sábado, 29 de dezembro de 2012

Poemas manuscritos de Manoel (Manoel Tavares Rodrigues-Leal). Do caderno "De Profundis et de Clamoris" (1976)









Citação de Sophia de Mello Breyner Andresen


Acima, o título possível para o caderno: De Profundis et de Clamoris (1976)

O autor tece um comentário negativo e genérico em duas palavras acerca deste caderno.

Contudo, escolhemos alguns poemas esperando acertar nuns quantos que porventura não tenham sido abrangidos por tal autocrítica.



Quando dobrares uma esquina,
Numa clandestina cidade ocidental,
Ora aos deuses e aceita o convite e caminha.








Sapho


..... virtualidade .....

..... metal .....


..... que suave escrever-se, e a escrita ser meu alto alimento .....



Manoel Tavares Rodrigues-Leal em finais da década de 8o + -.
Fotografia: Luís de B. Tavares






 
Duas versões:



 ..... e o diáfano será nudez e perfeito se ascender ao humano






Referência a Sophia de Mello Breyner Andresen


Evocando "Os quatro quartetos" de Elliot 


..... Povoam as secretas e sagradas palavras do dia que principia.






Comentário do autor. O que do meu ponto de vista, revela grande exigência no trabalho, pois parece-me haver neste caderno alguns poemas pelo menos de considerável qualidade.







Manoel em 2011
Foto por LBT
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terça-feira, 25 de dezembro de 2012

Empédocles: aquém ou além de Heraclito e Parménides? Axiologia, Ontologia e outras notas.





"Alguns em busca de profecias, enquanto outros, apunhalados durante muitos dias por dores agudas, pedem para ouvir a palavra que cura toda a espécie de doenças"
Empédocles, fr.112
"... é preciso que desapareça a tempo, aquele através de quem o espírito falou"
Hölderlin, Empédocles*





A double tale will I tell: at one time it grew to be one only from many, at another it divided again to be many from one. There is a double coming into being of mortal things and a double passing away. One is brought about, and again destroyed, by the coming together of all things, the other grows up and is scattered as things are again divided. And these things never cease from continual shifting, at one time all coming together, through Love, into one, at another each born apart from the others through Strife. (So, in so far as they have learnt to grow into one from many,) and again, when the one is sundered, are once more many, thus far they come into come into being and they have no lasting life; but in so far as they never cease from continual interchange of places, thus far are they ever changeless in the cycle.

Empédocles, Fr. 17, 1-13, Simplicius Phys. 158, 1
Kirk, G.S., & Raven, J.E., The Presocratic Philosophers, University Press, Cambridge, 1975.


Vou contar uma dupla história: de uma vez cresceu para ser um só a partir de muitos, de outra, dividiu-se de novo para ser muitos a partir de um. Há um duplo nascimento das coisas mortais e um duplo deixar de existir. Um é gerado e depois destruído, pela junção de todas as coisas, o outro cresce e é espalhado à medida que as coisas de novo se dividem. E estas coisas nunca cessam o seu mover contínuo, ora convergindo num todo, graças ao Amor, ora cada uma separada das outras pela Discórdia. (Assim, na medida em que aprenderam a fazer-se num a partir de muitos) e de novo, quando esse um está separado, são uma vez mais muitos, assim nascem e não têm vida duradoura; mas, na medida em que nunca cessam a intermutação contínua de lugares, nessa medida eles são sempre imutáveis no ciclo.

Empédocles, Fr.17, 1-13, in Simplício, Phys., 158,1
Kirk e Raven,Os Filósofos Pré-Socráticos, trad. C.A.L. Fonseca, B.R. Barbosa, M.A.Pegado, Gulbenkian, Lisboa.


But come, hearken to my words; for learning increaseth wisdom. As I said before when I declared the limits of my words, a double tale will I tell: at one time is grew to be one only from many, at another it divided again to be many from one, fire and water and earth and the vast height of air, dread Strife too, apart from these, everywhere equally balanced, and Love in their midst, equal in lenght and breadth. On her to thou gaze with thy mind, and sit not with dazed eyes; for she is recognized as inborn in mortal limbs; by her they think kind thoughts and do the works of concord, calling her Joy by name and Aphrodite. Her does no mortal man know as she whirls around amid the others; but do thou pay heed to the undeceitful ordering of my discourse. For all these are equal, and of like age, but each has a different prerogatif and its own character, and in turn they prevail as time comes round. And besides these nothing else comes into being nor ceases to be; for if they were continually being destroyed, they would no longer be; and what could increase this whole, and whence could it come? And how could these things perish too, since nothing is empty of them? Nay, there are these things alone, and running through one another they become now this and now that and yet remain ever as they are.

Fr.17, 1. 14, Simplicius Phys. 158,13 (continuing Fr. 1.
17, 1-13)
Op.cit.



Mas anda, atenta nas minhas palavras; pois aprender aumenta a sageza. Como disse anteriormente, quando declarei os limites das minhas palavras, vou contar uma dupla história: de uma vez, cresceu para ser um só a partir de muitos, doutra, dividiu-se outra vez para ser muitos a partir de um, o fogo e a água e a terra e a vasta altura do ar, e também a discórdia temível separada destes, em toda a parte igualmente equilibrada, e o amor no meio deles, igual em comprimento e largura. Para ele olha com o espírito e não fiques com os olhos ofuscados; pois ele é reconhecido como inato nos membros imortais; por ele são eles capazes de pensamentos bons e de praticar obras de concórdia, dando-lhe o nome de Alegria e a Afrodite. Nenhum homem mortal o conhece, quando ele rodopia no meio dos outros; mas presta atenção à ordenação do meu discurso que não engana. Pois todos estes são iguais e de idade igual, mas cada um tem uma prerrogativa diferente e o seu próprio carácter, e prevalece cada um, por sua vez, à medida que o tempo gira. E além destes, nada mais se gera nem cessa de existir; porque se estivessem a ser continuamente destruídos, já não existiriam; e o que poderia aumentar este todo e de onde poderia vir? E como poderiam estas coisas perecer também, visto que nada está vazio delas? Não, há somente estas coisas, e correndo umas pelas outras, elas tornam-se umas vezes isto, outras, aquilo, e permanecem, contudo, sempre como são.

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Empédocles, Fr.17, v. 14, in Simplício, Phys., 158, 13 (continuação de Fr.17, 1-13)
Op.cit.

De duplo nascimento
Empédocles, fr.69

Se disséssemos que Empédocles, num certo sentido, menciona, e é o primeiro a fazê-lo, o mal e o bem como princípios, talvez tivéssemos razão…
(Aristóteles, Metafísica, A 4, 985 a 4)


[...] o poema maravilhoso de Empédocles [...]
Nietzsche

É em volta dos descobridores de valores novos que o Mundo se move no seu giro eterno.
Nietzsche, Assim falava Zaratustra
 
Essa nomenclatura dos quatro elementos [em Empédocles] mantém-se. É interessante que os quatro elementos mantêm-se intocáveis. Nem hoje os controlamos: fogo, terra, água, e céu [ar].
Manoel Tavares Rodrigues-Leal (Poeta)



1. Este texto corre riscos de imprecisões temáticas. A começar por algumas abordagens dos princípios empedoclianos, Amor (Φιλίαν) e Discórdia (ou Ódio - Νεΐκος) na perspectiva axiológica, ética, moral e embrionariamente ontológica (1). Aliás, como se sabe, o termo 'Ontologia' designando uma disciplina só foi instituído filosoficamente muitos e muitos séculos depois, não cabendo aqui entrar em detalhes. O mesmo sucedendo com a Axiologia enquanto "teoria geral do valor". Hermann Lotze (1817-1881) é considerado o fundador da filosofia moderna dos valores (2). Por outro lado, não sou entendido em Empédocles nem nos Pré-socráticos que muito admiro. Aquelas abordagens servirão de apoio para o que me proponho. Sendo que Amor e Discórdia são princípios genésicos e cosmogónicos, eles não deixam de ter em germe o que virá a ser do plano ontológico. A tese esboçada neste estudo preparatório é a de que o passo adiante dado por Heraclito e Parménides, precedendo Empédocles, e supostamente mais adiantados do que ele, ultrapassando-o, no que respeita ao processo do Lógos diferenciando-se do Mythos, carece ainda de maior reflexão. Porquê? No sentido de que os pensamentos de Heraclito e Parménides guardam, em nosso entender, vestígios éticos, axiológicos, morais e outros. O pensamento de Empédocles, será de certa maneira, um aviso a posteriori, - soubesse-o ou não, pouco importa - de como esses vestígios permaneciam naqueles dois poetas-filósofos. É o nosso ponto de vista a uma longa e arriscada distância no tempo. Assim, só o processo de reconhecimento destes vestígios através do aparente recuo de Empédocles - pois este pode afigurar-se um tanto retrógrado relativamente aos outros dois que o precedem - permitirá uma melhor compreensão da génese ontológica do pensamento de ambos, Heraclito e Parménides. Sendo que, nesse sentido, Empédocles, só de um certo modo recua e regride. Assim, o seu contributo para este inquérito naqueles dois pré-socráticos, ao invés de recuar, avança de modo talvez ainda por abalizar. De facto, Amor e Discórdia são princípios (archai). Estes reenviam para uma arqueologia no sentido pleno  etimológico. Para mais, como sabemos, os filósofos pré-socráticos buscavam os primeiros princípios e causas das coisas.
Tentaremos pôr em jogo as dimensões axiológica, ética, moral e embrionariamente ontológica entre estes três pensadores pré-socráticos. Para quê? Para compreendermos melhor estas questões que de uma certa maneira ainda nos tocam. Quantas vezes os valores, ou certos valores, não se insurgirão hoje nos campos da ontologia, fenomenologia, estética, ética, etc., sem que nos demos disso conta, fazendo valer já outros valores segundo formas camufladas dessas mesmas disciplinas? O que pode dar também o inverso, mas não certamente o inverso simétrico. Seria muito fácil assim. O moral e o ético adquirem, por vezes, por sua vez um carácter abstracto e distante por força de adoptarem nas suas abordagens e questionamentos, distorcidamente, posições ontológicas, que afinal, por isso mesmo, não o são. Não foi Nietzsche quem falou da transvaloração total ou "transmutação de todos os valores"? 
Valores há muitos. Estéticos, éticos, morais, intelectuais, académicos, lógicos, espirituais, de liberdade, de vida, de existência, da arte, (O Valor da Arte; título de um livro do grande artista plástico Antoni Tàpies), da ciência p.ex., Bioética), históricos, políticos, metafísicos, teológicos, económicos, de uso e de troca (economia política), estatísticos e numéricos, etc.,etc., que servem para avaliar de modo por vezes tão abstracto e desgarrado da realidade, mas continuando valores para muitos. Estamos pejados de valores. E outros mais que a minha ignorância não chega para tanto. E, paradoxalmente, estamos muitas vezes cansados deles porque  não damos por eles, nem pelos nossos "juízos de valor". Trata-se neste estudo de ter cautela, tanto quanto se possa, para não cair, p.ex., em psicologismos e moralismos. O que é difícil, diga-se, quando entramos nestes terrenos.

2. Com efeito, Amor e Discórdia, em Empédocles, não reenviam obrigatoriamente ou exclusivamente para questões axiológicas. Mas podem, no entanto, pôr em jogo o sentido do que é da ordem dos valores, apesar de e porque (3), precisamente, esses princípios são cosmogónicos. Com estas advertências talvez seja mais aceitável enquadrar o Amor e a Discórdia numa vertente axiológica.
Do nosso ponto de vista, e no contexto ainda esboçado que se apresenta neste texto com alguns fragmentos e tópicos por trabalhar, Empédocles de Agrigento (acmê, cerca de 450 a.C.) é tão decisivo quanto os outros dois pré-socráticos que aqui escolhi em diálogo com ele. Estes são tidos como determinantes pelo que cada um é em suposta oposição, ou pelo menos diferenciação relativamente ao outro na aventura iniciada do pensamento filosófico ocidental, no que chamaria génese da Ontologia e da Fenomenologia (Heraclito que muito influenciou Hegel). Vejam-se, por exemplo, os extraordinários estudos de Heidegger sobre Heraclito e Parménides. Heraclito de Éfeso (acmê, entre 504 e 500 a.C.) e Parménides de Eleia (acmê, entre 500 e 475 a.C.). Estes muito mais estudados do que Empédocles pelo filósofo alemão. "Heraclito e Parménides são «as figuras radiosamente centrais desse mundo [pré-socrático]»". "Heraclito, a quem se atribui, numa brutal oposição a Parménides, a doutrina do devir, diz na verdade a mesma coisa que este último. Se dissesse outra coisa, não seria um de entre os maiores pensadores gregos". Estas duas citações de Heidegger são retiradas do excelente livro de Marléne Zarader, Heidegger e as Palavras da Origem (Trad. João Duarte, Ed. Instituto Piaget, pp.131-132). Respectivamente recolhidas por esta autora de "Jean Beaufret, Dialogue avec Heidegger" e "Martin Heidegger, Einführung in die Metaphysik".

3. Por que é que Empédocles é, do nosso ponto de vista, tão decisivo? Empédocles, recolhendo as lições de cada um, Heraclito e Parménides, fá-los recuar. Mostra como o movimento de pensamento de ambos é mais marcado do que muitas vezes se supõe por valores éticos e axiológicos. Como? No próprio movimento que desses valores o pensamento de ambos, cada um a seu modo, pretende libertar-se. As posições mais abstractas de Heraclito e Parménides assentavam sobre determinações que respectivamente pressupunham uma polémica, conflito ou guerra (polémos, Heraclito, fr. 53) e uma posição violenta, apesar de necessária, inaugurando a enunciação do Ser:  Kρὴ  τὸ  λέγειν  τε  νοεῖν  τἐὁν  ἔμμεναι ·  ἔστι  γἀρ  εἶναι (“É necessário [1º reforço] que o dizer e pensar que o ser é; é, pois, ser”, fr. 6, Parménides). Todavia, esta última parte é importantíssima - ἔστι  γἀρ  εἶναι (é, pois, ser), e Heidegger assiná-la, por exemplo em Carta sobre o humanismo: "L’ἔστι  γἀρ  εἶναι de Parménides n’est pas encore pensé aujourd’hui” (Martin Heidegger, Questions, III et IV, Gallimard, p.92). A conjunção γἀρ reitera (2º reforço).
Embora estes gestos de ruptura, de conflito e "violência" sejam da ordem do lógos (tensão e harmonia de contrários – Heraclito) e do ontológico (ou preliminarmente ontológico – Parménides), quem nos diz que se não forem questionados suficientemente no seu movimento de corte para outra dimensão mais abstracta, não trazem, não guardam consigo, dissimulados, alguns resíduos éticos, axiológicos e morais? O que por si não traz nada de mal, digamos. A menos que esses gestos não sejam pensados suficientemente na sua génese, geradora por seu turno daquelas dimensões ontológicas e de pensamento, por sua vez condição de possibilidade para outra concepção axiológica, ética e mesmo moral. Sim, não se trata de suspeição moralista, tão-pouco de hibridismo ético ou axio-ontológico. Tão-pouco importa o valor ou uma perspectiva valorativa das coisas, dos seres e menos ainda do Ser. Mas antes, compreender como o Ser pode, a dado passo, valorizar-se a partir de um certo despojamento supostamente abstracto, o qual à partida se enquadraria pretensamente livre de qualquer valor, fosse ético, axiológico, estético, político. Não é Platão que culmina a identificação da ideia de Bem (to agathon idea) à Ideia das ideias ontologicamente considerada? Pois Platão institui o passo que se segue a Parménides no curso lento e gradual do processo ontológico. E não é a "Ideia das ideias" na "doutrina platónica" correlativa dos inteligíveis e do ontológico? Não são estes, portanto, conotados com valores na hierarquia que leva finalmente à ideia de Bem e de Belo, a primeira ascendendo sobre a segunda? Sem esquecer o grande Sócrates que lhe dá o impulso fundamental, ele cujo pensamento assentava no ético e na justiça, no chamado "intelectualismo moral", pois só agiria mal quem ignorasse.

4. Por outras palavras, o nosso propósito é o defender uma tese mista, híbrida de ética ou axiologia e ontologia. Optemos então, neste estudo, pelo termo 'axiologia', sendo que este, embora remeta para 'valor' (axios, significando, no grego, "algo que é precioso", "digno", "digno de ser estimado"), não deixa de manifestar-se em germe nos princípios empedoclianos (Amor e Discórdia). Sem que estes a àqueles se limitem (4). Axiologia, será pois, diríamos, uma espécie de "muleta" provisória, à falta de nos ocorrer outro termo e temática. Talvez por incapacidade e limitação nossa não encontramos para já outra palavra melhor que essa. Ponhamos então de lado o termo 'ética' e 'moral' com todas as implicações etimológicas que comporta e relações à axiologia (5). Apesar de Kirk e Raven assinalarem Empédocles na sua dimensão moral segundo o ponto de vista de Aristóteles: “Aristóteles, nos seus comentários a Empédocles (…) diz que o Amor e a Discórdia têm um carácter moral” (Kirk e Raven, Os filósofos pré-socráticos, p.342). E é Aristóteles quem escreve: “Se disséssemos que Empédocles, num certo sentido, menciona, e é o primeiro a fazê-lo, o mal e o bem como princípios, talvez tivéssemos razão…” (Aristóteles, Metafísica, A 4, 985 a 5).
A julgar pelo que escreve Aristóteles, pode depreender-se aproximação temática entre os binómios Amor/Ódio e Bem/Mal, e, por via de consequência, implicações para a dimensão moral e ética. Eis, por outro lado, um bom ponto de partida, pois é legítimo que bem e mal sejam tidos como valores.
Portanto, tentemos modestamente simplificar estas questões complexas para não sermos por elas ultrapassados neste curto texto. É por isso que optamos por um breve estudo comparativo de axiologia e ontologia, na sua génese, à luz de Heraclito, Parménides e Empédocles.


5. Visa-se compreender como e quando há axiologia na preliminar ontologia e vice-versa, sem que se perca de vista o modo como cada um destes campos se insurge no outro, quando a pretensão de certas teses é a de que cada um se supõe isento do outro. São estes pressupostos que importa requestionar. Trata-se pois do modo como convém pensar estes processos para reformular o questionamento da axiologia e da ontologia, aceitando as suas interacções, mas supondo cada uma como tal. Enquanto campos diferentes de investigação, na condição, todavia, de ambos aceitarem as possibilidades de, de um momento para o outro, cada uma se insurgir na outra. Segundo critérios em que, precisamente, uma se toma pelo outra sem que se dê suficientemente por tal. Ora, importa compreender o modo como se dá esta subversão para seguir outra linha, a de como ambas, axiologia e ontologia, se interrelacionam e são por vezes necessárias à compreensão de cada uma. Não será essa subversão temática um dos factores que levam a certas incompreensões e injustiças de ordem ética, axiológica, ontológica e política? Provavelmente a subversão a que se alude manifesta-se principalmente no político, na política, mas também na história. Mas não é o lugar para desenvolver esta questão, até porque nos falta competência para tal.


6. Empédocles procede a um passo de recuo relativamente a um certo abstracto que começa com Heraclito e Parménides. Não será por isso que Deleuze escreve em O que é a Filosofia?: "É possível que os primeiros filósofos, e sobretudo Empédocles, tenham ainda o ar de sacerdotes ou até mesmo de reis. Pedem emprestada a máscara ao sábio e, segundo palavras de Nietzsche, como é que teria sido possível a filosofia não se mascarar nos seus primórdios?" ? Não nos assustemos com o termo abstracto. Foi Aristóteles quem um pouco mais tarde o enuncia, tematiza ou define (abstracção - aphairesis) (6). É este passo de recuo de Empédocles que cremos importante para reformular o modo como se começa a desenhar o passo de avanço para um certo 'abstracto' de Heraclito e Parménides. Sendo este movimento condição de possibilidade para reformular e ter em linha de conta o que de residual em termos axiológicos permanece nestes dois pensadores (Heraclito – lógos,  Parménides – ; legein, noein, einai). Residual axiológico no seu pensamento ontológico em germe (de Heraclito e Parménides). Pois, se não se tiver bem em atenção este processo poderemos supor uma separação radical entre o ontológico e o axiológico. Quando, o que importa será determinar estes dois planos na necessidade de serem pensados, para percebermos como essa separação afinal não o é. Para se tentar viabilizar outro sentido diferencial de separação, por um lado, e articulação, por outro. Ou seja, na  necessidade de esses planos serem pensados para que o axiológico não se marque no ontológico de tal modo que este seja apagado pelo primeiro sem que se dê bem conta disso. Ontológico apagado mas fazendo-se passar enquanto tal: ontológico. Podendo isto implicar consequências imprevisíveis a longo prazo, mesmo em longa duração.


7. Eis alguns elementos sobre a dimensão ontológica em Empédocles. Jean Brun mostra como o Sphaïros (Esfera), que é também Ser em Empédocles, engloba tudo e é regido pelo Amor. O Amor predomina indiciando a primitiva religião, justamente, a do Amor. O Sphaïros é o lugar do habitar e "esfera ontológica": “Empédocles faz do Sfaïros a esfera ontológica da qual nada divergiu ainda e que é Espírito sagrado e inefável. Luz pura, ignora as sombras que o Ódio faz surgir das divisões que provoca" (Jean Brun, Os pré-socráticos, p. 75). “Nada lhe é exterior, é absolutamente divino, inacessível aos homens. O Sfaïros é anterior a qualquer Ódio, qualquer divisão, qualquer fractura; sem acção nem paixão, ignora a luta e o múltiplo: é (Jean Brun, Os pré-socráticos, p.75).” O Sphaïros é, por assim dizer, ontológico, como acentua Brun. Mas também é o êthos (ἦθος) no sentido originário de morada, de espaço do habitar, remetendo assim para o ainda mais originário éthos, o qual por seu turno derivou posteriormente para a latinização mos – donde ‘moral’ - reunindo e anulando de alguma maneira os dois sentidos, e reenviando por sua vez para um critério semântico mais pobre, de ‘costumes’, etc. Mas que esta referência ao ético e à moral só nos sirva aqui de passagem.


8. Percebendo como os valores e critérios axiológicos do Amor e da Discórdia se manifestam transversalmente em Heraclito e Parménides, melhor se poderá transformá-los, relançando-os à luz do pensamento de Empédocles. E assim se perceberá o alcance do que às vezes pode ficar esquecido. Mas se compreendermos os pressupostos subjacentes de carácter  axiológico neste inaugurar da abstracção e da definição que ainda não o é, perceberemos melhor Heraclito e Parménides e, ao mesmo tempo, a importância da compreensão de Empédocles no que ele contribuiu para o que se lhes segue, sendo que aparentemente este - Empédocles - ainda se encontra aquém dos passos adiante feitos pelos outros dois, que o antecedem, como já se disse. Voltamos a dizer que ignoramos se estes eram os motivos de Empédocles. Aliás, não consta, segundo alguns, que Heraclito o tenha influenciado tão decisivamente como os pitagóricos, os órficos e Parménides (7): “A Esfera de Empédocles é indiscutivelmente modelada na de Parménides. O que Empédocles fez, de facto, foi pegar na esfera de Parménides e enchê-la desde o início com os quatro elementos eternamente distintos." No entanto, Empédocles demarca-se: "Mas esta simples mudança de uma unidade original para pluralidade original altera tudo o que segue" (Kirk e Raven, op. cit., p.337).
Por outro lado, no que respeita à influência de Heraclito sobre Empédocles, há quem sustente que a polaridade Amor / Discórdia decorra da influência de Heraclito com a sua polemos:  “O teor do poema de Empédocles é francamente pitagórico, mas a sua tese sobre a natureza, que institui o Amor e a repulsa (Filotés kai neikos), como motores cósmicos, encontra-se talvez aparentada à teoria da concórdia e da discórdia, de Heraclito" (Pinharanda Gomes, Filosofia grega pré-socrática, p.53). Ou ainda: “De facto, Empédocles está a desempenhar o seu papel habitual de mediador. Tomando, provavelmente, aquelas substâncias opostas que tinham sido mais notáveis nas primeiras cosmologias, o quente, o frio, o húmido e o seco (o primeiro destes pares foi de certeza usado por Anaximandro, ao passo que ambos os pares foram mencionados em Heraclito fr. 126)” (Kirk e Raven, op.cit., p.340).


9. É notável o modo como poeticamente Empédocles põe em jogo os princípios (archai – philia / neikos) e os elementos (Fogo, Ar, Terra e Água) e os descreve nos seus movimentos (8). As repetições que Empédocles faz questão de fazer nos fragmentos de "dupla a história" (vj. fr.17 falando da dupla história e repetindo-se) mostram que o alcance das suas palavras não deveria ser imediato. Mas obedecia a um processo de cuidadosa re-leitura.
Retomemos a tese deste estudo. O pensamento poético de Empédocles é condição de possibilidade da atenção à questão dos valores quando estes parecem já ultrapassados por Heraclito e Parménides nas suas meditações sobre o Lógos e o Ser (9). O movimento de abstracção que se está a operar em relação àqueles valores, com o Logos em Heraclito e o Ser em Parménides, ainda os traz ocultados. Não que a ocultação seja de negar. Heidegger fala-nos do movimento de ocultação/ des-ocultação (velamento/des-velamento) da aletheia do não[des]-esquecimento. O risco reside no modo como a ocultação se está a dar sem que se dê conta, por força de se supor que a superação e/ou supressão dos valores no processo de abstracção estão já dadas e adquiridas. 
Não será por isso que, por exemplo, ao fim de vinte e tal séculos se dá o acontecimento do paradoxo abissal ético-axiológico-político e ontológico do, sem dúvida nenhuma, grande pensador que foi Heidegger, sem que, talvez, ele pudesse dar conta total? Tal o peso de todo um processo que pode durar mais tempo que uma vida humana, podendo até ser milenar. E não dizendo respeito somente a um ou a outro humano, mas ao sentido do humano. Ou será que a contradição axiológica e ontológica poderá eclodir instantaneamente? Não sabemos. Ultrapassa-nos. Foi Heidegger, precisamente, quem nos interpelou com a "pergunta sobre o sentido do Ser" e sobre o "esquecimento do sentido do Ser" por parte da metafísica em Ser e Tempo (1927). E esse esquecimento foi a seu ver também milenar.
E não foi Lévinas - entre outros (Hannah Arendt, Derrida), para não falar do seu mestre Husserl -, grande pensador, judeu, paradoxalmente também, discípulo e grande admirador da obra de Heidegger? Alguns familiares de Levinas morreram nos campos de extermínio nazis. "Certamente nunca esquecerei Heidegger nas suas ligações a Hitler. Mesmo se as suas ligações não foram senão de breve duração, elas foram-no para sempre... 
Mas as obras de Heidegger, a maneira pela qual ele praticava a fenomenologia em Sein und Zeit - fez-me saber de imediato que é um dos grandes filósofos da história" (François Poirié, Emmanuel Lévinas). O pensamento  de Lévinas estabelece-se no que poderíamos chamar uma ontologia e uma fenomenologia do Outro, Outrem, sem perder de vista o outro e o reenvio para a transcendência. Movimento, porventura, de contrapartida ao seu mestre. Paradoxos de paradoxos, que servem no entanto como advertência para a complexidade do humano e para cada um de nós. Com efeito, o nazismo não terá sido sobretudo um fenómeno humano?


10. Mas voltemos a Empédocles, repetindo. Num primeiro plano parece ter regredido. Como se voltasse ao trágico, ao mítico, quando já antes aqueles dois pré-socráticos já tinham dado um passo decisivo no processo do pensar que desembocará, em Sócrates, Platão e Aristóteles, neste com o apofântico (na sua função enunciativa, assertiva) e a 'invenção da definição', questão esta tão debatida por Fernando Belo nos seus textos a par do 'horizonte' (horikzon) e do Ereignis heideggerianos (vj. Fernando Belo, Heidegger, Pensador da Terra) (10).
Mas só num primeiro plano é que Empédocles regride. Num segundo, ele progride, tal como a sua ‘dupla história’ no poema  Da Natureza (Peri phuseos, Περί φύσεως) (11). Progride, de forma que regressão e progressão requerem ser pensadas. É o que tentaremos argumentar de novo. Com efeito, Empédocles parece fazer a retoma de uma tradição de pendor mais mítico, axiológico, ético, antropomórfico enquanto dimensões ainda fundidas num caldo de cultura prévio ao processo gradual de divisão que desembocará nas várias ciências inauguradas por Aristóteles. Quer dizer, ele parece fazer a retoma de uma tradição diferentemente de Heraclito e Parménides que supostamente já haviam ultrapassado em parte essas etapas (não falando agora em e Xenófanes e Anaxágoras que se desviam do culto dos grandes deuses, e em todos os outros extraordináros Pré-socráticos) (12). Todos eles admiráveis juntamente com os que aqui tratamos, com a sabedoria e simplicidade que parecemos ter perdido ou esquecido.

11. Fazendo uma leitura destes três filósofos pré-socráticos poderemos formular uma lição de Empédocles. A grande lição de Empédocles. Sem que necessariamente houvesse um propósito objectivo dessa lição por parte deste grande pensador e poeta, repetimo-lo. Mas quem é que dá conta absoluta do seu presente? A leitura das coisas faz-se no tempo. Cairemos no anacronismo? Mas suspeitar sempre dos anacronismos pode ser um obstáculo ao modo como pensamento e tempo são. Estes se trocam, cada um nos seus momentos e entre si quando, onde e como menos suspeitamos.
Não se trata aqui de defender um pensamento híbrido e de aporia entre o que é e o que não é. Mas de tentar compreender como, quando o ser se distingue do não-ser, convém um movimento que deve poder acompanhar o modo como, por seu turno, o ser, quando é, já não é, e o não ser, quando não é, já é. De algum modo, Empédocles lança o germe poética e miticamente do célebre momento do “parricídio” (patraloian) de Parménides de que nos fala Platão em O Sofista 241e. Este passo do Sofista de Platão põe em causa a tese do Ser (e do Uno) sustentada por Parménides: "É que ser-nos-á necessário, para nos defendermos, pôr em questão a tese de nosso pai (patrós) Parménides e, por força, estabelecer que o não-ser é, de uma certa maneira, e que o ser, por seu turno, de algum modo, não é" ( Platão, O Sofista, 241d, 6-9; traduzimos de Platon, Le Sophiste, trad. Auguste Diès, Les Belles Lettres, 1925). Leiamos Empédocles: “Há um duplo nascimento das coisas mortais e um duplo deixar de existir. Um é gerado [é] e depois destruído [não é], pela junção de todas as coisas, o outro cresce [é] e é espalhado [não é] à medida que as coisas de novo se dividem” (Fr.17). Este duplo movimento é decisivo na obra de Empédocles. Tanto assim que ele se repete enigmaticamente como podemos constatar neste fragmento que transcrevemos em português e inglês nas epígrafes deste estudo: “ vou contar uma dupla história.” O motivo desse duplo movimento é o de que se mantenha a liberdade, isto é, se possa, a qualquer momento, reformular o Ser e o não-Ser a partir do modo como ambos se podem confundir, distinguindo-os já de outro modo, quer dizer, sem que se deixe de considerar o Ser e o não-Ser (Ser / não-Ser). Quer dizer, na relação do primeiro movimento para o segundo, ambos constituindo o "duplo nascimento das coisas mortais" e o "duplo deixar existir", dá para perceber como o Ser (neste exemplo analogamos a nascer) é também, de algum modo, não-Ser (deixar de existir) na dupla história que se repete no duplo fragmento, duplo porque precisamente se repete também. O duplo movimento repete-se, duplica-se. Basta pensar que se trata de re-duplicação. Ficarmo-nos por aí, por esse rótulo, parece demasiado fácil e meramente redutor.


12. Há o Ser (Sphairos, σφαΐρος) que tanto é na medida em que se divide como na medida em que se une. Não porque a união seja o mesmo que a divisão num primeiro tempo. Mas, porque na medida em que se dá a divisão, vai-se dando outro movimento de união, a um segundo tempo, e vice-versa. Na medida em que se chega ao limite da divisão pela discórdia (ou Ódio; Νεΐκος), e na medida em que a união (Amor, Φιλίαν) começa, já a mesma (união), todavia, se estava a dar. O mesmo acontecendo com o começo da discórdia: na medida em que a discórdia (desunião) começa, após chegar-se ao limite da união, já a mesma (a discórdia ou desunião) se estava a dar. Por isso importa ainda pensar estes “na medida em que” ou "à medida que" no/s fragmento/s 17, 1-13 e 17, 1-14.
A linguagem não vai a tempo, não serve aí como meio para, instrumento. É o risco que se corre com a instrumentação da linguagem, ou, talvez antes, das palavras.
Exemplifiquemos estes modos ou desdobramentos de sentidos para o Amor e o Ódio com uma interessante passagem de Jean Brun: “No entanto, parece que se pode falar de uma espécie de manha do Ódio, que se serve da atracção do semelhante pelo semelhante. Com efeito, na terceira fase da cosmogonia [...], consegue, utilizando a atracção do semelhante pelo semelhante, dissociar o próprio indivíduo e reduzir o mundo a quatro esferas elementares que se comportam como estranhas entre si. Depois disso, nada mais tem a dividir e encontra-se, por assim dizer, vencido pela sua própria vitória” (p.83). O que é o mesmo que dizer que, dissociando, o Ódio esteve a operar um outro movimento de união. O que implica um processo equivalente para o movimento do Amor. O que não significa que sejam o mesmo. O que se marca aqui é o modo como uma possível confusão de ambos (philia e neikos) permite retrospectivamente reformular outro sentido, diferencial, entre os dois. Quer dizer, como a confusão pode mostrar a não-confusão. “Como disse anteriormente, quando declarei os limites das minhas palavras, vou contar uma dupla história: de uma vez, cresceu para ser um só a partir de muitos, doutra, dividiu-se outra vez para ser muitos a partir de um, o fogo e a água e a terra e a vasta altura do ar, e também a discórdia temível separada destes, em toda a parte igualmente equilibrada, e o amor no meio deles, igual em comprimento e largura.” Na medida em que as coisas estão a nascer, elas estão a deixar de existir. Mas na medida em que deixam de existir (considerando neste segundo momento) elas nascem ainda uma segunda vez. E nascendo uma segunda vez, elas deixam de novo de existir.“(Assim, na medida em que aprenderam a fazer-se num a partir de muitos) e de novo, quando esse um está separado, são uma vez mais muitos, assim nascem e não têm vida duradoura; mas, na medida em que nunca cessam a intermutação contínua de lugares, nessa medida eles são sempre imutáveis no ciclo." Sublinhemos:"...não têm vida duradoura", mas "...são sempre imutáveis no ciclo". As coisas e os seres são ‘muitos’ e são ‘um’. ‘Um’ e ‘muitos’ não estão separados. O que é destruído pela junção de todas as coisas é o mesmo que o outro que cresce e é espalhado à medida que as coisas se dividem (13). Mas este ‘o mesmo que’ comporta movimento (14).


13. Empédocles tenta captar o sentido das coisas no estado (estado/s de coisas) em que estas ainda não são sob a hegemonia de um Lógos ou de um Ser. Lógos e Ser que estão a emergir com Heraclito e Parménides, entre outros pré-socráticos que não abordamos aqui. O primeiro, p.ex. “não dês ouvidos a mim mas ao lógos” e o segundo  “É preciso dizer e pensar que o ente é e o não-ente não é”.
“Pode dizer-se que, como Heraclito, o Sfairos parmenidiano foi posto em movimento, mas com um movimento que não o faz sair de si mesmo, porque no coração deste movimento mora o Logos que, desde há milhares de anos, constitui o que nos dá o Sentido das coisas e dos seres, Sentido que nem sempre conseguimos apreender” (Brun, op.cit., p.74, ).“Mora o Logos há milhares de anos.” Mas só com os pré-socráticos e segundo eles é que ele começa a enunciar-se. Iniciação da sua enunciação.
Talvez este seja mais um elemento que ajude a uma melhor leitura de como se joga o fluir do Lógos de Heráclito e o permanecer do Ser de Parménides.


14. Retomando o § 11 que refere o fragmento de Empédocles em epígrafe:  “Assim nascem e não têm vida duradoura”. Mas têm. Eis a contradição que é não-contradição: “mas na medida em que nunca cessa a intermutação contínua de lugares, nessa medida eles são sempre imutáveis no ciclo." Imutáveis no ciclo que circula. Complexidade de movimento e não-movimento. O ciclo circula : “[...] firme dentro da cobertura próxima da Harmonia, uma esfera arredondada exultando na sua solidão circular [quer dizer, se bem entendemos Empédocles, em movimento](fr. 27 e 28) (Kirk e Raven).
Amor (Philia) e Discórdia (Neikos) parecem opor-se. Mas não se opõem se olharmos uma segunda vez como na “dupla história” que Empédocles nos conta. Não se opõem na medida em que ambos veiculam ‘o dizer das coisas’ e ‘as coisas ditas’ em “intermutação contínua de lugares”. Estes duplos movimentos, duplos "nascer e deixar de existir”, permitem compreender o Amor e a Discórdia como princípios (archai) numa outra, segunda, dupla compreensão. Tornando uma visão mais clara (“não fiques com o olhos ofuscados”, fr 17...). É preciso pensar estes grandes pensadores pré-socráticos na simplicidade da sua linguagem que, de alguma maneira esquecemos. Também não esquecemos, nós metafísicos ocidentais, a questão do sentido do Ser (Sein und Zeit, Heidegger)? Pensar os antigos pré-socráticos para melhor nos podermos pensar no nosso ‘lógos’ instituído, nas várias logias, a começar pelas bio-tecno-logias. Na nossa pretensão de mais avançados e longínquos, nós dos séculos XX e XXI, supomos que os pensamos. Todavia, eles ainda nos pensam.
E, portanto, não os pensamos no seu dizer originário. É por isso que a simplicidade de certos fragmentos pré-socráticos nos pode parecer tão evidente e ingénua que não vale a pena mais pensar neles. Mas se formos explicar, isso já não conseguimos, ou a muito custo e mal. Tal como nos diz Santo Agostinho a propósito do Tempo ("se me falarem dele, sei o que é, mas se me pedirem para o explicar, já não sei").
Por isso, a sua leitura, no modo como os Pré-socráticos nos podem dizer algo de extraordinário, escapa-nos na maioria das vezes, senão sempre, enquanto não os questionarmos sobre o modo, o porquê de nos parecerem tão evidentes e simples. Quando aquela simplicidade revela um estado de espírito e harmonia com a natureza que nos escapa.
Pois ainda lá estamos/somos sem dar por isso. Porque também talvez a ciência tenha esquecido o modo como está a ser vista. Ou antes, pensada por esse já longínquo tempo.


15. Concluindo. Por outras palavras, é importante ler o movimento de pensamento de Empédocles. Com ele volta-se um pouco atrás, atrás dos que o precedem um pouco: Heraclito e a Parménides. Talvez para ainda se repensar o movimento destes dois últimos. Evitando instalá-los num momento intermédio e indiferente entre o mythos e o lógos. Não é esse também o seu lugar. Ambos foram determinantes, não se limitando a serem intermediários. A menos que ser intermediário, como os demiurgos antigos, seja muito a ter em conta.
A compreensão de Parménides e Heraclito entre si é decisiva quando não se limitam, por um lado, ao dinâmico em tensão do lógos (Heraclito) e, por outro, ao estático emergente e inaugural da enunciação do Ser (Parménides). Daí a leitura que Heidegger dedicou a ambos, é bom reafirmá-lo.
Amor e Discórdia enquanto separados, e em conflito como sugere Empédocles, quer dizer, enquanto palavras/nomes separados, à partida em oposição, garantem outra compreensão a partir da “intermutação contínua de lugares” que tentámos analisar no § 11. Aquela instância de palavras separadas, ou mais contemporaneamente, o binómio Amor/Discórdia, essa separação, essa oposição, seria condição de possibilidade de uma compreensão de que ela mesma enquanto tal (separação) seria preliminar para a manifestação do que é o sentido do Amor e da Discórdia, do ser e do não-ser, da união e da separação, e de como ambos, de modo sem dúvida complexo, precisam um do outro ou, se quisermos, jogam entre si. Ultrapassando-se assim aquele basismo, digamos, de separação à primeira vista. Na época de Empédocles, ‘Amor’ e ‘discórdia’ - não se enunciavam ainda em separação no sentido de abstracção (aphairesis) e de definição (horismous), tão-pouco como afirmação no sentido apofântico na linha de Aristóteles. Estas virão mais tarde começando com Sócrates (definições éticas), Platão (definições eidéticas) e decisivamente com Aristóteles (no plano das definições nas várias ciências, epistémai).
Para terminar, trata-se não só de ver o insuspeitado axiológico no ontológico, mas perceber a necessidade de uma retoma ontológica em germe, no carácter trágico e mesmo dramático do axiológico, com os primeiros princípios (archai) Amor e Ódio em Empédocles. Perspectivando-se talvez outra ontologia que, reconhecendo nela o que de supostamente estranho se lhe possa insurgir, permita repensar o que de estranho, enquanto já outro estranho, mas reconhecido como tal, remeterá porventura para outra axiologia e outra política. Enfim, nesta "crise de valores" tão badalada nos nossos dias e que não sabemos o que é.

Luís de Barreiros Tavares
26/12/2012 

Notas:
* Retirado do texto de Heidegger "Hölderlin e a essência da poesia (Hölderlin und das Wesen der Dichtung)", publicado na revista  Filosofia, Vol.III, Nº1/2, Outono 1989.Traduzido pelo grupo de tradução de alemão filosófico sob a orientação de Elga Hoock Quadrado.
(1) Sobre Neikos (Νεΐκος), optaremos numas vezes por designar 'Discórdia' e noutras 'Ódio'. Mas qualquer das versões é viável.
(2) Muito se poderia analisar acerca da filosofia dos valores: Lotze, Hessen, Meinong, Brentano, Scheler, Hartmann e muitos outros. Não é esse o propósito deste estudo, nem é da nossa competência.
Sobre Empédocles, lembramos, por exemplo, a obra monumental em três tomos de
Jean Bollack (Empédocle, 3 tomes, Gallimard, coll. « Tel », 1992 ).
(3) "Se bem que (apesar de) e porque" (para usar uma expressão de Vladimir Jankélévitch: "bien que et parce que".
(4) É Max Scheler quem sustenta que "o amor assim como o ódio, na ética material dos valores [...], não são estados psicológicos, mas intenções dirigidas sobre o que é eventualmente digno de ser amado ou odiado" (vj. bibliografia: retirado de Isabel C.R. Renaud, "Axiologia" in Enciclopédia Logos).

(5) Frequentei o curso de Filosofia em três Universidades de Lisboa (Católica, Clássica, e Nova), tendo concluído a licenciatura na terceira. Na Católica tive uma cadeira intitulada precisamente "Axiologia e Ética", com o Pe. Joaquim Cardozo Duarte.
(6) Sobre a abstracção (aphairesis): "Pensamento das coisas que estão incorporadas na matéria como se não estivessem" (Aristóteles, De anima, III, 431b).
(7) Os pitagóricos influenciaram Empédocles, nomeadamente no que respeita ao problema da alma, (transmigração e encarnação, vj. Purificações), etc. Para se perceber a abrangência de influências por que passou Empédocles, e a sua capacidade de as transformar vj. Kirk e Raven, op.cit., p.372, onde se mostra  o leque de influências sobre a questão da alma que vai de Homero, abrindo caminho até Platão e Aristóteles. Caldo de cultura e caos também onde nos mergulha Empédocles.  
(8) Na verdade, Empédocles não fala de quatro elementos (stoikheion), mas de quatro raízes. Estas estão relacionadas com quatro figuras míticas (Zeus, Hera, Aidoneus e Néstis): "Ouve primeiro das quatro raízes de todas as coisas: Zeus brilhante, Hera vivificante, e Aidoneus e Nestis, que deixa correr de suas lágrimas fonte terrena" (fr. 6) O que mostra como Empédocles mantém uma ponte entre a natureza e a dimensão mítica.
(9) Escrevi "ultrapassados" e não superados, tendo em conta que Aufheben em Hegel comporta superação e conservação.
(10) Sobre horizonte, ver p.ex.  §§ 17-18 e 64-65... Sobre definição e Ereignis, ver § 81-90. Vj. também do mesmo autor Le Jeu des Sciences avec Heidegger et Derrida, L'Harmattan, 2007.
(11) Sobre a possível ligação das duas obras de Empédocles, Da Natureza e das Purificações, encontrou-se no final do séc. XX um papiro com um fragmento de sessenta e nove linhas ou versos (papiro de Estrasburgo) onde se constata e se chega a uma conclusão possivelmente definitiva de que ambas as obras fazem parte de uma só. Vj. António Pedro Mesquita  em vídeo (ao minuto 30' aproximadamente), onde se desenvolvem de modo muito interessante estas e outras questões: http://vimeo.com/15409416 
De facto, António Pedro Mesquita adianta que não faz sentido filosoficamente ver Da Natureza  e as  Purificações enquanto duas obras, tendo em conta que a alma tem de ser vista também no plano cosmogónico e cosmológico, da natureza, e não só no soteriológico das Purificações. Tanto mais que em Empédocles a alma é considerada no plano das encarnações (plantas, animais e humanos) e portanto encontra-se na natureza. E tendo ainda em conta que Empédocles era pitagórico. "E conta-se que passava Pitágoras, ao ser castigado um pequeno cão; sentiu piedade e pronunciou as seguintes palavras: "Pára de bater. Pois é alma de um amigo meu, que reconheci ao ouvir os seus gemidos." (Xenófanes., frg.7).
(12) "Mas os mortais imaginam que os deuses são engendrados, têm vestimentas, voz e forma humana semelhantes a eles" (Xenófanes, fr.14).
(13) Sobre a articulação e jogo entre Amor e Discórdia vj. vídeo referido acima (nota 8).
No princípio, o Amor mantém os elementos no interior da esfera originária pela força da agregação. E a Discórdia funciona para manter os limites da esfera à distância, permitindo que não haja colapso.
(14) Não poderemos vislumbrar aqui também um certo sentido de mesmidade?

             
Bibliografia:

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Santos, José Trindade, Da Natureza, Parménides, Lisboa, Alda editores, 1997.





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P.S.: Não sei se vem a propósito, mas leia-se o que vem no jornal "Público" de quinta-feira, 3/1/2013:
"Até ao dia 14 de Janeiro, 13 pensadores olham para 2013 a partir de valores éticos, políticos e religiosos: bem, bondade, lealdade, altruísmo, honestidade, solidariedade, liberdade, verdade, justiça, felicidade, sagrado, sabedoria, coragem e dignidade." Aliás, esta série intitula-se: "Que valores para 2013?"