quinta-feira, 26 de dezembro de 2013

Fernando Pessoa: A escrita e a terra de ninguém








 
Por vezes, a aparente secura da sua escrita, por muitos acusada de pouco ou não-poética – misto de prosa e poesia, entre o pensamento abstracto e o poético – é o que abre para o que chamarei uma terra de ninguém. Nesta terra de ninguém entra o mundo abstracto e geométrico de mapas e sinais mágicos: «desde que, perdida enfim a fé no esforço, me quero abandonar ao extravio, um termo clássico [plácido], um adjectivo espacial e sóbrio, fazem-me de repente, como uma luz de sol, ver clara deante de mim a página escripta dormentemente, e as lettras da minha tinta da caneta são um mappa absurdo de sinaes mágicos» (L.d.D. II p.37).
Por outro lado, as supostas aridez, secura, nulidade, neutralidade, quer dizer, «o signo do insignificante» das personagens, podem ser compreendidos num belo passo de um livro de Eduardo Lourenço que exemplifica a «única personagem» que é o «acto da escrita» enquanto elemento decisivo: «Na verdade, por mais surpreendente que seja o olhar – um olhar absolutamente neutro – que Bernardo Soares pousa sobre os telhados de Lisboa, sobre a face quotidiana e sobrenatural do mais insignificante dos companheiros de mesa ou de escritório, sobre a própria vida -, oscilando incessantemente entre a consciência da sua nulidade e a exaltação quase feliz da sua pouca existência, a única personagem deste verdadeiro-falso diário é o acto da escrita. Na escrita, o signo do insignificante subverte-se inexplicavelmente e a extraordinária irrealidade das coisas torna-se real» (Eduardo Lourenço, O Lugar do Anjo, p.105).
Esta parada, este contraponto entre «o acto da escrita» e a «própria vida», nas palavras de Eduardo Lourenço, cria um clima, uma espécie de região. Há uma pequena distância. Uma certa indiferença inscrita no cálculo e no cuidado do «acto da escrita». Essa distância é uma espessura ou um intervalo: «Quantos sou? Quem é eu? O que é este intervallo que há entre mim e mim?» (L.d.D. I, p.25). Intervalo que pode deslocar-se através do chamado sujeito da escrita, da sua vida, da realidade, do sonho, e do espaço-tempo do leitor. Digamos uma espessura do invisível.
Pessoa não escrevia só rápida e automaticamente, escrevia também pausadamente. A lentidão da escrita a) e a lentidão do sujeito poético b), se assim se pode dizer, cruzam-se e produzem um efeito de lugar indeterminado onde o imaginário deixa de limitar-se ao espírito do leitor e ao espírito do escritor. Exemplo para a): «Escrevo demorando-me nas palavras» (algures no L.d.D.). Exemplo para b): «Vou num carro electrico, e estou reparando lentamente, conforme é meu costume, em todos os pormenores das pessoas que vão adeante de mim. Para mim os pormenores são coisas, vozes, lettras (ou frases). Neste vestido de rapariga que vae em minha frente decomponho o vestido em o estofo de que se compõe, o trabalho com que o fizeram [...]» (L.d.D, I, 163, p.184).
Por outro lado, o cuidado e a demora da escrita reenviam para uma espécie de exactidão que não é propriamente emissora de sentidos pretensamente verdadeiros e exactos. É antes a exactidão do corte da ‘pena’ que responde mas também emite num espaço ressoante que se vai determinando numa escrita que parece estar a escrever-se. A escrita cruza-se com o gesto físico de escrever. Noutra perspectiva Eduardo Lourenço escreve citando Bernardo Soares: «O sentido é o Verbo exacto: nada há de real na vida que o não seja pelo simples facto que foi bem escrito”» (Op.cit, p.51). O «bem escrito» não é o mero escrever bem. O bem escrito é, por exemplo, o efeito de um «adjectivo» no «sítio exacto» desencadeando uma alteração da «paisagem» enquanto «escrita do ser» (Ibid, p.51): «[...] basta que um adjectivo, colocado no sítio exacto, ilumine a paisagem como um relâmpago para que o não-ser do mundo se suspenda e se transforme em escrita do ser» (Ibid, p.107). Por outras palavras, a exactidão faz-se não por uma colagem ou adequação, mas pelo efeito, digamos, de segmentação da escrita. Esta segmentação, este recorte cuidado, opera uma espécie de desdobramento resultante de um cruzamento das sensações do trabalho da escrita, do acto de escrita, dos movimentos, das letras, das palavras, das paisagens, do corpo e dos espaços brancos.
Quer dizer, em Bernardo Soares o trabalho da escrita é um trabalho no que se escreve e se trabalha ao escrever. Descreve-se o processo de como a própria escrita se vai des-crevendo ao escrever enquanto gesto corporal do autor: «As phrases que nunca escreverei, as paisagens que não poderei nunca descrever, com que clareza as dicto, à minha inercia e as descrevo na minha meditação, quando recostado, não pertenço, senão longinquamente, à vida. Talho phrases inteiras [...]» (L.d.D., II, 368, p.108). O espantoso é que, neste processo, Soares ao mesmo tempo (ou quase?) está a descrever paisagens em escrita na medida em que, ao escrever sobre a sua impossibilidade, desencadeia outras paisagens: «Em certa altura da cogitação escripta, já não sei onde tenho o centro da attenção – se nas sensações dispersas que procuro descrever, como a tapeçarias incognitas, se nas palavras com que, querendo descrever a propria descripção, me embrenho, me descaminho e vejo outras cousas» (Ibid., 304, p.307).
Mas este movimento é só do lado da escrita? E de que escrita se está a falar? A escrita pessoana é também o jogo espácio-temporal de memória. Porque é que é um jogo espácio-temporal de memória? Em que sentido se fala aqui de 'memória'? O poeta produz na leitura com os movimentos das sensações e as sensações dos movimentos um processo de retrojecção e projecção espácio-temporal. Um jogo não só de passado para o presente e vice-versa mas, creio poder dizer, para o futuro. É por isso que o leitor se sente projectado para atmosferas que não são datadas. Ou antes, são uma intersecção de tempos. Elas catapultam-no para um futuro ou um tempo indeterminados em relação ao nosso presente e ao presente que Pessoa viveu, fundindo-os no entanto imprevisivelmente. João Botelho parece ter intuído esse efeito chamando-o «distorção do tempo» (disse-o numa entrevista) e transformando-o em linguagem cinematográfica no seu excelente filme recentemente realizado - «Filme do Desassossego» (2010) - onde consegue recriar em cinema um Bernardo Soares. Pena é que não tenha captado o pautamento, a demora do escrever de Soares («escrevo demorando-me nas palavras») focando somente o seu carácter rápido e automático. Que me perdoem os entendidos, mas na minha ignorância sobre estas matérias creio que a forma extraordinária como Botelho move lentamente a sua câmara, na esfera da escrita cinematográfica, parece-me compensar de alguma maneira essa falta.


Bibliografia:
Pessoa, F., (Obras de Fernando Pessoa) Livro do Desassossego, por Bernardo Soares, edição de Richard Zenith, Assírio & Alvim, Lisboa, 1998.
Lourenço, E., O Lugar do Anjo, Ensaios pessoanos, Gradiva, Lisboa, 2004.

Texto publicado em: 
Luís Tavares, (2011), 2º semestre, «Pessoa: A escrita e a terra de ninguém», Nova Águia, nº8, pp. 161-162.




Agradeço a revisão deste texto à Dra. Elsa Rodrigues dos Santos 

Este texto é parte de um outro mais extenso:



Na foto: Pessoa com o escritor Costa Brochado no café Martinho da Arcada.