu carácter absolutamente anti-anárquico. Ele que, “na sua vida de trabalho artístico, de esforço constante e consciente, de há anos para cá, aderente do futurismo”, declarava “Futurista declarado em Portugal, há um que sou eu”.
Mas logo depois, Almada Negreiros havia de publicar um texto, o mais escandaloso de todo o processo do futurismo nacional, pela personalidade oficiosa que punha em cena o dramaturgo, poeta e cronista Júlio Dantas, que estreou em Outubro no D. Maria uma peça, “Soror Mariana”. No seu jeito e talento tardo-romântico, “talento de coisinhas”, segundo Fialho de Almeida acerca do autor. Vivamente aplaudida mas pateada por Almada na sala, o que o fez ir prestar contas à esquadra Almada que já aliás criticara o Dantas numa revista de teatro dois anos antes, o que anda esquecido. Depois dessa consequência policial, chegado a casa, na mesma noite, Almada redigiu o famigerado “Manifesto Anti-Dantas e por extenso”. Opúsculo que, por informação de uma carta sua a Sonia Delaunay, só terá sido publicado em Maio de 16. Numa edição logo comprada, em atacado, pelo visado, e circulando reduzidamente como uma espécie bibliográfica raríssima, mas com larga e mitológica extensão. “Morra o Dantas, morra! Pim!”, ficou na memória literária pelos anos fora e até hoje, quando se comemora o seu centenário, não do Dantas, mas do Orpheu.
O seu autor interessava a Almada, porquanto, Dantas, que produzira uma tese de formação em medicina com um estudo sobre pintores e poetas internados no Hospital Psiquiátrico de Rilhafoles. Na sua especialização se achava apto a classificar de paranóicos os poetas de Orpheu, e certamente também Santa-Rita, seu parceiro [dos de Orpheu], embora não o mencionasse. E cronicara nesse sentido, na “Ilustração Portuguesa” (Magazine de toda a burguesia… da pequena burguesia nacional), a que o diário “A Capital” dava eco.
Em 28 de Junho, poetas de Rilhafoles eram eles todos, e já o famoso e popular comediógrafo André Brun lá se divertira com opinião semelhante em Março. Assim ia o microscópio do mundo cultural lisboeta nestes anos de 15 e 16, mais Orpheu 2, menos Orpheu 3, com o malogrado Salão de Arte Moderna que José Pacheco congeminara e uma galeria de artes que ele levou avante no espaço habitual do Salão Bobone, ali ao Chiado, logo pelo vulgo apelidado, sem razão, de salão dos futuristas. E, é claro, a exposição de Amadeo, no fim do ano, com o novo manifesto de Almada, esse a favor do seu jovem amigo pintor.
Quando – tendo sido consagrado no Salão da Primavera nas Belas Artes o Fado de Malhoa[3] no fim de 17, saiu à rua o “Portugal Futurista”, logo apreendido, diz-se, à porta da tipografia, pela censura do Governo Democrático que estava nesse mesmo a ser despejado pela Revolução Militar de Sidónio Pais. A revista era naturalmente alheia à movimentação política, se bem que ela se gabasse de absolutamente nacionalista pela pena de Santa-Rita, e um prospecto tivesse anunciado a publicação com três palavras: Monarquia, República, Portugal. As duas primeiras barradas a vermelho. E, no seu interior, os “Ultimatuns” de Almada e de Pessoa (Álvaro de Campos)[4]. Embora manifestassem ideias, opções e críticas contra a política corrente que o “Presidente Rei” Sidónio, assim glorificado por Pessoa, ia arredar ditatorialmente.
Almada atribuiria a apreensão da revista a palavrões escamados que empregara no seu admirável texto “Saltimbancos”. Mas outras responsabilidades haveria que invocar para o acontecido no meio da grande confusão daqueles dias tumultuosos que, aliás, e em sentido contrário e pior, de mortos e feridos, respondia à Revolução do 14 de Maio de 1915, que inspirara o poema “Canção do Ódio” a Almada, destinado, precisamente, ao Nº 3 de Orpheu, e ficara inédito. Portugal Futurista vem dois anos e meio depois com a exposição de Amadeo e o Manifesto Anti-Dantas do Almada pelo meio, mas, sobretudo, numa tumultuosa “apresentação do futurismo ao povo português” – palavras de Almada – na tarde de 4 de Abril de 17, no Teatro da República ou São Luiz [em 1918], sob a designação de “A Primeira Conferência Futurista” da responsabilidade de Almada, mas encenada, digamos, “maniganciada” por Santa-Rita, presente na sala, numa frisa, e dali animando e ordenando, “increpando” – escreve Diogo de Macedo – o espectáculo, sua éminence grise, que Almada, do palco, apresentou e que terá sido recebido com uma ovação unânime. É Almada quem descreve, já se descrevendo a si próprio, recebido por uma espontânea e tremenda pateada, seguida de uma calorosíssima salva de palmas que ele cortou como gesto. Uma fotografia dele mostra-o vestido com um fato de macaco de corte clownesco que passou à posteridade. As coisas passaram-se mais ou menos assim, numa sala meio-cheia de curiosos dos cafés do Chiado e da Baixa e alguns estudantes, e com uma popular e vistosa mundana, negra, ao que parece, contratada para o efeito. O diário A Capital, que já apreciara Orpheu nas suas colunas, dedicou uma prosa à sessão, uma crónica anónima, mas atenta a todas as anedotas que se produziram no seu decurso, tal como os organizadores desejavam para marcar o evento. E nesse sentido, Almada agradeceu à direcção, felicitando também, e de uma só vez, o público de Lisboa, pela brilhante apoteose de que ele tinha sido alvo. E também pelas “extraordinárias aptidões futuristas que esse povo português manifestara, revelando ter entendido a intervenção”. E Almada anunciava já uma nova sessão, espectáculo prático e positivo de futurismo, em que se resolviam à vista do público as energias mais assombrosamente cerebrais e as mais fisicamente record, e que contaria numa “segunda parte uma comédia futurista em que participariam interseccionistamente os maiores números de variedades que se encontravam em Lisboa e ainda outros elementos espontaneamente civis”. A tal anúncio, a imprensa trocista acrescentou uma tourada e um filme, ao mesmo tempo que a ilustração portuguesa chamava “doidos varridos e desequilibrados cerebrais”, pela pena do tal Acácio de Paiva que já troçara Santa-Rita dois anos antes. E Almada, com todo o grupo deu um destaque muito especial e anónimo de uma paródia de uma conferência de Almada no “Século Cómico”. Isso mesmo pretendia Almada Negreiros e, sobretudo, no caso, Santa-Rita que preparava o seu futuro de guru do futurismo em Portugal que a sua revista “Portugal Futurista” haveria de consagrar meses depois. 





                "Perspectiva dinâmica de um quarto ao acordar" reprodução no Portugal Futurista I

Tudo isto anda descrito e repetido por mim e por outros no quadro do Modernismo Português em Letras e Artes. Célebres de um lado, nas letras, mais tarde, de outro, nas artes, no círculo mais estrito da sua polémica, deu-se a Amadeo de Souza-Cardoso, mas só em meados dos anos 1950, por descuido da geração que lhe sucedeu, e António Ferro protegeu, o lugar cimeiro que lhe é historicamente devido. Mas deixou na penumbra, mais ou menos lendária, Santa-Rita Pintor, o herói do Portugal Futurista.
A revista vinha a seu tempo, ano e meio após a falência de Orpheu e seguindo-se a outras duas, também efémeras em Lisboa, o Exílio e a Centauro, de Abril e de Outubro, ficando ambas no nº 1. Alguns dos colaboradores de Orpheu apareceram em ambas (Fernando Pessoa), e os outros eram variados, em "Exílio", aliás dirigido por um irmão de Santa-Rita, o poeta pelo menos decadentista e mundano Augusto de Santa-Rita, considerado aliás modernista por António Ferro em 1929, e que viria a ter um nome justamente conhecido na literatura infantil. A Centauro era dirigida por Luís de Montalvor, do grupo do Orpheu, com Pessanha e Raul Leal. Mas em Faro, o jovem pintor de 20 anos, com bens de fortuna, Carlos Felipe Porfírio, fez publicar, desde 1917, nos seus princípios, um jornal (O Heraldo), poesias de intenção futurista, algo provincianas, mas também transcrever o poema, o grande poema “Litoral”, de Almada Negreiros, ao mesmo tempo que hesitava na pintura que ele próprio queria fazer. Subindo a Lisboa, aí se ligou a Santa-Rita para o ter na sua revista editada, pondo-o nominalmente na edição, “Portugal Futurista” bem entendido. Porfírio seria pintor expressionista em 1922 numa pequena exposição, depois pintor decorador em Paris até 1939. E ainda em 1945 e 1949, regressado a Portugal, ele pôde realizar duas longas metragens, pretensiosas e inteiramente nulas, “Sonho de amor” e um “Grito na noite” que só na Cinemateca se pode ver, felizmente. No “Portugal Futurista” de Santa-Rita ele terá sido apenas uma vítima inocente, como entendia Sá-Carneiro, entretanto suicidado em Paris, vítima de si próprio. Santa-Rita, no seu meio familiar de boa burguesia, o pai um funcionário e poeta amador, e o irmão também, como vimos, e avô materno e padrinho, conselheiro e par do reino, chamado Cau da Costa, fizera bem classificada pintura nas Belas Artes de Lisboa, fora e deixara de ser bolseiro em Paris, como se viu. Mas de lá, logo em Janeiro de 1911, ele mandou como prova de trabalho uma cópia da “Olympia” de Manet que não “deixou boa impressão” no júri (segundo o júri diz). Ele que se formara, na sua tese em Lisboa, com o Édipo e Antígona com boa aprovação académica. E foi José de Figueiredo, que ia a seguir ser director do Museu de Arte Antiga, quem imediatamente lhe censurou a má ideia que tivera em copiar tal quadro, na qual há quem entenda ter começado a pintura moderna no Ocidente. A obra pode ver-se numa sala da Academia nacional de Belas Artes, muito simplesmente, de que José de Figueiredo seria em 1935 Presidente inaugural da sua restauração, mas só muito depois do falecimento do pintor, entenda-se. Na camaradagem, nesta altura em Paris com Manuel Jardim, como sabemos, ambos tinham sido influenciados pela criação manetiana, que Jardim haveria de assumir como o melhor destino da sua própria malograda pintura.
Mas aqui interessa avaliar o entendimento de Santa-Rita, logo em fins de 1910, após Édipos e Antígonas escolares, numa nova situação da pintura, antes de ele próprio mergulhar no labirinto parisiense que, em 1912 lhe seria almejadamente futurista. A cópia de Santa-Rita, realizada com suficiência técnica e entendimento do problema pictural posto, no acordo tonal, nos aplats, para além do escândalo da imagem clássica colocada em termos de evidência moderna, baudelairiana, como se diria, mas não em Lisboa, é, como se sabe, das raras obas de Santa-Rita que existem. Pois, ao morrer, em 18, pediu à família que tudo destruísse. E mesmo antes, já antes, ao seu amigo Saavedra Machado, que o contou publicamente. De antes de Olympia, porém, existe o “Orpheu no Inferno”, de cerca de 1907. Espécie de brincadeira escolar, largamente broxado[5], com caricaturas dos professores de Lisboa, que, cerca de 1917, ele ainda vendeu ao seu amigo Alberto de Monsaraz, quando durante muito tempo o conservou e é hoje por demais curiosidade valorizada.
Mas de 1912, resta outro quadro, no Museu do Chiado, que tem especial importância na história da pintura moderna portuguesa. Não assinado, e datado, no verso, de 1910, por mão que não será a do pintor, esta cabeça cubo-futurista, tem sofrido justa discussão crítica por algumas similitudes com pinturas de [Gino] Severini com quem Santa-Rita terá tido proximidade em Paris, ficando como um ícone polémico da modernidade num país que não podia tê-la. “Pintura primeira da sua espécie”, assim escrevi e repito, contando bem os passos cronológicos de Amadeo de Souza-Cardoso que, em 1912 – data mais provável da tela de Santa-Rita – ainda não assumira a posição criativa original, cubista sim, e órfica, nunca definitivamente definida como futurista, que admiravelmente explodiria na série das últimas pinturas de 1916-17.



Esta agressiva cabeça de ave, máscara africana nos seus bicos, olhos encovados num movimento elíptico do desenho, uma espécie de vórtice que só dois planos por similitude cubistas interrompem e um sinal de ouvido em caixa de violino pontua. Fora do propósito formal ou antropomórfico, esta pintura, no seu jogo de volumes e grafismos, é uma peça notável nos anos 10 europeus e uma peça única na pintura portuguesa. Não o esqueçamos. Peça milagrosa, acrescento agora ao que escrevi, considerado o quadro moroso em que ela pode desenrolar-se nos anos 10, que em 1918 se acabara com a morte de Santa-Rita, e de Amadeo, a poucos meses de distância.
No Portugal Futurista foram reproduzidas quatro obras de Santa-Rita, mas não esta, e perguntar-se-á porquê na sua estratégia de carreira. Vemos lá o “Orfeu nos Infernos” com um comentário laudatório inconsequente, em que se fala de “fisiognomia mefistofélica” que o pintor certamente aprovou ou fez redigir; a “Perspectiva dinâmica de um quarto ao acordar”, datado de 1912; “Cabeça = linha – força. Complementarismo orgânico”, de 1913, e “Abstracção congenita intuitiva (Matéria-Força), de 15. Se o primeiro obedece a um sistema futurista ortodoxo na dinamização espacial, em que as ondas de vibração dos objectos têm um tratamento de ordem cubista (escrevi isto em 74), as outras inscrevem-se no tempo entre ou depois das obras que tinham sido reproduzidas no Orpheu, e que vamos ver. E numa situação que no Portugal Futurista tinha sido definitivamente assumida. Para Santa-Rita, era no extremo limite das suas forças criativas e físicas também que pouco mais ele duraria até Abril do ano seguinte, já em “estado gravíssimo de saúde”, como Manuel Jardim escreveu, informado pelo professor Vilhena.
Mas a vida de Santa-Rita no Portugal Futurista foi outra e indirecta, quer pelo seu retracto fotográfico de página inteira, quase a abrir a revista, convenientemente encenado, quer por dois textos que se lhe referiam e que vamos ver, de Bettencourt-Rebello e de Raul Leal, que no Orpheu publicara o alucinado texto “Atelier, (novela vertígica)” predisposto para o que da arte de Santa-Rita havia de entender.
E fora no nº 2 da revista de Sá-Carneiro que o pintor tivera a primeira entrada em cena, como anunciada “Colaboração especial do futurista Santa-Rita Pintor, fotogravuras de 4 hors-textes duplos”, na medida em que se dobravam na sua dimensão de papel couchet nos cadernos do volume. São datados de Paris, anos de 1912, 1913, dois deles, e de 1914, desenhos a carvão ou traço de guache branco com a técnica cubista dos papiers-collés. Os originais desapareceram. Incalculável perda do património artístico português, porque se trata de quatro peças, senão fundamentais – porque nada fundamentaram ou teriam podido fundamentar em Portugal – de extrema originalidade no quadro europeu do futurismo, que delas não tomou conhecimento historiográfico ou estético nas mais autorizadas e mesmo mais recentes pesquisas sobre o grande movimento italiano. Ignorado para sempre? Pergunto. De Santa-Rita Pintor eu terei sido o único historiador dos anos 10 a assinalar-lhe a presença, em 87, numa História da Arte Ocidental, tentada para além das grandes vias culturais em que ela tem sido estabelecida na lei dos centros maiores de produção e de sua pesquisa universitária e da sua indústria editorial.




Evoquemos primeiramente, como Santa-Rita evidentemente desejava em atitude provocatória, os títulos destes trabalhos que ultrapassam em proposição e formulação teórica, embora inspirados em teses de Boccioni, o quadro estético do futurismo italiano. “Decomposição dynamica de uma mesa + estylo do movimento (INTERSECCIONISMO PLASTICO)” e os restantes designam actuações ou reflexões plásticas em situações alegadas respectivamente de interseccionismo plástico, sensibilidade radiográfica ou litográfica ou mecânica que dificilmente poderemos distinguir no exame das próprias obras. Devendo, porém entender-se que, como já escrevi, que se trata de uma atitude conceptual, que ainda assim se não nomeava. A “Decomposição dynamica de uma mesa” [referida acima] declarada na peça de 12, é a de uma mesa adicionada com o sinal + em estilo de movimento. E a obra deixa aperceber, em planos geometricamente sobrepostos, a “mesa modelo” desfeita. Porque a fez Santa-Rita reproduzir após as outras três obras, quando a sua leitura formal e a sua datação se acentuam à cabeça do discurso histórico proposto[6]. Trata-se, na sua realidade, de uma proposta demonstrativa de interseccionismo plástico, enquanto, as outras três peças, dadas como demonstrações de sensibilidades provocadas gráfica ou mecanicamente, se referem a cabeças modelo





E “Estojo scientifico de uma cabeça” marcado com insistência no factor “luz”, “+ aparelho ocular + sobreposição dynamica visual + reflexos de ambiente” que se multiplicam pela luz “x luz (SENSIBILIDADE MECHANICA) (Paris, 1914)”. E é a primeira reprodução da série dos hors-textes, no seu interior, compenetrado, identificado, idêntico, a reprodução com o seu “complementarismo congénito absoluto” (Compenetração estática interior de uma cabeça = complementarismo congénito absoluto (Sensibilidade Lithographica)) a que tem sido a mais reproduzida por facilidade de identificação formal. 







Ou ainda “Syntese geometral de uma cabeça x infinito plastico de ambiente x transcendentalismo phisico” (SENSIBILIDADE RADIOGRAPHICA), de1913[7].




Não vou insistir na descrição destas peças, porque há que vê-las, há que olhá-las, elas estão reproduzidas na revista Orpheu 2, e na reedição da revista Orpheu, também e, portanto, estão ao alcance de todo o nosso conhecimento. São as únicas provas que existem das referidas peças, mau grado a sua enorme importância.
Mas, no Portugal Futurista, Santa-Rita Pintor, sobretudo contava, depois do seu retrato que vimos, com um artigo de Bettencourt-Rebello, aliás “Rebello de Bettencourt”, que sob a sua simples denominação assumida de Santa-Rita Pintor, em seis notas [ou pontos, ver à frente] (de I a VI) estabeleceu a sua hagiografia. Começava o artista por nos surpreender pela sua “sensibilidade mediumnica”, “antena da sensibilidade universal”, passava a ser declarado “um dominador”, na sua “emoção há serenidade”. E depois “Artista que o génio da época produziu, o seu espírito de adivinhão latino, como ele próprio se define, é como um búzio onde a intuição resôa”. Depois ainda é dito “personalidade complexa”, “na sua arte nunca encontramos uma copia servil dos objectos, mas a interpretação emocional e filosófica, mas a configuração abstracta e harmoniosa que lhes é própria”. A seguir: “A sua vida de pintor tem-se desenvolvido n’uma evolução continua”, como as “metamorfoses do bicho da sêda”; e “As raças afirmam-se pelo génios que conteem”. “Portugal é uma raça, deu também a esta época um representante: [Santa-Rita Pintor]”.
Assim, ele traz consigo a coragem e o orgulho de uma “raça”, em conclusão final da última nota, garantindo-nos, na terceira, em seu fim, que “– N’ele o Futuro é já Presente…” Assim, de ponto em ponto, a imagem de Santa-Rita se afina. Espírito renovador, genial temperamento, ele “faz-se vertigem perante a vertigem, mas domina a vertigem” (ponto I). “É o iluminado que se afirma, que electrisa, e atrai, e convulsiona a vida” (ponto II). “E tão forte era o seu pensamento” e “o seu espírito Europeu de homem moderno” “que um dia rompeu e inutilizou a Forma” (ponto V). E seria, no ponto IV da prosa [Bettencourt-Rebello], “a sua arte de um lirismo geométrico” em desejada definição.
O signatário destas duas páginas destacadas em tipografia, era um jovem e sossegado poeta açoriano de odes e canções publicadas em voluminhos e que viera à capital. Apresentado por Carlos Porfírio no café Martinho – ou Martinho do Teatro Nacional, ao lado deste – a Santa-Rita. Logo foi convidado para redactor em chefe da sua revista [Portugal Futurista], que nos ia pôr em contacto com a Europa. Não foi redactor em chefe, nem editor responsável, posto atribuído a um anónimo, se existente, S. Ferreira. E mais tarde, em 1928, ele colaboraria num livro de crónicas e memórias o Mundo das Imagens[8]. O fascínio sofrido, tal como, e principalmente, conta ele, o sofreu Almada Negreiros. Depois ainda, em 1929, o Bettencourt lançaria um magazine medíocre que ficaria no 1º volume, chamado Lisboa Galante, sem mais notícia até morrer, em 69.



                                                      Publicado na Portugal Futurista I

O autor de um outro texto consagrado da revista era Raul Leal: “Divagation outrephilosophique-Vertige à propôs de l’oeuvre géniale de Santa Rita Pintor, “Abstraction Congénitale Intuitive (Matière-Force)”. Refere-se à obra mal reproduzida na revista (“la suprème réalisation du Futurisme”). Era “l’abstraction futuriste” que o autor alcançava nesta obra. “Santa Rita Pintor concebeu, em síntese, a realização integral de toda a teoria futurista sobre a Vida!”. Raul Leal teria correspondência com o próprio Marinetti, a quem ele queria converter às suas teorias, mais teosofistas a certa altura. Trinta e nove vezes a palavra “Vertige” é avançada neste texto de duas páginas, redigida em excelente francês. Que o vertiginismo está para além do que mais o Futurismo pode dar. Concebendo então perfeitamente o “concret.en-abstrait –Vertige oú il n’y a rien de phisique”… E “Santa Rita est un futuriste outré, et son génie est la quintessence du génie futuriste”. Raul Leal, que ainda em 1924 se ocuparia também da Luxuriosa Loucura de Deus em Mário Eloy[9], falando do seu ultrafuturismo, e que já está historiada. Ainda nos anos 50 ele se debruçaria sobre o realismo [o neo-realismo e o surrealismo] em convívio com Mário Cesariny[10].
Raul Leal foi o único dos grandes de Orpheu a ter na altura voz significativa a favor de Santa-Rita, numa admiração sincera e fascinada, que ainda quarenta anos mais tarde se manifestará em artigos da revista Tempo Presente, em 59, ao insistir na ética pessoal e dignificadora do seu grande amigo e admirável artista. E pouco depois, na mesma publicação, Raul Leal revelará uma Magna obra que Santa-Rita então sonhava: “O Papão”. Tratava-se, ou tratar-se-ia, de “grandes pinturas a fresco no Mosteiro dos Jerónimos, desenhos coloridos informes que dessem imediatamente a forte impressão alucinatória desse mundo astral, apavorante, expresso em abstracto, que invocassem o mundo abismicamente espectral de Portugal, exaltando as imaginações delirantes dos nossos antigos navegadores”. Estamos antes de 18, em dezasseis ou dezassete, na congeminação desta grande obra, de que Raul Leal muito mais tarde teria guardado a lembrança. Um soberbo sonho pictural, Santa-Rita levou-o consigo ao morrer, logo três meses depois do Portugal Futurista.
“Serão febres de África Sr. Doutor?”. “Ah, o Senhor Santa-Rita esteve em África?”, perguntou o médico desesperado com o complexo quadro clínico do moribundo. “Não, nunca lá fui.” E foi a última anedota que sobre Santa-Rita correu em Lisboa. No mês seguinte à sua desaparição, para ser publicado em in memorian, de um só autor, logo em 19, outro modesto publicista seu amigo, poeta, ficcionista, crítico e cronista, meio simbolista – de “rézas d’espuma e de sarcasmo”, A Esmeralda de Nero[11] publicada em 1915 – e funcionário colonial contrariado, Carlos Parreira, que Santa-Rita dizia ser o único génio que ele conhecia, escreveu sentidas palavras da maior admiração. O pintor era para ele lembrado como o “representante legítimo dessa espécie de exilados, sempre referidos pelo gume das coisas circundantes, sobrepassando uma atmosfera de abstracção e desdéns; figura gracilmente exangue de fim de raça; voz de hemoptise, fronte de um palor de camélia, gestos inquietos e estridentes; alguém que, nos domínios de emoção e pensamento, os fados sagraram um grand seigneur. E como tal, “figura negra de espectro, meio Hamlet, meio espantalho”, que ou testemunha da época, um tal Rui Aragão, o viria a descrever mais tarde, na revista Aventura (1914), onde Santa-Rita aparece num auto-retrato desenhado, da cabeça afilada, duplamente traçada, cabeleira farta, porte de dandy. Todas estas provas circunstanciais de santificação valem o que valem, de emoção de estilo e de época que não podia ser futurista, num decadentismo que fora ponto de passagem do século IXX que se terminava, sem se saber como, num Portugal feito de salvações não só políticas, e governado numa guerra alheia para salvar as colónias mais ou menos próprias. Uma guerra e higiene do mundo para manifestos sem consequências, a não ser dramática e miseravelmente para os lapouços do corpo expedicionário, malta das trincheiras, carne de canhão, “joões ratões” sacrificados. Poetas futuristas que se manifestavam sem darem corpo ao manifesto, nem voluntariavam a incorporação, fossem eles quais fossem, geniais, Pessoas, Almadas e Amadeos. Não, porém, a fraca figura de Santa-Rita, numa anedota que também corria, que não tinha corpo, era só fato [muitos risos da assistência]. E, para além dos textos angeológicos publicados, e sem leitores – e que temos de achar francamente medíocres na literatura, Raul Leal à parte, bem entendido – as anedotas foi o que restou, do “Guilherme pobre”, cuja obra jamais exposta individual ou colectivamente, a seu derradeiro pedido, foi destruída pela família. Derradeira atitude também de autodestruição, mas também certamente de insatisfação, senão de dúvida, quanto ao que pudera realizar. Em 1965, no cinquentenário de Orpheu, Almada Negreiros escreveu “Memórias e comentários”. E a ele coube lembrar, uma lembrança breve de Santa-Rita: “Um dos mais extraordinários espíritos que conheci em toda a minha vida. Vendo nele ser só espírito, e afinal a sua genial coerência”. E Almada acrescentou que cortou relações pessoais com quem se bastava com a notoriedade de andar por aí a brilhar com histórias do Santa-Rita, provocando gargalhadas, e ignorava quem com essas mesmas histórias estropiadas ainda existia.
Tinha sido com ele (Santa-Rita) que Almada fizera juramento de estudarem os Painéis de Nuno Gonçalves [os famosos Painéis de São Vicente de Fora], rapando então à navalha os cabelos (“com o selo do nosso pacto). Assim se esboçou, não se sabendo com que grau de consciência dos outros dois comparsas [Santa-Rita e Amadeo de Souza-Cardoso], o que viria a ser o leitmotiv da criação almadina. Santa-Rita[12]… não foi directamente de Santa-Rita que Almada teve que falar, ele que lhe dedicará, e a Amadeo, a conferência sobre o modernismo realizada em 1926. Mas em seu nome o fez quando em 1932, à vinda de Marinetti a Lisboa, académico do “facho” italiano – “trazido por António Ferro, então a preparar-se para o secretariado da propaganda nacional, que a sua proposta de política de espírito, em habilidades dos seu programa pessoalíssimo”, palavras do Almada –veementemente protestou, nas colunas do Diário de Lisboa. Palavras de Almada: “contra o ameno Sarau mundano para deleite dos pompiers nossos amigos, realizado ante os três mais categorizados inimigos do futurismo em Portugal, e que eram, além de António Ferro (que trouxe Marinetti e que fora editor “menor” [muito jovem] do Orpheu), Adães Bermudes (Presidente da Sociedade nacional de belas Artes, um considerado arquitecto do edifício onde a sessão teve lugar), e também, academicamente, Júlio Dantas (o fantasma de 1915). Em nome dos nomes heróicos do futurismo português”, Almada Negreiros falou, então. Estamos ainda em 1932. Vinte anos depois do cinquentenário do Orpheu, e cinquenta anos depois do episódio Marinetti, alguém, um jovem José António Sampaio, que não conheço, nas páginas da revista portuense Nova Renascença, em 83, chamou a atenção para Santa-Rita, num artigo bem informado, no seu entusiasmo, com uma reacção imediata de João Gaspar Simões no Comércio do Porto, de 3 de Março de 83. Achando “ser pecha dos portugueses exaltar o valor dos que pouco ou nada fazem, para assim pôr em cheque o valor dos que muito realizam”, recusou “a reabilitação dessa espécie de símbolo clownesco no modernismo órfico; que representa um dos maiores vícios da mentalidade nacional, a inércia desse Santa-Rita. Que nada legou, além de um fabulário anedótico, e cuja obra nada representa, nada é”. Não será, com certeza, a última manifestação de um desentendimento crítico fundamental que, na pena de quem se assumia na revista Presença (“Nós, a Presença”, escreveu em 85), na altura a publicação de referência crítica do modernismo da geração anterior, tem particular gravidade. Num mesmo momento em que Fernando Pessoa, nas páginas do lado da revista Sudoeste, de Almada Negreiros, assinava como: “Nós, os de Orpheu”. Entre os quais, para ele, Santa Rita e a sua “a alta sensibilidade moderna”[13], inteligentíssimo e muito pitoresco no convívio havido em 1915. O próprio Fernando Pessoa escreveu a Santa-Rita em 21 de Setembro de 1915, escreveu o seguinte: “Orpheu não acabou, Orpheu não pode acabar”. Tratava-se de surgir outra vez, “à superfície… mais adiante”[14].






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[1] Transcrição, por Luís de Barreiros Tavares, do registo áudio da Conferência de José-Augusto França, no Congresso Internacional 100 Orpheu, a 26/03/2015 na Fundação Calouste Gulbenkian. Pode consultar-se o vídeo intitulado “José-Augusto França - "Guilherme Pobre" (Santa-Rita Pintor) - 100 – ORPHEU”: https://www.youtube.com/watch?v=_lYr-NiiRhk . Nesta gravação com debate poderá ouvir-se a intervenção do sobrinho-neto de Santa-Rita Pintor. Colocaram-se algumas notas de rodapé para apoio de texto.
[2] O célebre caso político de Álvaro de Campos (Fernando Pessoa) a propósito da queda de Afonso Costa ao saltar de um eléctrico…
[3] De 1910, foi exposta pela primeira vez em Lisboa somente em 1917 na 14ª Exposição da Sociedade Nacional de Belas Artes. José Malhoa pintou duas versões do quadro a de 1909 e a de 1910. Foram expostas pela primeira vez juntas, lado a lado, na exposição O Fado de 1910, na Sociedade Nacional de Belas Artes, em Lisboa em 2010. https://pt.wikipedia.org/wiki/O_Fado

[4] Ultimatum de Álvaro de Campos e Ultimatum Futurista às gerações portuguesas do século XX de Almada Negreiros.
[5] Feito com pinceladas fortes com uma broxa: espécie de pincel largo.
[6] Ela é apresentada em último lugar na série dos 4 extra-textos; mas a sua datação (1912) é anterior a outras (1913 e 1914).
[7] Podem ver-se algumas destas reproduções no nº 16 da Nova Águia: Luís de Barreiros Tavares, "Ecos de Santa-Rita e Malévitch: O Quadrado e o Círculo", Revista Nova Águia, nº16, 2º semestre, 2015, pp. 116-122, Zéfiro.
[8] Encontra-se como documento electrónico (Casa Fernando Pessoa): http://casafernandopessoa.cm-lisboa.pt/bdigital/8-594LMR

[9] Manifesto “A Visão de Dois Artistas e a Luxuriosa Loucura de Deus”, sobre Mário Eloy e Alfredo Cardoso.
[10] Para um maior aprofundamento, veja-se: Pedro Vistas "Raul Leal ou da inclassificável vertigem: a propósito da tentadora atribuição do título de “surrealista” à obra lealina”, Revista Nova Águia, nº17, 1º semestre, 2016, pp. 126-136, Zéfiro; Raul Leal, “Um extraordinário pintor, Mário Cesariny de Vasconcelos (nota introdutória de António Cândido Franco,  Revista Nova Águia, nº18, 2º semestre, 2016, pp. 251-253, Zéfiro.
[11] Encontra-se como documento electrónico (Casa Fernando Pessoa): http://casafernandopessoa.cm-lisboa.pt/bdigital/8-412

[12] José-Augusto França interrompe a leitura e dirige-se ao público: “é a última folha, eu próprio fiquei admirado de já ser a última folha” [muitos risos]…
[13]No 2.º número do Orpheu virá colaboração realmente futurista, é certo. Então se poderá ver a diferença, se bem que seja, não literária, mas pictural essa colaboração. São quatro quadros que emanam da alta sensibilidade moderna do meu amigo Santa Rita Pintor.” (Álvaro de Campos em carta ao Diário de Notícias, 4 de Junho de 1915); http://arquivopessoa.net/textos/573
[14] «De resto, Orpheu não acabou. Orpheu não pode acabar. Na mitologia dos antigos, que o meu espírito radicalmente pagão se não cansa nunca de recordar, numa reminiscência constelada, há a história de um rio, de cujo nome apenas me entrelembro, que, a certa altura do seu curso, se sumia na areia. Aparentemente morto, ele, porém, mais adiante -- milhas para além de onde se sumira -- surgia outra vez à superfície, e continuava, com aquático escrúpulo, o seu leve caminho para o mar. Assim quero crer que seja -- na pior das contingências -- a revista sensacionista Orpheu» (carta de Fernando Pessoa a Santa-Rita em 21 de Setembro de 1915, in correspondência 1905-1922, edição Manuela Parreira da Silva, Lisboa: Assírio & Alvim, 1998, pp. 172-173.




Luís de Barreiros Tavares, "O que são as Filosofias Nacionais?”, Revista Nova Águia, nº19, 1º semestre, 2017, pp. 206-213, Zéfiro.


                                       O que são as filosofias nacionais?

                                                 Luís de Barreiros Tavares


                                                                    I
                          

“Sócrates – Dizem, caro amigo, que os primeiros oráculos no templo de Zeus, em Dodona, foram feitos por um carvalho!  É evidente que os homens daquele tempo não eram tão sábios como os da nossa geração e, como eram ingénuos, o que um carvalho ou um rochedo dissessem tornava-se muito importante conquanto lhes parecesse verídico! Mas para ti talvez interesse saber quem disse determinada coisa e de que terra é natural, pois não te basta verificar se essa coisa é verdadeira ou falsa!”

(Platão, Fedro, 275 c, trad. Pinharanda Gomes, Lisboa, Guimarães, 1986)



Uma nota que me tem despertado alguma reflexão, dizendo respeito às filosofias nacionais[1]. A filosofia pretende-se também universal ecoando a afirmação de Aristóteles na Metafísica: “Só há ciência do universal (katholou).” Pois no contexto do Estagirita a ciência foi enunciada num âmbito mais abrangente abarcando a dimensão filosófica. Ora, mesmo que a filosofia tenha raízes na tradição ocidental greco-europeia, ela universalizou-se acrescendo ao chamado global. Global, quer na vertente anglo-saxónica, com a língua inglesa (estendendo-se aos EUA), quer na dita europeia, "continental" (designação atribuída pelos filósofos analíticos), curiosamente com a consolidação e expansão da língua inglesa para ambas. Pois muitos dos filósofos na Europa recorrem frequentemente ao inglês para alargarem o espectro do público e leitores, ou, como se diz hoje, para adquirirem mais “visibilidade”.
É que esta questão das línguas também tem que se lhe diga, embora eu não seja o mais competente para analisá-la. Mas a título pontual leiamos um interessante passo de Fernando Belo: “[…] a língua inglesa, que hoje presta excelentes serviços de língua internacional nas trocas comerciais, tecnologias e turismos, justamente por, apesar da sua origem saxónica, ser uma língua de muito pobre morfologia; mas também é essa característica que parece justificar a tendência empirista e pragmática dos textos anglófonos, a dificuldade dum intelectual inglês que uma vez me confessou não poder pensar sem o recurso aos latinismos da sua língua”[2].
Curiosamente, apesar de se supor que a filosofia é universalizante, permanece todavia qualquer coisa ao nível das línguas marcando-se pelo interesse ou pretensão em afirmar a filosofia segundo esta ou aquela língua. Com efeito, a filosofia tida geralmente como a mais divulgada e representativa, por assim dizer, move-se em autores alemães,  franceses, ingleses, poderíamos continuar pelos italianos, etc., passando depois por muitas outras nações e línguas incluindo Portugal, Brasil, etc. Mas a filosofia vai mesmo desde há umas boas décadas até aos EUA. Reiterando, pode dizer-se, mais do que nunca, que ela é universalizante e globalizou-se. Temos até um Slavoj Zizek, esloveno, que praticamente só fala inglês, Pop Star, Superstar da cultura com uma projecção mediática nunca vista até hoje, de Tóquio a Nova York. Ele move massas à escala da “teoria” e da “crítica da cultura”; veja-se o sucesso dos seus vídeos no Youtube. 
Mas voltemos ao universalizante. É que, a bem dizer, persiste a vontade de cada nação, principalmente – e curiosamente – as mais relevantes no panorama mundial, digamos assim, em reclamar para si, desta ou daquela maneira a preponderância do seu pensar, das suas mensagens, neste caso filosóficas. Quer dizer, a vontade de fazer-se representar, a vontade de representação da sua cultura em sentido lato, incluindo a dimensão filosófica. Isto com todas as polémicas e controvérsias que poderão suscitar hoje as formas de “fazer passar a mensagem”. Pois, saber actualmente quem joga ou, pelo contrário, é jogado, nisto de fazer passar a mensagem, ou quando ambas as instâncias parecem confundir-se de maneira ainda por pensar, constitui um tema que já por si faria correr muita tinta.
Por outro lado, é curioso que o inglês é o veículo mais facilitador, como acima tentámos exemplificar com a passagem de Fernando Belo. Seja-se francês (Alain Badiou, p.ex., vj. no Youtube o EGS - European Graduate School, fundado na Suíça), espanhol, italiano (p.ex. Giorgio Agamben[3] recorre ao inglês no EGS), alemão (p. ex., Peter Sloterdijk[4] e alguns outros que quase nunca prescindem da sua língua natal), etc. Mesmo hoje, em Portugal, opta-se pelo inglês em certos Colóquios, Congressos e outros eventos.
Mas retomando a questão central deste texto. Ora, não é curioso como o nacional se insinua por vezes no internacional? Por exemplo, Heidegger reclamava um eixo fundamental linguístico entre a língua alemã e a grega antiga. Sabendo nós que, automaticamente, partindo desta tese, se estabeleceria a ponte entre a origem, o chamado berço do pensamento filosófico europeu-ocidental (Grécia) e a filosofia alemã, quer dizer, entre a "filosofia grega" e a "filosofia alemã".
Dir-se-ia que Álvaro Ribeiro, em 1943, segue nesta linha (“tradução directa, exacta e inequívoca dos textos gregos e alemães”). Mas apenas como base de sustentação para outras questões. Ele refere – advertindo, ao mesmo tempo – a influência nos últimos séculos [na cultura portuguesa] do “intermediário francês”: “O primeiro trabalho será o de fixar a nomenclatura e de enriquecer o vocabulário, para que venha a ser possível a tradução directa, exacta e inequívoca dos textos gregos e alemães [filosofias grega e alemã, bem entendido]. Por demasiadamente se ter referido, nos últimos séculos, ao intermediário francês [filosofia francesa, por assim dizer], encontra-se o nosso vocabulário filosófico comprometido com postulados, definições e classificações que não pertencem à linha directriz da nossa espiritualidade; de tal facto resultam dois inconvenientes: o obstáculo à inteligência directa de outros tipos de mentalidade e a mudez inevitável de certas tendências latentes do pensamento nacional. Importa solver este problema de autêntica filologia” (Ribeiro, A., O Problema da Filosofia Portuguesa[5], 1943, p. 67). “Filologia”, e acrescentaríamos com uma designação actual: “Lusofonia”;
em continuidade: “Filosofia lusófona” (vj. nota de rodapé “6”).                                                                                                         
Voltando ao eixo filosófico greco-alemão segundo Heidegger. Não obstante admirar a obra deste grande pensador, pergunto-me: isto não é nacionalismo filosófico puro dissimulando-se no/com o Universal e no/com o Internacional (neste caso, e implicitamente, Alemanha e Grécia)? Para não falar no seu fito, segundo consta – fase passageira, é certo –, de se tornar o teórico ou um dos grandes teóricos e ideólogos, precisamente filosóficos do “Partido Nacional Socialista” alemão de Hitler com o seu Sein und Zeit e o Dasein[6].
E a filosofia da Grécia Antiga é universal, internacional ou nacional? Voltemos a Zizek. Goste-se ou não, ele tem uma projecção global (universal?) nos moldes dos nossos dias, sejam ou não os melhores, garantam ou não o devido peso. Há filosofia eslovena? Há mais de duas décadas Zizek candidatou-se à presidência da Eslovénia (1990), sem sucesso. Ele quereria servir a sua nação, o seu país, a sua pátria, ou, com isso, mais ainda a promoção da sua obra ganharia a força pretendida? O seu gesto pôde muito bem ser meritório e digno. Mas que megalomania insuspeitada ou nascente poderá por vezes estar subjacente a um filósofo seja ele produtor de uma grande obra filosófica, seja ele ou não um grande pensador? Que ideias estão por vezes por detrás? O exemplo que se deu acima de Heidegger  poderá ilustrar isso. Todavia, não esqueçamos que se faz aqui um levantamento de questões. Com efeito, Heidegger e a sua obra nem pouco mais ou menos se limitam àquele breve mas muito grave episódio. Mas adiante…
Se os “grandes” (autores e/ou nações) supostamente universais se reclamam, lá no fundo, nacionais, sem que por vezes nos demos bem conta ou peso disso, por que razão os pré-supostos “pequenos” não terão a legitimidade de se atribuírem a seu modo o nacional? E «o nacional é bom», como dizia um antigo anúncio publicitário. Mais, nestas questões quem define quem é grande e quem é pequeno, quem é universal e quem não o é? 
Retomando de um outro modo a questão controversa das filosofias nacionais, afinal, mais universais, e vice-versa, do que é comum pensar-se, como vamos tentando mostrar neste breve texto. Saber o que é uma filosofia nacional, comporta, já de si, indagar das condições de possibilidade, a questionar o que são filosofias nacionais. E isso vale para qualquer nação, pátria, como alguns sublinham, para qualquer língua que pensa. E não é um facto que permanentemente certas vertentes e tonalidades filosóficas nacionais se dissimulam sob a aparência do universal, seja qual for a nacionalidade, como já o tentámos mostrar?
Retomemos a questão, mostrou-se acima como por vezes algo tido como pensamento de teor não nacional e não nacionalista, pretensamente universal, poderá trazer, ou pretender trazer consigo indícios linguísticos nacionais e nacionalistas. Duplo movimento complexo. Eis o que importa também pensar nestes contextos. O que importa reflectir sobre estes movimentos de pensamento, sejam propósitos dignos ou não.
A filosofia dita portuguesa – ou “lusófona”, como pertinentemente é hoje ventilado[7] – não tem qualquer prioridade sobre a perspectivação de outra filosofia hipoteticamente nacional. Nem, pelo contrário, qualquer outra sobre ela. Quer dizer, mais uma vez, importa a questão enquanto tal. Interrogação, questão da questão, abrindo, por si mesma, espaço e tempo de pensamento.
José Marinho no seu texto “Filosofia Portuguesa e Universalidade da Filosofia” na linha de Álvaro Ribeiro em O Problema da Filosofia Portuguesa (ver acima) ilustra muito bem a problemática implícita das filosofias nacionais, focando a da filosofia portuguesa e a universalidade da filosofia dando o seguinte exemplo: “Que o haver laranjas de Setúbal, assim como nos permite e nos autoriza chamar-lhes laranjas portuguesas do mesmo passo aos deliciosos frutos e seu conceito não retira à forma única e universal sabor ou sentido”[8]. Curiosamente há três instâncias: "laranjas de Setúbal", "laranjas portuguesas" e as laranjas, cujo sabor e sentido é universal. Antes, na p.9 pode ler-se: “Alguns dos homens mais inteligentes do País colocam-nos na urgência de examinar a questão.” De examinar, de questionar a questão. Mas também questionar a potência da indignação pelo facto de essa mesma questão ser impossibilitada, a priori, ou de considerar-se que não vale a pena, por pressupostos estabelecidos, dados e adquiridos, ou por se supor à partida uma questão menor. A par disto, qual a viabilidade de pensar “o que é isso, da filosofia”? Quer dizer, “ o que é isso, da – a que se chama, quer dizer, que dá pelo nome de – “filosofia”? Ou por outra: o que é isso, aquilo (o que) a que se dá o nome de “filosofia”? Pergunta fundamental, indagando sobre a própria pergunta sobre o nome ou palavra “filosofia”. “Que é isso, da filosofia?” De outro modo, esta questão talvez abra caminho à reformulação da questão “o que é”, reformulando-a sobre a primeira: “o que é (isso, da - de a) filosofia?”.  E: “o que é isso, do ser?”. Para Aristóteles é a pergunta fundamental da filosofia a par do que é a “substância” (Metafísica, 1028 b)[9].
É preciso também desmistificar a palavra "filosofia". E de alguma maneira desmitificá-la. Por outro lado, a Filosofia traz o Logos sobre o Muthos. No entanto, quem nos assegura que este não se insurge naquele, só por os confundirmos de tanto os distinguirmos? Poderemos ver então outra reformulação de como Muthos e Logos podem encontrar um novo nexo ou um novo diálogo. Não é isto que nos podem trazer felizmente certas leituras e vertentes constitutivas da chamada Filosofia Portuguesa? Não é ela por alguns vista como tendendo exclusivamente para o Mito?
Mas, por vezes os filósofos tendem a personificar a Filosofia sem dar por isso. Tão-pouco ela é uma entidade. Pois a entificação da Filosofia poderá traduzir um complexo de superioridade da mesma.
Quando Heidegger pergunta pelo sentido do ser no início de Ser e Tempo – na esteira da diferença ontológica fundamental do ser e do ente, e da sua crítica da onto-teo-logia metafísica do Ser como ente[10] – essa pergunta não se traduzirá também na potência da pergunta na sua multiplicidade de perguntas possíveis sobre si mesma e sobre o ser como sentido? 
Voltando à questão filosofias nacionais/filosofias internacionais. Esta questão não se constituirá, portanto, no questionamento legítimo sobre, precisamente, o questionar acerca da possibilidade de eventuais ou virtuais elementos nacionais, legítimos ou não e estruturais também, dos mais variados, em qualquer filosofia? Foi o que se tentou mostrar nesta primeira parte. Pode parecer redundante, repetitiva esta série de questões. Mas questionar implica também um recuar re-forçado, instalando, correlativamente, uma força de avanço, de balanço que constitui o buscar, o pesquisar enquanto potência de repetição, abrindo-se como futuro. Em nosso entender o levantamento destas questões é pois pertinente. 
                                                          

                                                             
                                                                II


                     

“Para começar, agradeço o facto de me considerarem paradoxal. Como vejo sempre no heterodoxo o ortodoxo do outro lado, creio que aquilo que realmente nos pode unir é o paradoxal. O existir e não existir ao mesmo tempo é, do meu ponto de vista, a união final das coisas, e isso é o paradoxal.”

(Agostinho da Silva[11])


Há paradoxos e paradoxos. E Agostinho da Silva compreendeu bem isso. A indignação perante uma certa impossibilidade de pensar, incutida, através de preconceitos (pré-conceitos) muitas vezes insuspeitáveis, garante a indagação sobre a questão que, ao questionar e questionar-se por si/e a si mesma, abre-se a outra, a outras questões que à partida eram tidas como inquestionáveis e não pertinentes nesse contexto. Evocamos aqui a potência do espanto (thaumazein; vj. Aristóteles, Metafísica. A2: "as coisas serem como são"). Espanto, questionamento originário, constituindo-se como interrogação (de certo modo negação latente) e exclamação (de certo modo afirmação latente). Constatação já de um certo saber e não saber.
Todavia, o espanto é motivo para os homens filosofarem, segundo o estagirita (vj. também Platão Teeteto 155d)[12]. Para não falar no grande Sócrates.
Retomemos a primeira epígrafe da 1ª parte deste texto: “Sócrates – Dizem, caro amigo, que os primeiros oráculos no templo de Zeus, em Dodona, foram feitos por um carvalho!  É evidente que os homens daquele tempo não eram tão sábios como os da nossa geração e, como eram ingénuos, o que um carvalho ou um rochedo dissessem tornava-se muito importante conquanto lhes parecesse verídico! Mas para ti talvez interesse saber quem disse determinada coisa e de que terra é natural, pois não te basta verificar se essa coisa é verdadeira ou falsa!” (Platão, Fedro, 275 c).
Nada mais favorável. O dado adquirido e o nome sonante - ou tornado sonante - vão de par. Mas o nome sonante pode tornar-se a qualquer momento uma colagem. Porque ao nome pode colar-se a imagem e o texto. E pode ocorrer que, às tantas, já não lemos o texto mas o nome; ou pior, um acréscimo ocorre como pura imagem de marca, e de um certo mercado, como é óbvio! Às vezes somos antecipados por colagens de nomes a significados. É o que mostra o passo do Fedro acima citado: Mas para ti talvez interesse saber quem disse determinada coisa e de que terra é natural, pois não te basta verificar se essa coisa é verdadeira ou falsa!”[13].
O seguidismo daqueles que, raramente abrindo excepções, seguem sempre nomes estrangeiros, ainda que nomes de várias origens, países ou continentes, não estarão, no revés, a ser nacionalistas, portanto, pela negativa? Estranhos nomes, e quanto mais estranhos melhor. Com dificuldade mas deleite em pronunciá-los, com muito estilo. Noutro plano, o exemplo do futebol é ilustrativo. Com os novos nomes esquisitos que vêm lá de fora no início de cada época, etc., aparecendo nas manchetes dos jornais desportivos. Porquê?
Voltemos à filosofia. Porque no internacionalismo universalizante das suas opções, ou, se quisermos, a qualquer área da cultura – quando é numa certa tendência pretensamente estrangeirada – só dão relevância ao que é exclusivamente, e a priori, de outra nacionalidade que não a sua.
Não só são nacionalistas pela negativa. São, antes, um estranho avesso. Um avesso ainda impensado. Portanto, não dão conta que recaem de alguma maneira no desnível (as subestimações culturais em sentido lato) que pré-supõem, e de que pretensamente se julgam excluir, incluindo-se. É nesse deslize – nesse descair desfavorável, e que não é um assentar de impulso – que a força daqueles mesmos que desfavorecem, se enfraquece e se auto-substima, ou seja, a começar evidentemente por eles. Isto para aqueles que, tendencialmente, têm por sistema dizerem e/ou pensarem mal do seu país, seja ele qual for (de ‘X’ país, de ‘X’ nação, etc.). Alguma analogia poderemos encontrar no seguinte passo de Fernando Pessoa abrindo um texto (“Contra a ‘Síndroma Provinciana’ – ‘O provincianismo português’”(1928)[14]): “De igual doença enfermam muitos outros países, que se consideram civilizantes com orgulho e erro.” Mas só lendo o texto de Pessoa poderemos ter eventualmente uma noção do contexto e do seu alcance como chamada de atenção (“Contra a…”).
Falamos daqueles que maldizem num regime de argumentação banalizado, acrítico (e isto também atinge gente dita de cultura), dizendo todos mais ou menos o mesmo acerca de um determinado conjunto (conjunto de pessoas; poderemos pensar aqui na teoria dos conjuntos em matemática?), sem darem conta disso, mas afinal pertencendo-lhe (a esse conjunto), cada um supondo excluir-se dos outros. Esta expressão, tão frequente em Portugal, é sintomática e esclarecedora: “É o país que somos.” Estranho paradoxo. Mas, até a Europa, hoje, não anda a mirar-se muito bem ao espelho…
Por outras palavras, e reiterando, estarão a ser nacionalistas do avesso. Uma vez que, no que respeita a vários campos do saber, nomeadamente a filosofia, que é o que aqui está principalmente em causa, seguem sempre, ou quase sempre, o que é estrangeiro como prioritário e, por pré-conceito, de maior grandeza de pensamento. Quer dizer, algo que se traduz como regra geral no modo de pensar por parte de certas camadas, intelectualizadas ou não[15].
Por outro lado, é evidente que a autocrítica e o espírito crítico são essenciais[16].
Mas não é interessante que alguns supostamente tidos por “estrangeirados” acusem de provincianismo alguns supostamente tidos por “não-estrangeirados”, e reciprocamente? Fernando Pessoa também falou do provincianismo português. Evidentemente que estas questões dão que pensar. E haverá com certeza que ter em conta argumentos possíveis de ambas as partes. Mas não avancemos muito sobre isto. Indica-se apenas mais uma passagem, o último parágrafo de “Contra a ‘Síndroma Provinciana’ – ‘O provincianismo português’”, para se ler mais: “Para o provincianismo há só uma terapêutica: é o saber que ele existe. O provincianismo vive da inconsciência; de nos supormos civilizados quando o não somos, de nos supormos civilizados precisamente pelas qualidades por que o não somos. O princípio da cura está na consciência da doença, o da verdade no conhecimento do erro. Quando um doido sabe que está doido, já não está doido. Estamos perto de acordar, disse Novalis, quando sonhamos que sonhamos.”
Todavia, de um certo modo, para fazer face a estas questões é preciso saber pô-las, também, de lado, defendendo pontualmente que o problema essencial não é esse. Convém mesmo guardar silêncio de vez em quando, e não embarcar sempre nesse barco de discussões. A palavra também guarda silêncio. Ou, por outras palavras, fazer suspensão, epochê, ou ‘redução’ do problema, para pensar na linguagem de Husserl. É que todo e qualquer problema pode tornar-se circularmente fechado. A sua abertura permite pensá-lo sob múltiplos ângulos.
A filosofia, desde a sua instalação na tradição greco-europeia-ocidental caracteriza-se em grande parte pela abstracção (aphairesis) definida por Aristóteles: “pensamento das coisas que estão incorporadas na matéria como se não estivessem” (Aristóteles, De anima, III, 431b). Mas a abstracção pode por vezes incorrer em perdas de sentido das coisas. Não será ela um dos possíveis problemas da metafísica? A filosofia corre esse risco. As abstracções dos rótulos e das etiquetas, paradoxal e incompreendidamente coisificados, concretizados. Seja na filosofia espanhola, chinesa, francesa, holandesa, dinamarquesa, alemã, mexicana, portuguesa, filipina, angolana, belga, austríaca, peruana, coreana, ou lá o que se queira, etc. 
Este texto que aqui escrevemos também pode padecer de abstracções a muitos olhos. Mas, há várias abstracções, que Pessoa, por exemplo, faz questão de frisar. Veja-se o seu texto “Princípios do Sensacionismo” no âmbito da reflexão sobre a arte, onde pode ler-se: “Assim, a arte tem por assunto, não a realidade (de resto, não há realidade, mas apenas sensações artificialmente coordenadas), não a emoção (de resto, não há propriamente emoção, mas apenas sensações de emoção), mas abstracção. Não a abstracção pura, que gera a metafísica, mas a abstracção criadora, a abstracção em movimento. Ao passo que a filosofia é estática, a arte é dinâmica; é mesmo essa a única diferença entre a arte e a filosofia” (Páginas Sobre Literatura e Estética, ed. Europa-América, org. António Quadros, 1986)[17].
Mas, por vezes é preciso pensar: “já não é de certas questões que se trata.” Ou melhor, a sê-lo, trata-se antes de questionar sobre o modo como elas já diferentemente devem ser questionadas, quer dizer, reformuladas. Uma vez que já não fazem sentido nem sequer existem segundo certas perspectivas ou momentos. É que por vezes não é ocasião para certas questões. Dar azo a que as questões possam sempre outrar-se, para usar um termo de Pessoa. Pessoa que não saiu de Lisboa, excepto quando foi para Durban viver a sua infância e primeira juventude, voltando depois. Pessoa, nos nossos dias lido de Tóquio a Nova York. Pessoa que também escreveu sobre o Quinto Império, correlativo, como se sabe, do Espírito e dos Mares,  que Agostinho da Silva tanto e tão bem pensou[18]. Pessoa poeta, cujo pensamento produz infindáveis leituras. Aliás, não haverá pensamento e filosofia em Pessoa, mesmo na sua escrita poética, na sua arte de escrita?
O filósofo francês Alain Badiou, na abertura do seu texto “Uma Tarefa Filosófica: Ser Contemporâneo de Pessoa”, escreve: “Pessoa, falecido em 1935, só foi conhecido em França, de forma um pouco mais vasta, cinquenta anos mais tarde. Eu incluo-me nesta demora escandalosa. Porque se trata dum dos poetas decisivos deste século e, particularmente, se se procurar pensá-lo como condição possível da filosofia.” E na segunda página: “Impõe-se, assim concluir que a filosofia não está, não está ainda, condicionada a Pessoa. Ela não pensa ainda à altura de Pessoa.” E: “Sustentaremos que a linha de pensamento singular desenvolvida por Pessoa é tal, que nenhuma das figuras estabelecidas da modernidade filosófica está apta a suportar a sua tensão” (Meditações Filosóficas – Pequeno Manual de Inestética, Vol. II, trad. Joana Chaves, ed. Inst. Piaget, 1999)[19]. Por outro lado, é curioso que José Gil, no seu livro Diferença e Negação na Poesia de Fernando Pessoa, Relógio D’Água, 1999, p.133, escreva: “”O pensamento” de Fernando Pessoa não existe, se entendermos a expressão no sentido de um todo sistemático e fechado, logicamente coerente e acabado.” E mais à frente acrescenta citando-o e comentando: “Ele mesmo, reivindicou o direito de ‘mudar de filosofia como quem muda de camisa’. Além do mais, a sua coerência e sistematicidade são de uma outra natureza.“ (op. cit. p.133). Aproveitando estas linhas sobre Pessoa, citamos um passo do livro de Renato Epifânio (Via Aberta): “Quem considera que Pessoa não é um filósofo por essa razão [“de que jamais forjou um “sistema filosófico” propriamente dito”] tem, no entanto, que atender ao seguinte: se, efectivamente, Pessoa jamais forjou um “sistema filosófico” propriamente dito, isso, em si mesmo, no caso pessoano, é já uma posição filosófica. Com efeito, se há alguma tese que Pessoa, em nome próprio ou heteronimamente, sustenta, procura sustentar, ao longo de todas estas páginas [“Textos Filosóficos”], é, precisamente, a da impossibilidade – filosófica, saliente-se – de forjar, de fundar, um “sistema filosófico””[20].
A questão da filosofia portuguesa é uma entre as muitas questões da filosofia e do pensamento em Portugal[21]. Estas questões carecem de discussão com outras que não portuguesas que não em Portugal, não importa de onde. Deste modo, a questão sobre a questão da ‘filosofia’ talvez fizesse mais sentido. Como? Pondo-a, de vez em quando, a par daquelas, as filosofias nacionais e as internacionais, colocando em diálogo muitas questões imprevistas e novas, garantindo uma melhor compreensão do mundo na sua espantosa interrogação. Mas por cá parece haver agora qualquer coisa como uma lufada de ar fresco que nos faz pensar melhor e de outro modo estas e outras questões como forças de pensamento e de filosofia.


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Referências:

Aristóteles, Metafísica, ed. trilingue [grego, latim, castelhano], trad. Valentin García Yebra, Madrid, ed. Gredos, 1990.

Aristote, De l'Âme, trad. nouvelle et notes J. Tricot, Vrin, 1934.

Badiou, A., Petit Manuel d’Inesthétique, Paris, Seuil, (1ª ed. 1998)); ed. portuguesa: Meditações Filosóficas – Pequeno Manual de Inestética, Vol. II, trad. Joana Chaves, Lisboa, ed. Inst. Piaget, 1999).

Badiou, A., Le siècle, Paris, Seuil, 2005.

Epifânio, R., Via Aberta, de Marinho a Pessoa, da Finisterra ao Oriente, Sintra, Zéfiro, 2009.

Gil, J., Diferença e Negação na Poesia de Fernando Pessoa, Lisboa, Relógio D’Água, 1999.

Heidegger, M., Être et Temps, trad. François Vezin, Ed. Gallimard, 1986.

Marinho, J., Estudos Sobre o Pensamento Português Contemporâneo, Biblioteca Nacional.

Pessoa, F., Páginas Sobre Literatura e Estética, Lisboa, Europa-América, org. António Quadros, 1986.

Pessoa, F., Textos de Intervenção Social e Culturala ficção dos heterónimos, Lisboa, Europa-América, org. António Quadros, 1986.

Platon, Théétète, trad. E.Chambry, Paris, Flammarion, 1967.

Platão, Fedro, 275 c, trad. Pinharanda Gomes, Lisboa, Guimarães, 1986.

Ribeiro, A., O Problema da Filosofia Portuguesa, Lisboa, Inquérito, 1943.
Santo, Luís C. do E., Vivências, Cartas da América, Lisboa, Ésquilo, 1998.

Silva, A. (Entrevista a Agostinho da Silva) in Revista Filosofia (Sociedade Portuguesa de Filosofia), nº2, 1986.
Tavares, L. B., «Homenagem a Luís do Espírito Santo, Leitor de Leonardo Coimbra», in revista Nova Águia, nº11, 1º semestre, 2013, pp. 98-99, Zéfiro. http://escrita-fone.blogspot.pt/search?q=lu%C3%ADs+do+esp%C3%ADrito+santo
Tavares, L. B., «António Quadros, Leitor e Divulgador de Fernando Pessoa», in revista Nova Águia, nº12, 2º semestre, 2013, pp. 57-58, Zéfiro. http://escrita-fone.blogspot.pt/search?q=ant%C3%B3nio+quadros








[1] Este ensaio foi publicado em duas partes (“I” e “II”) em datas diferentes no blogue Milhafre, tendo entretanto sofrido uma revisão e acrescentos significativos para a presente publicação.

[3] Agamben tendo já tecido alguns subtis comentários em relação ao predomínio do inglês: Giorgio Agamben. Resistance in Art. 2014 (EGS – European Graduate School) (https://www.youtube.com/watch?v=one7mE-8y9c&t=1814s). Traduzamos: “… gostava de vos lembrar algo que parece óbvio; ou seja: que eu irei pronunciar-me em inglês”; “…mas como o inglês não é a língua com que penso, certamente algo de relevante irá perder-se”;  “hoje, geralmente há a dominância do inglês em conferências, universidades e em lugares deste tipo”; “isto não deve ser considerado de modo inocente…“; “ …o inglês é usado como uma espécie de língua franca, tal como o latim foi usado na Europa nos séculos XV, XVI…”; “… mas o latim não pertencia a nenhum país em particular…”...
[4] Embora Sloterdijk fale por vezes em francês e inglês.
[5] Fui amigo do Professor Luís Carlos do Espírito Santo (1925-2000), que pertenceu ao Grupo da Filosofia Portuguesa, tendo sido discípulo de Álvaro Ribeiro e de José Marinho, discípulos de Leonardo Coimbra. Luís do Espírito Santo participou no memorável Colóquio “O Ideal Português” (1961) que decorreu na sequência da suspensão                
da célebre publicação do “Movimento 57” (Movimento da Cultura Portuguesa, 1957-62) dirigido por António Quadros. Além deles, participaram  Fernando Silvan, Fernando Morgado, António Braz Teixeira, Francisco Sotto Mayor, Alexandre Coelho e Francisco da Cunha Leão. Estes e muitos outros dados foram vivamente recordados por quem assistiu ainda muito jovem àquele importante encontro, o meu prezado amigo Pinharanda Gomes na sua interessante conferência no recente Colóquio sobre António Quadros em Maio de 2013 e que tivemos o privilégio de registar em vídeo: http://youtu.be/jIncQXq9IhQ. Veja-se também: Luís de Barreiros Tavares, «Homenagem a Luís do Espírito Santo, Leitor de Leonardo Coimbra», in revista Nova Águia, nº11, 1º semestre, 2013, pp. 98-99. Zéfiro. http://escrita-fone.blogspot.pt/search?q=lu%C3%ADs+do+esp%C3%ADrito+santo . Luís de Barreiros Tavares, «António Quadros, Leitor e Divulgador de Fernando Pessoa», in revista Nova Águia, nº12, 2º semestre, 2013, pp. 57-58, Zéfiro. http://escrita-fone.blogspot.pt/search?q=ant%C3%B3nio+quadros .
[6] A este propósito vj. o interessante documentário sobre Heidegger, com depoimentos de George Steiner, Hans Georg Gadamer, Richard Rorty, entre outros: https://www.youtube.com/watch?v=2Q3xy9TzY9E.
Os “cadernos negros” ou “diários privados”, recentemente publicados (2013-2015), atestam-no vincadamente, quer queiramos ou não…

[7] Renato Epifânio tem preconizado esta designação; ela é mais abrangente, ao mesmo tempo linguística e internacionalmente, bem como num alargamento no tempo e na história. Veja-se, p. ex., um excerto do editorial do nº 16 da revista Nova Águia, intitulado “Quem TEM MEDO DA FILOSOFIA LUSÓFONA? NOS 100 ANOS DO FALECIMENTO DE SAMPAIO BRUNO”: “Em 2015 assinalam-se os 100 anos do falecimento de Sampaio Bruno e, naturalmente, a Nova Águia, ao contrário da generalidade das revistas culturais, que insistem em ignorar o que mais importa, dá o devido destaque a essa que foi, sem dúvida, uma das figuras mais marcantes da Filosofia Lusófona…” http://www.zefiro.pt/livro_novaaguia016.htm . Vj. também “Pensamento lusófono”.

[8] José Marinho, Estudos Sobre o Pensamento Português Contemporâneo, Biblioteca Nacional, p.10.
[9] o problema fundamental da filosofia consiste na pergunta pelo ser, que é, afinal, a pergunta pela ousia” (Met. 1028 b). 
[10] Tentando explicitar brevemente diríamos que o ser como/enquanto ente abriu caminho para a tradição da metafísica ocidental que, segundo Heidegger, esqueceu o 'sentido do ser' (vj. Sein und Zeit) na medida em que o ser era compreendido, em última análise, precisamente como/enquanto ente. Ser era ente, de um modo geral. Ente herdado, por exemplo, do ser da Ideia (Idea - indicativamente ontológica) platónica e do ser teológico medieval, escolástico, com expressão máxima em Aquino. Donde a crítica heideggeriana da onto-teo-logia. Vj. http://blogoscomfbeloperguntaserespostas.blogspot.pt/search?q=onto-teo-logia
[11] Numa entrevista a Agostinho da Silva publicada em 1986 na Revista Filosofia (Sociedade Portuguesa de Filosofia), nº2, pp 149-183. Entrevista concedida pelo filósofo em sua casa a Joel Serrão, João Lopes Alves, Nuno Nabais, António Braz Teixeira e José Pedro Serra. Vale a pena citar as linhas seguintes: "Como no exemplo da geometria analítica, que já referi, esse mundo de paradoxos no qual posso pensar simultaneamente os registos da extensão espacial e da matemática pura. Considerando-me paradoxal, dirigem-me o melhor elogio que eu poderia esperar." E terminando a entrevista na página seguinte: "Importante é instalarmo-nos no paradoxo. Medo tenho eu do ortodoxo e do heterodoxo, que me coibiriam de fazer algo que muito me agrada: poder conversar com pessoas de vários pensamentos, várias atitudes, com a capacidade de as entender em si mesmas, sobretudo quando alguma me aparece com sinal inteiramente contrário ao meu. Quem sabe se precisamente esse, que alguém diria ser enviado do diabo, não é um dos disfarces do divino."
[12] Para thauma, v. Platão Teeteto 155d (além de Arist. Met. A2: o espanto é "as coisas serem como são"). “Nos dois, o "espanto" parece ser gerado pelo envolvimento do 'saber' com o 'não saber'” (comentário de José Trindade Santos numa conversa que tivemos  em “questões por e-mail – com José Trindade Santos: http://escrita-fone.blogspot.pt/search?q=o+espanto+%2B+jos%C3%A9+trindade+santos).

[13] Foucault escreveu um texto interessante sobre o “nome de autor” (“O que é um autor”). Mas certamente haverá ainda muito por escrever sobre este tema.
[14] Cf. Textos de Intervenção Social e Cultural…, ed. Europa-América, org. António Quadros, 1986, p.115. Este texto poderá ler-se na seguinte ligação: http://www.citador.pt/textos/o-provincianismo-portugues-i-fernando-pessoa.
[15] Diríamos, um tanto parodicamente, que um certo tipo de estrangeirado – mais, ou menos – pensante, se deixa fascinar, enfeitiçar, por nomes que soem estranhos (e, como sabemos, xenos, do grego, tanto pode significar estranho como estrangeiro… nestes casos, uma certa xenofilia, digamos assim…
[16] Não será nessa perspectiva – filosófica, entre outras – que Álvaro Ribeiro cita e comenta Sant’Anna Dionísio? “Não acreditemos, pois, que sobre nós pese uma invencível incapacidade. Fixemos, sim, os olhos na certeza de que para nós está aberta a possibilidade de contribuirmos para a cultura humana como a quaisquer outros núcleos ou gerações humanas” (Sant’Anna Dionísio, A não-cooperação da inteligência ibérica na criação das ciências, Lisboa, 1941, pp. 25 e 47, citado em Álvaro Ribeiro, Op, cit., pp. 20 e 21). “Formular tal opinião é já dar a oportunidade de a rectificar; por isso os três depoimentos citados [Sampaio Bruno, Fidelino de Figueiredo e Sant’Anna Dionísio] valem também pela preocupação que denotam, e podem ser interpretados como sinais negativos, mas precursores da era da novidade para a filosofia nacional” (Idem, p. 21).

[17] Veja-se também, a propósito, o seu texto “Apontamentos para uma estética não-aristotélica” (Textos de Intervenção Social e Cultural…, p. 230).
[18] "Agostinho da Silva - Ele Próprio" - Filmado por António Escudeiro - Edição integral: https://youtu.be/UUDZ9GN-YlI.
[19] A título de exemplo, apresentemos um dos vários argumentos de Badiou relativamente à Ode Marítima (“Um dos maiores poemas de Campos (e de todo o século)”: “Encontramos no heterónimo Campos, singularmente nas grandes odes, e é o que autoriza a hipótese de Gil [José Gil], a aparência de um vitalismo desencadeado [déchaîné]. A exasperação da sensação parece ser o processo maior da pesquisa poética, e a exposição do corpo ao seu desmembramento multiforme evoca a indentidade virtual do desejo e da intuição. Uma ideia genial de Campos é também a de mostrar que a oposição clássica do maquinismo e do élan vital [aqui numa alusão a Bergson] é muito relativa. Campos é o poeta do maquinismo moderno e das grandes metrópoles, ou da actividade comercial, bancária, fabril, concebidos como dispositivos de criação, como analogias naturais. Ele pensa, bem antes de Deleuze, que há no desejo uma espécie de univocidade maquínica, cujo poema deve captar a energia sem a sublimar nem idealizar, sem tão-pouco a dispersar num esquivo equívoco, mas nela alcançando os fluxos e os cortes, mesmo numa espécie de furor do ser”.  Traduzimos partindo do original francês (Alain Badiou, Petit Manuel d’Inesthétique, Paris, Seuil, (1ª ed. 1998)) e da versão portuguesa referida acima. Ver também Alain Badiou, Le siècle, Ed. Seuil, 2005.
[20] No capítulo III, “Pessoa, o filósofo do outro de nós mesmos, o filósofo da nossa finisterra”, in Via Aberta, de Marinho a Pessoa, da Finisterra ao Oriente, Zéfiro, 2009, pp. 57-58.
[21] Evidentemente que estes problemas têm implicações políticas; para não falar nas culturais, sociais, em sentido lato, entre outras.