segunda-feira, 9 de novembro de 2015

"Ecos de Santa-Rita e Malévitch: O Quadrado e o Círculo" - Publicado na revista NOVA ÁGUIA 16 - Luís de Barreiros Tavares







Ecos de Santa-Rita e Malévitch: O Quadrado e o Círculo


Luís de Barreiros Tavares, "Ecos de Santa-Rita e Malévitch: O Quadrado e o Círculo"Revista Nova Águia, nº16, 2º semestre, 2015, pp. 116-122, Zéfiro.

                                                                 À memória do Paulo Costa Santos, que me deu força nestas coisas

“Futurista declarado em Portugal, há um que sou eu”
(Santa-Rita Pintor)

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“Só dez pessoas no mundo podiam não só compreender como ver”
(Santa-Rita Pintor a propósito do seu quadro “WC”)[1]


O que é que Santa-Rita tem a ver com Malévitch? Perguntarão sem dúvida muitos curadores, críticos e especialistas… Qual a relação? Ou: “quem é Santa-Rita?”
Respondemos: o quadrado e o círculo são as figuras geométricas que se impõem em fases e datas decisivas no pintor português e no pintor russo, pondo em ressonância ou eco algumas obras de ambos no despontar da arte moderna do século XX.
Guilherme de Santa-Rita Pintor (1889-1918) pertenceu à famosa geração de Orpheu. Kasimir Severinovitch Malévitch (1878-1935) foi o criador do Suprematismo. Ambos admiraram e foram influenciados pelo chamado Cubo-Futurismo em fases de transição para a arte abstracta.
A obra do primeiro - 11 anos mais novo do que o segundo - foi quase totalmente destruída pela família após a sua morte, a seu pedido. Malévitch teve uma vida bem mais longa, podendo desenvolver grande parte de todo o seu potencial criador. Ambos passaram pelas influências cubistas, futuristas e cubo-futuristas. Iremos sobretudo focar a nossa análise num notável trabalho de Santa-Rita:



(Figura 1)

“Syntese geometral de uma cabeça x infinito plastico de ambiente x transcendentalismo phisico” (SENSIBILIDADE RADIOGRAPHICA), Paris, 1913[2].
Esta obra de Santa-Rita é um dos quatro extra-textos que saíram na revista Orpheu 2. Neste número Sá-Carneiro dedicou-lhe o seu poema “Manucure”, e Pessoa a “Ode Triunfal”[3]. Em contraponto aos quadrados mais ou menos centrais que incluem um círculo na composição de Santa-Rita, assinalamos o célebre “Quadrângulo”, mais conhecido como “Quadrado Negro Sobre Fundo Branco” (1915) de Malévitch:



(Figura 2)

Repare-se que neste trabalho de Santa-Rita o quadrado branco inclui-se, se bem que parcialmente, no negro. Ao passo que no “Quadrângulo” de Malévitch sucede o inverso, num como que efeito reverso de um trabalho em relação ao outro.
Em Santa-Rita teremos também em conta os segmentos de recta, de curva, as formações de círculos, as intersecções, os ângulos, etc. Estes elementos manifestam-se como um processo de aparecimento e génese dos quadriláteros e círculos nas composições. Tentaremos proceder a uma certa descrição fenomenológica plástico-pictural destas figuras. Faremos um breve enfoque numa pintura de Picasso (cubismo sintético).

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O que encontramos nesta obra do genial Santa-Rita Pintor? Algumas linhas indiciando formas quadrangulares, quase todas inacabadas, em vias de se fazer. Um jogo depurado de vértices e ângulos interseccionistas (termo que encontramos num outro dos seus formidáveis extra-textos (hors-textes) na Orpheu 2, cujo título é “Decomposição dynamica de uma mesa + estylo do movimento (INTERSECCIONISMO PLASTICO)” (Paris, 1912):


(Figura 3)

Voltando à figura 1. Retomando as figuras que se destacam: um quadrado preto e outro basicamente branco (um recorte de jornal onde se divisa a ligeira mancha das letras). No meio encontra-se um círculo negro. Observemos o detalhe:


(Figura 4)

De facto, é de supor que o quadrado mais escuro seja negro, pois o contraste entre os dois é muito acentuado. O rectângulo onde se inscrevem é num tom mais claro, podendo ser cinzento. Ele encontra-se sensivelmente centrado no plano do quadro.

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É muito difícil encontrar naqueles primeiros anos da segunda década do séc. XX um interesse tão especial pela depuração de figuras geométricas quadrangulares como nestes dois artistas. Santa-Rita iniciava um caminho. Malévitch, mais velho, amadurecia um processo criativo. Certamente não conheceram a obra um do outro. Dir-nos-ão que os quadrados nesta obra de Santa-Rita são ainda um tanto miméticos e representacionais relativamente ao “Quadrângulo” (1915, figura 2), o “ícone do nosso tempo”, como lhe chamou o seu amigo e poeta cubo-futurista Klebnikov.
Com efeito, na composição da figura 1 (1913) – ver detalhe: figura 2 - de Santa-Rita, indicia-se qualquer coisa como um olho geométrico (círculo e quadrados) e a respectiva cabeça como assinala o título. Mas o Quadrângulo de Malévitch é de 1915. Portanto, dois anos mais tarde. Ora, em 1913, data que Malévitch determina como a do aparecimento do “quadrado suprematista” nos cenários para a ópera cubo-futurista “Vitória sobre o Sol” (Teatro Luna-Parque de Sampetersburgo), o quadrado ainda se inscreve em composições incluindo elementos figurativos. Quer dizer, em 1913, tanto Malévitch como Santa-Rita se encontravam num estádio onde se começava a estabelecer uma certa ponte para a chamada arte abstracta. 
                                                                                                                         
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Nos outros extra-textos publicados na “Orpheu 2” encontramos também a pesquisa do quadrilátero e do círculo. Por exemplo:


(Figura 5)

“Estojo scientifico de uma cabeça + aparelho ocular + sobreposição dynamica visual + reflexos de ambiente luz” (SENSIBILIDADE MECHANICA) Paris, 1914)
Nesta pintura-colagem podem ver-se múltiplas formas circulares, incluindo qualquer coisa como janelas quadriculadas, configurações de quadriláteros e mesmo uma colagem com uma peça metálica quadrada perfurada no meio com um círculo, junto a uma mola (lado esquerdo no meio do quadro).  
O surpreendente é que em 1913 Santa-Rita já experimentava picturalmente a figura do quadrado numa linguagem abstractiva e futurista, embora ainda não propriamente abstracta. “Abstracção futurista”, segundo Raul Leal ("L’abstractionisme futuriste" de Raul Leal in “Portugal Futurista”)[4]. Em 1913 Malévitch teria cerca de 34-35 anos, e Santa-Rita cerca de 23-24. Este aspecto é muito importante, principalmente quando se trata de períodos de juventude. São dois estádios muito distintos no processo evolutivo de qualquer artista plástico. O mesmo se poderia dizer relativamente, por exemplo, a Picasso, nascido em 1981, a Marinetti (o poeta fundador do Futurismo em 1909, com o seu célebre manifesto, nascido em 1876), tão admirado por Santa-Rita, a Boccioni (outro importante futurista, 1882) e a Severini (1883), que terá influenciado o pintor português, etc. Todos mais velhos do que Santa-Rita.
Com efeito, Santa-Rita Pintor estava ao corrente do que se fazia. Mais, alguns dos seus trabalhos revelam uma elementaridade, uma potencialidade abstractiva e geométrica extraordinária (vj. os restantes extra-textos da “Orpheu 2”, entre outros trabalhos). Neles observa-se o fascínio por uma certa geometria aliada, na sua aparente estaticidade (“Compenetração estática interior de uma cabeça… “ (Paris, 1913), em tensão com uma dinâmica de formas em génese. É a dinâmica na composição e decomposição das linhas que traçam e esboçam quadrados, rectângulos, círculos, segmentos de recta e curva em intersecção. Aliás, os termos dinâmica” e “decomposição”, entre outros, encontram-se nos títulos dos extra-textos (ver figura 3). Malévitch também os empregou nalgumas das suas obras futuristas e cubo-futuristas; por exemplo, o óleo: “Mulher com baldes. Decomposição dinâmica de [outra pintura] «Camponesa com baldes»” (1912-1913).
De facto, é espantoso o modo como Santa-Rita depurava as formas, esboçava as linhas formadoras de uma certa geometria abstracta ou “não-figurativa”, para empregar uma noção de Malévitch. Chega mesmo a usar o termo abstracção. No único número da revista “Portugal Futurista” (1917)[5], Santa-Rita publica a reprodução de uma estranha obra intitulada (voltaremos a ela noutro lugar): “Abstracção congénita intuitiva (material-força)”, de 1915. E também “Cabeça = linha – força. Complementarismo orgânico, 1913”:



(Figura 6)

Santa-Rita experienciava e experimentava profundamente o que de mais avançado se produzia em termos de expressão plástica[6].

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Há, de facto, em Picasso, a pesquisa dessas formas geométricas e abstractivas; elas germinam também no cubismo (cubismo sintético, neste caso). Veja-se a seguinte pintura a óleo “Cabeça de rapariga” (1913):


(Figura 7)

Encontramos neste trabalho de Picasso uma espécie de reverso da figura do hipotético círculo negro no quadrado branco na colagem de Santa-Rita que aqui analisamos (figuras 1 e 2). Aqui, em Picasso, é um círculo branco ou em transparência – uma vez que deixa ver a textura do plano em que se inscreve. Todavia, este círculo encontra-se no centro de uma forma aproximada de um quadrado negro, menos geométrico.                                                                        
Em contrapartida, os quadrados que referimos no trabalho de Santa-Rita apontam para um rigor mais geométrico ou para uma pesquisa mais depurada e abstracta, apesar de indiciarem uma cabeça monocular ou ciclópica com o círculo negro – uma íris esquemática, digamos - no centro do quadrado branco (colagem de recorte de jornal) mais ou menos no meio, mas um tanto deslocado[7], relativamente ao quadrado negro (também colagem). Portanto, será em nosso entender redutor limitar a experiência dos extra-textos de Santa-Rita à influência do cubismo sintético (Braque, Picasso) como alguns sustentam.

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Analisemos agora o “quadrado” e o “círculo” em Santa-Rita nas figuras 1 e 2. Note-se que a figura do círculo acompanha toda a génese do suprematismo de Malévitch. Veja-se o quadro intitulado “Círculo Negro” (primeira versão exibida na última exposição Futurista “0.10 (1915) em Sampetersburgo. Neste quadro a descentragem do círculo é bem expressa tangenciando praticamente as margens do fundo branco:


(Figura 8)

Mas em Santa-Rita teremos em conta algumas diferenças mínimas no jogo do círculo e do quadrado. Neste artista, diríamos que o círculo é, pois, centrado e descentrado, ao mesmo tempo. Porquê? Porque se supusermos o círculo negro sobreposto ou inscrito (pintado ou colado) no quadrado branco, ele encontra-se centrado neste. Mas se o supusermos como um “buraco negro” (um recorte no papel de jornal do quadrado claro ou branco, ele, o círculo, ainda que se manifeste picturalmente no mesmo tom (ou cor do quadrado negro), não deixa de se delimitar no seu recorte como outra figura apesar de pertencer à superfície negra. Por isso, neste caso, o círculo descentra-se também relativamente ao quadrado negro. Mais, seja colagem ou pintado no quadrado branco (por cima deste), seja, pelo contrário, o resultado de um recorte circular no quadrado branco (por baixo deste), deixando ver a cor do quadrado negro que está por baixo, ambas as hipóteses, se podem permutar aplicando-se às duas possibilidades, aos dois pontos de vista que ventilámos antes. Ou seja: tanto para o descentramento como para o centramento, centrando-se no quadrado branco e descentrando-se no negro.
Mas neste trabalho de Santa-Rita o recorte “branco” transborda ainda o recorte “negro”. Tanto para o lado direito, como, levemente, minimamente, quase nada, se assim se pode dizer, num “infra-fino” - para usar uma expressão de Marcel Duchamp (“infra-mince”-, quer dizer, para cima.Veremos mais adiante as semelhanças deste levíssimo transbordo com a distância, por dentro, do ângulo do quadrado branco menor relativamente ao quadrado branco maior no topo da pintura "Branco sobre branco" de Malévitch (fig. 10).
O que é que acontece no exemplo de Santa-Rita (figuras 1 e 4)? Na verdade, o branco descola-se parcialmente do negro. Parcialmente, de maneira evidente, ainda que pouco, no lado direito, e no infra-fino para cima. O que confirma, num terceiro ponto de vista, o movimento de descentramento-deslocamento do círculo negro em relação ao quadrado negro, sem por isso deixar de reforçar o seu centramento (do círculo negro) no quadrado branco. Pois, se o branco se desloca, transbordando para fora do quadrado negro, e o círculo negro estiver inscrito no branco, o mesmo círculo negro como que se demarca de novo do quadrado negro. No entanto, ainda que se admita de novo o círculo enquanto buraco negro (enquanto recorte) ou afundamento correspondendo ao plano negro sob o plano branco, quer dizer, o sem-fundo do negro a partir do recorte, o desdobramento de vários planos multiplica-se de novo. Por outro lado, com as margens brancas extravasadas, o quadrado negro como que deixa de estar entre o quadrado branco e o rectângulo cinzento central. Neste movimento, o negro torna-se virtualmente invisível. Ele era suposto sob o branco, mas agora é o “cinza” que lhe toma o lugar. Pois as margens brancas extravasam, jogam-se, desta feita, com o rectângulo cinza. Nesse extravasamento não há negro entre o branco e o cinza. Eis a potencialidade da colagem aliada à pintura e desenho. O carácter abstracto ajuda este processo de desdobramento de espaços e jogos de movimento[8].
Não poderemos ir mais longe por agora nesta leitura. Acrescentemos somente que o rectângulo vertical supostamente cinzento (na reprodução que nos chegou a preto e branco – figura 1) veicula a expansão do olhar do espectador na multiplicação, na proliferação ecoante dos vértices, intersecções, ângulos, formações de quadriláteros, etc., da composição. O mesmo acontece no semi-círculo que se extravasa como círculo virtual no topo do quadro de Santa-Rita. Círculo virtual em ressonância e deslocando, ou potenciando uma como que flutuação, por seu turno, ainda, do círculo negro. Assim, não se descompensa o espaço aberto da multiplicação de figuras em formação. Estas mantêm a tensão com as figuras mais definidas dos quadrados que analisámos. Figuras em intersecção na tela ou suporte total branco, ou pintado em tom claro (supostamente tela, dada a granulação que podemos divisar numa reprodução ampliada – vj. edição recente facsimilada da revista Orpheu no jornal Público - 2015). No entanto, seja, ou não, tela, trata-se de um plano aberto e amplo de tom certamente esbranquiçado e como que vazio. Por assim dizer, Santa-Rita Pintor mantém o plano-suporte em tons mais claros em articulação à tela branca, ou a um fundo mais claro que as figuras e traços inscritos: o “desenho esquemático”. É o “plano do suporte”, como escreve José-Augusto França: “No plano do suporte, um desenho esquemático representa, em abstracção de valores de modelação, ou a «mesa» ou as «cabeças» dos títulos respectivos, colando elementos que justificam, em princípio, as designações – compostas, sem dúvida, num intuito complementar, senão fundamental, de espantar o leitor” (A Arte em Portugal no Século XX, p. 58).
 Com efeito, o “Plano do suporte”, ou suporte nu, digamos, apela de algum modo ao “Branco abissal”, “Abismo sideral”, “Nada libertado”, “Infinito”, etc., segundo as expressões de Malévitch quanto aos fundos brancos suprematistas pintados também com pinceladas irregulares (Malévitch chegou a chamar-lhes também: “escarros em movimento”)[9]. Ora, “infinito” é um termo que consta no longo e estranho título deste trabalho do pintor português.
Com efeito, a quadrangularidade tão explícita e depurada nas colagens de Santa-Rita são algo que despertou decisivamente a nossa atenção para o contraponto com Malévitch. Stuart Carvalhaes, embora jocoso, foi perspicaz – talvez sem se dar bem conta - ao ponto de fazer uma caricatura do artista para o jornal “O Século Cómico” (1915) aonde, na energética da visão – crucial no pintor -, é configurada uma série de quadriláteros negros e brancos representando um olho. Precisamente um quadrilátero branco contendo quatro quadrados (dois negros e dois brancos):


(Figura 9)

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Observemos agora esta pintura de Malévitch em contraponto aos quadrados analisados em Santa-Rita, “Branco sobre branco” de 1918:


 


 (Figura 10)

Repare-se na posição do quadrado inclinado em Malévitch. Ela é muito semelhante ao exemplo que analisámos em Santa-Rita. Só que, pintor russo, ao invés de extravasar o quadrado maior, o menor inclui-se nele com ligeiras distâncias em relação às margens. Mas nesta pintura de Malévitch o quadrado maior recobre a superfície da tela e, por assim dizer, as dimensões do próprio quadro. Ao passo que, em Santa-Rita, o quadrado maior (negro) inclui-se mais ou menos centrado na composição. Mas, coisa curiosa, surpreendentemente em Santa-Rita, as distâncias, por fora, dos ângulos do quadrado menor que extravasam as margens (lados) do quadrado maior, são muito semelhantes às distâncias, por dentro, dos ângulos do quadrado menor (o branco inclinado) que se aproximam das margens (lados) do maior em Malévitch. Note-se, por exemplo, que, em termos de distâncias, o transbordo no topo em Santa-Rita (figuras 1 e 4) é muito aproximado relativamente à proximidade do ângulo do quadrado menor ao lado de cima do quadrado maior em Malévitch. Chamaremos também “infra-fino” a esta aproximação no "Branco sobre branco" de Malévitch (ver acima a referência ao levíssimo transbordo do quadrado branco sobre o negro em Santa-Rita).                        

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Sabemos que Amadeo de Souza-Cardoso também realizou extraordinários trabalhos sobre estas figuras e traços geométricos. Por exemplo: “Pintura” de 1913”. “A primeira composição abstracta (abstracta-geométrica, é claro) realizada na linha genealógica do cubismo. […]. «Das primeiras», terei emendado mais tarde, por bom senso de pensar no que não se conhece de atelier em atelier, ignorado ou perdido por esse mundo fora, em anos de ânsias e confusões” (José-Augusto França, 100 Quadros Portugueses no Século XX, p.36). Décadas sem acesso aos críticos de arte. José-Augusto França, o primeiro a vê-la “no recato parisiense da colecção da viúva do pintor” (Idem). Para não falar do espantoso “Ascensão do Quadrado Verde e a Mulher de Violino” (1916), entre outros. Mas trata-se de expressões plásticas diferentes, embora com elementos comuns, pois estas pinturas da Souza-Cardoso primam por um trabalho pictórico geométrico em toda a superfície da tela (a pintura a óleo , por vezes com colagens, recobre todo o suporte). Ao passo que em Santa-Rita há um esquematismo e um despojamento nesse mesmo plano trabalhando-se uma elementaridade geométrica, deixando “brancos”. Foram estes elementos que tentámos analisar neste breve estudo. Esperamos noutra ocasião pensar com Amadeo a sua pintura.

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O que importou neste estudo foi o enfoque no esquematismo elementar do quadrado e do círculo em Santa-Rita, principalmente a partir da figura 1 no seu contraponto ao “quadrado” e também ao “círculo” em Malévitch. A importante pesquisa de ambos na depuração e abstracção de figuras geométricas como o círculo e o quadrado, segundo pontos de vista diferentes mas com linhas aproximáveis e cruzáveis.
Eis outra das razões deste ensaio sobre o genial pintor português: “ignorado para sempre?... pergunto.” (cf. José-Augusto França na sua conferência no Congresso 100 ORPHEU; vj. nota 3). Será que há pouco a dizer sobre Santa-Rita Pintor?                                                      
Não se pretendeu defender qualquer tese. Como, por exemplo, a de que as pesquisas picturais de Santa-Rita e de Malévitch convergiam decisivamente. Antes, que cada um, no seu percurso singular produziu pictoricamente obras que podem encontrar ecos assinaláveis entre 1912 e, pelo menos, 1915. Ecos, tendo em conta a diferença de idades – mas partilhando ambos a admiração pelo futurismo e cubo-futurismo -, para não falar da distância geográfica que os separava e do quase certo desconhecimento mútuo.
Mais do que analisar neste breve estudo alguns elementos da obra de Santa-Rita à luz do suprematismo inaugural de Malévitch (partindo do facto de a obra deste estar absolutamente consagrada, servindo assim de referencial), tratou-se antes de tentar tornar manifesta a ressonância e relevância do que sobreviveu da obra do primeiro. Ressonância enquanto experiência também inaugural de elementos esquemáticos, numa elementaridade e génese de abstracção admiráveis. Elementos plástico-pictóricos decisivos no desenrolar da pintura moderna do século XX. A partir daí torna-se pertinente encontrar os ecos indicados no título deste estudo.





Famosa fotografia de Santa-Rita Pintor envergando um fato quadriculado, reproduzida na revista “Portugal Futurista” (1917).

Referências:

Revista ORPHEU (edição facsimilada no jornal público – 2015)
Revista Portugal Futurista (edição facsimilada - Contexto Editora - 1981)

Gilles Néret, Malevitch, Taschen.
Joaquim Matos Chaves, Santa Rita – Vida e Obra, Quimera, 1989.
José-Augusto França, História da Arte Ocidental (1780-1980), Lisboa, Livros Horizonte, 1987.
José-Augusto França, A Arte em Portugal no Século XX (1911-1961), Lisboa, Bertrand Editora, 1985.
José-Augusto França, 100 Quadros Portugueses no Século XX, Lisboa, Quetzal Editores, 2001.
José Gil, A arte como linguagem, Relógio D'Água, 2010.
José Gil, Poderes da Pintura, Relógio D'Água, 2015.
Gilles Néret, Malevitch, Taschen.
J. M. F. Garcia-Bermejo, Malevich, Ed. Verba, 1995.
Kasimir Malevitch, Le Miroir Suprematiste, Ed. Âge d'Homme, Lausanne, 1993.
Kasimir Malevitch, Les arts de la représentation, Ed. Âge d'Homme, Lausanne, 1994.
Marcel Duchamp, Notes, Paris, Champs, Flammarion, 2005.
Fernando Cabral Martins, O Modernismo em Mário de Sá-Carneiro, Lisboa, Ed. Estampa, 1997.
Carsten-Peter Warncke, Ingo F. Walther, Pablo Picasso (1881-1973), Taschen, 1997.




[1] Segundo o testemunho de Sá-Carneiro em carta a Fernando Pessoa.

[2] Na exposição que realizámos na Fábrica de Braço de Prata, de 12/06/2015 até final de Setembro, esteve exposto um trabalho intitulado “Estudo em homenagem a Santa-Rita Pintor” (2015) inspirado  precisamente nesta obra do artista da geração de Orpheu, e evocando a publicação da revista há 100 anos.
[3] Sá-Carneiro inspira-se em Santa-Rita para o seu personagem Gervásio Vila-Nova na novela Confissão de Lúcio.

[4] Cf. conferência de José-Augusto França no Congresso 100 ORPHEU – Gulbenkian, Março 2015. Vídeo: https://www.youtube.com/watch?v=_lYr-NiiRhk
[5] Neste número colaboraram Álvaro de Campos (“Ultimatum”), Fernando Pessoa, Sá-Carneiro, Amadeo de Souza-Cardoso, Santa-Rita, José de Almada Negreiros e Raul Leal (dois foram grandes admiradores de Santa-Rita), Apollinaire, Blaise Cendrars, Marinetti, Boccioni, Carrá, Russolo, Severini, entre outros.
[6] Não abordaremos aqui a fabulosa cabeça cubo-futurista (c. 1910-1912?) que se encontra no Museu do Chiado (MNAC - Museu Nacional de Arte Contemporânea). “Uma peça notável dos anos 10 europeus, uma peça única na pintura portuguesa” (Cf. José-Augusto França, 100 Quadros Portugueses no Século XX, p.33).
[7] Sem forçar qualquer identificação, este sentido de movimento lembra um pouco, sob outro ponto de vista, o termo russo sdvig, significando “deslocação”. O termo refere-se a olho no quadro de Malévitch “Retrato aperfeiçoado de Ivan Vassilievitch Kliunkov”. Segundo J.C. Marcadé, é “o olho com as suas duas partes desajustadas (…) olho exterior e olho interior, ver e saber, percepção e conhecimento” (Gilles Néret, Malevitch, Taschen, p. 32).
[8] Numa inovadora análise do espaço e da própria questão quanto à pintura e sua “saída da tela”, leia-se o belíssimo livro recentemente publicado sobre a obra do grande pintor e escultor português Ângelo de Sousa (1938-2011): José Gil, Poderes da Pintura, Relógio D’Água, Maio de 2015.
[9] Na referida mostra que fizemos na Fábrica de Braço de Prata esteve patente um outro trabalho inspirado no “Branco” de Malévitch.

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Esta versão tem ligeiras alterações relativamente à que foi publicada na NOVA ÁGUIA 16







      Santa-Rita Pintor