terça-feira, 31 de julho de 2012

Poesia, reflexões e prosa poética inéditos dispersos - manuscritos e transcritos - de Manoel Tavares Rodrigues-Leal


Acima um poema do caderno de poesia Ciclo incompleto sobre a memória de uma mulher
Manuscritos fotografados de livros (cadernos) inéditos. Com o acordo do autor.
O que está entre parênteses rectos é em alternativa no manuscrito.

Maximizar as fotos dos manuscritos clicando na imagem para uma melhor legibilidade

Livro: Paisagens de Água

Invocação a Amadeo de Souza-Cardôzo

À mesa do pensamento, nos ajoelhamos:
As cores são velozes, colidem:
Um espelho fragmentado fecunda sol e sombra.
Eis a ordem do real ___ por que as coisas, olhadas, nomeamos.

Lx.12-7-77

A noite digere
seu véu de azul...

A noite despe-se
para, em alegria, madrugar...

Lx.26-8-77

Navega ternura o puro instante.
Distante é o mármore do gesto
inscrito em a [na] mesa.

Lx.26-8-77

O verdadeiro destino do artista é ambivalente: por um lado, o subtil exílio que sofre; por outro a revolta que o leva a redimir-se através de Deus.

Lx.27-8-77
A sombra brilha.
A distância cede.
Que dia perfeito habitaremos.
Amaremos sob o suór da praia
Que apenas principia : verbo e nada.

Lx. 8-9-77


É uma vulgar manhã de domingo, e, em mim, renascem revolta e inquietude. Há um facto que me dói : a castração. Como se quisesse abranger [a] realidade e esta me negasse qualquer esperança de conhecimento. Tudo, em mim, é abstracto e eu estou bêbedo [ébrio] de beleza.

Lx. 25-9-77


Tal é a castração quotidiana que já não penso: não sou senhor do meu pensamento. E este exige uma arquitectura legível. Sei que já não sou eu, que me demiti. Tudo está certo, até a vertigem do manicómio.

Lx. 2-10-77

A claridade veste o dia : como optar pelo manicómio com um dia lindo?

Lx. 3-10-77










A noite tem sua respiração intacta
e já alumia a jovem madrugada.

1977

A tarde celebras
entre secretas [ambíguas] sombras.
Que espanto caminhar
e não coincidir.

Lx.7-10-77


Jaz novembro
Em as [nas?] pálpebras das águas.
A nossa inocência é
concâva. Um barco de beleza.
Assim respiramos.

Lx.1-11-77


A realidade é indecifrável: não há sentido possível, não há saída. Deus é uma abstracção. Tão eloquente como nós, divinamente humanos. A nossa infindável tragédia é ser-se, e ser-se zero. Sem continuação. O princípio do fim acha-se em nós porque é inadiável o suicídio. A migração não é senão uma fase intermédia: já sepultámos os seres e as coisas mais nuamente amadas.

Lx. 8-9-77


Anunciemos a morte.
A mais pungente, ruminada
até aos espelhos da memória...
Escutemos o corpo, adiados...


Lx. 77
Lx. 17-3-78


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Num caderno de 1970 ainda sem título:



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Livro: Geometria da gramática ou a ginástica do poema





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Outros poemas









Do caderno: Vocação divina Inscrições: "Como uma vida exterior o mais monótona possível, Nietzsche prova que o pensamento por si próprio, quando conduzido na solidão, é uma temível aventura."

Cadernos II - Albert Camus

"O homem que eu seria se não houvesse sido a criança que fui."

Cadernos II - Albert Camus

Vocação DivinaHomenagem ao Papa João XIII e a Pier Paolo Pasolini


III

Amor e aviltação

Que Vossa palavra jamais se avilte em minha boca:
efémero este terrestre reino que habitamos, amargos, silenciosos...

Se ócio ou pausa houver, que o Senhor nos inicie em seu caminho, coração puro, limpa e liberta a palavra.

Lx.9-7-77

VI

O desastre

Senhor, Vos ofereço esta dura prova,
e fortificai a minha fé, em caso de desastre.

Lx.23-7-77



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Livro: Uma pequena paz talvez




(À Ana Maria)

Hão-de vir
as noites nuas
e os jovens amantes

Hão-de vir
os antigos instantes
e as sombras que estuas

Hão-de vir os dias secretos em que as minhas mãos serão tuas

Lx. 27/3/89


Na mais ampla mesa do pensamento
repousa a ideia antiga do instante breve

Lx. 8-7-89








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Eu sei o que é o manicómio:
É essa ideia central que me obceca.
Nem é noite nem dia : é a alba ...
E tudo principia onde acaba
Este historial de coisas, essa amargura que me cega ___ e cala ...

Lx. 28/5/89
Versão final Lx.ª 2003/03/28


Busco raparigas do sul
onde abundam vento areia e mar
e a mágoa de seres tão sozinho

E a melancolia nasce
o sol disperso pasce
em o manso sussurro do regato
antigo como eu

Lx. 8/7/89

Livro: Elogio do rigor

Inscrição no início do caderno



De manhã. Ana, respiro relva na cidade.
Ontem dizias-me coisas, coisas... coisas graves
"transforma-se o amador..." oh respirai as nuas aves
moribundas. Disperso, como coincido, na cabeça, com minha idade.

Lx. 22-12-76
Assinado: Manoel Ferreira da Motta Cardôzo

(À Mali)

Hoje Mali ver-te falar-te foi amanhecente
Quando a cidade acesa madruga.
Foi lâmpada iluminando-nos nós e as vozes vertentes.
Mali tu és circular apelo quando o suor sua
e não se despede. Não sei como há tanto ausentes.

Lx. 24-12-76


Que sombra na rua lateral do pensamento...
Que já nem pensa lateral ____ a sombra mas a rua da obra.
E assim se soçobra na árvore da realidade e seu movimento.

23-12-76
este e outros poemas deste caderno estão assinados com Manoel Ferreira da Motta Cardôzo numa das revisões (2001).

-

Meu rosto remonta à infância dos espelhos,
e que antigo rosto o revela?

Lx. 30-12-76

(À Mali)

Anoitece, faz um frio mental
cuja opacidade se reflecte nas pupilas.
Menino foste e música, acorda as margens de metal
de uma cidade e súbitos abismos. As pupilas de espanto qui-las.

Lx. 2-1-77


(À Mali)

De tua acutilante boca acordada na minha,
resta o suor de uma rosa talvez naufragada,
o perfume da espuma da praia mais desejada, antiga e marinha.

Lx. 3-1-77

(À Mali)


Aqui se fundam os alicerces da claridade
e do rigor. Aqui suspende-se um dia claro
e a geometria inaugurada dos jardins do rigor.
Se visiono, se deliro ___ não, é um violino de distância e de idade.

Lx. 5-7-77







Ars poetica II




Ars poetica III


Ars poetica IV

O absurdo do desejo traduz-se na obsessão de desejar o objecto amado e inscrito. Mas o que seduz nesse absurdo é o absurdo em si-mesmo: lonjura, aproximação, conjura, cumplicidade.
Mas o que seduz na interrogação do desejo desentranha-se [na loucura lógica?] do amor, na tragédia grotesca do desejo malogrado.
Isto é, somos absurdos protagonistas do absurdo. E sabem?, às vezes, veridicamente , o absurdo e a interrogação do desejo transigem com o absurdo da beleza de viver.

Lx. 5-1-77

-

Sugiro um espaço de desejo
que fôra singrar-te em um abraço
por que já não espero nem pergunto nem meço


Lx. 17-12-76
.

À Ana Maria




Neste Natal que não neva
e é divino
minha dispersão e ópio são nada
perante ti Mali que és alva e pura erva
se te escrevo não é abstracto sugiro-te longas madrugadas

Lx. 25-12-76

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Livro: Ciclo incompleto sobre a memória de uma mulher (1979)
Para a Maria João
Poemas eróticos

inscrição no início do caderno:

"Meus olhos resgatam o que está
preso na página: o branco do branco
e o preto do preto.

(Ibn Ammar, A leitura)
Poemas arábicos-andaluzes, in O bebedor nocturno - Versões de Herberto Helder



I

Não não é só o rigor da tua nudez mas a mão mansa
o espelho e o brilho da tua nudez limpa
e a mão que múltipla e acesa me singra

Lx.9-11-79


III

Como se me adere a branca rede da tua nudez
se bebo os teus seios se osculo a tua boca se a minha língua fende a tua concha húmida
Não sei que música que musa preside à nudez dos meus dias feitos água oh fêmea efémera

Lx.13-11-79


IV

Respiro os teus mamilos a boca secreta do teu corpo
que paredes irrompem na fala da tua nudez oh ática brancura
que fendo oh minha amiga de espelhos de ternura e abandono que envolvem o desespero do desejo
sua aspiração antiga diurna.

Lx.13-11-79


Caderno: Rumor de inverno

X

(A Cecília Meireles)


Oh sede de brancura sede de tristeza
sede de amar


Lx. 1981Manoel Tavares Rodrigues-Leal

XI

(Ao meu irmão Nuno)

Assino a loucura com mãos de aristocrata...

Lx. 1981

XXV

E se eu recuasse à infância
- escassa - e esquecesse a infinita distância?

Lx. 31/1/81

XXIX

O círculo de luzes da cidade anoitece...
que cio de melancolia enlanguesce...

Lx.3/1/81

XIX

Eu sei de um círculo exacto
que habita cada gesto intacto...
Bloqueado círculo, porém, onde viver é intruso tacto...

Lx. 26/1/81

XXXVIII

Oblíquo o gesto desliza,
e tudo é rumor ou brisa.

A sombra desenha o corpo,
e retém, vegetal, sua respiração.
Como o claro dia, a noite vem, e é aparição...

Lx. 15/5/81

-

O dia bloqueado,
como o brilho de um diamante...
ondas serenas de sensações,
sem verdade, e tudo já é tão distante...

Lx. 15-4-81
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Caderno: A ausência e o axioma (1968)

Interdizer os dedos
incliná-los na esfera
submetê-los sim porque
há nas horas à despedida
uma seta que nos espera

26/5/68

Intensa tarde de verão e de vozes
pequena tarde tímida
que se permite

Lx. 7/6/68

Quis-se a quietude da tarde
A ilha mais líquida de luz
O olhar que alonga o gesto
O azul extático que se estabelece

Lx. 14/6/68

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De um outro caderno (1967)


Polémico silêncio
__________de disfarce
_____ Lua de desejo
___________ Habita teu olhar

Mas eu respiro
__________ A aventura sempre nova
_________________ Da tua face


Lx. 22/4/67


Gesto é o tempo da palavra submissa
Convergente
Ou insistente gesto no teu corpo

Porto 1/7/67



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domingo, 22 de julho de 2012

Dieu est-il marxiste ? Apostrophes - 03/10/1975






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Dieu est-il marxiste ?

Apostrophes - 03/10/1975

Débat consacré à la possibilité d'une lecture, d'une pratique politique, marxiste de la foi, en compagnie de nombreux écrivains, certains croyants, d'autres marxistes.- Bernard PIVOT présente les invités et leur pose une même question : "Croyez-vous en Dieu, et lequel ?".- Maurice CLAVEL, agrégé de philosophie, auteur dramatique, romancier, parle de son livre "Ce que je crois", récit de sa conversion.- Michel CLEVENOT, prêtre, éditeur, présente son livre "Approches matérialistes de la Bible", à paraître dans quelques semaines, une approche marxiste de "Lecture matérialiste de l'évangile de Marc" de Fernando BELO.- Georges SUFFERT, journaliste, vient de publier "Le cadavre de Dieu bouge encore", un recueil de onze entretiens avec des personnalités sur le sens de leur vie.- Jean GUICHARD, professeur, auteur de "Eglise, luttes de classes et stratégie politique".- Giovanni TROVATO, prêtre ayant quitté les Ordres, qui publie ses mémoires sous le titre "Les citrons d'or".- Discussion autour de la croyance et la pratique religieuse.- Gilles LAPOUGE présente le livre de Dom DESCHAMPS, un prêtre gauchiste du XVIIIè siècle, "Le maître des maîtres du soupçon"- En conclusion, Bernard PIVOT pose une question tirée du livre de Giovanni TROVATO : "... ne sommes-nous pas tous devant Dieu des imposteurs ?...".- Gilles LAPOUGE parle du livre du chrétien contestataire Jean CARDONNEL, "Dieu, essai sur les pouvoirs".

Production

producteur ou co-producteur:

Antenne 2

Générique

réalisateur:

Kahane, Roger

producteur:

Pivot, Bernard

participant:

Suffert, Georges ; Clavel, Maurice ; Clevenot, Michel ; Guichard, Jean

présentateur:

Pivot, Bernard ; Lapouge, Gilles

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Sobre o Cristianismo ver blogue de Fernando

Belo:http://phenomenologiehistorique.blogspot.pt/

Sobre "Dieu est-il marxiste?" ver em "L'institut national de l'audiovisuel" (INA) França:

http://www.ina.fr/economie-et-societe/religion/video/CPB75056102/dieu-est-il-marxiste.fr.html


Sobre o livro Leitura Materialista do Evangelho de Marcos veja-se:

http://www.airtonjo.com/leitura_antropologica01.htm

E também um livro de Michel Clévenot em:

http://www.persee.fr/web/revues/home/prescript/article/dha_0755-7256_1981_num_7_1_1430

Comentário de Jacques Ellul ao livro:

http://www.jacques-ellul.org/influences/karl-marx

quarta-feira, 4 de julho de 2012

Imagens, máquinas, técnica, conceitos, categorias, Oriente, Ocidente, Zen, hinduísmo, Yoga, arte... Um texto um pouco em deriva, ou no caos, sim...*




































Na sequência de uma resposta de Fernando Belo a uma questão que lhe coloquei na mensagem 83 do bLogos: "Que são para ti as imagens?" http://blogoscomfbeloperguntaserespostas.blogspot.pt/

L.T. : Que são para ti as imagens?


F. B. :
Quanto à questão da 'imagem', tenho uma noção corrente, sem a menor elaboração (excepto em relação ao Sofista e à comparação com o discurso). São coisas que dantes só os artistas faziam e agora qualquer pessoa com uma maquinazinha barata. Mas não as há na percepção nem na mente. Quando te vejo, vejo-te a ti, não a tua imagem na minha retina. Não é do meu vocabulário, mas por razões diferentes do 'corpo' ou do 'sujeito', pelo paradoxo do meu ofício e do meu nome.


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Imagens, máquinas, técnica, conceitos, categorias, Oriente, Ocidente, Zen, hinduísmo, Yoga, arte... Um texto um pouco em deriva, ou no caos, sim...*




*Este texto está em elaboração e revisão. Não se encontra na íntegra neste post. Algumas anotações e frases precisam de uns reparos.



a) Do meu ponto de vista não se trata tanto da 'questão da imagem', mas das 'imagens'. Das 'imagens', ainda que se fale da 'imagem'. 'Imago' vem de imitação (veja-se a etimologia do latim). Portanto, só 'imagem' é já 'imagem' de 'imagem'. Trata-se sempre já de 'imagens'. Pego num exemplo do dia a dia: fui aos serviços da TMN tratar de um problema com o meu telemóvel, e a simpática assistente pediu-me o PIN (código) do TM para pô-lo a funcionar. De súbito esqueci-me. Como se costuma dizer, tive uma "branca". Mas lembrei-me de olhar para o teclado do TM e desse modo lembrei-me da disposição das teclas indicativas do código, sem praticamente olhar os algarismos. Ocorreu-me então à memória o número do PIN. Aliada a essa disposição recordei de certa forma a sequência dos movimentos do dedo para digitar. Tudo isto antes de iniciar a digitação. Digamos que, se não foram três, pelo menos duas imagens, ou se quisermos dois esquemas mentais se corresponderam em movimento. Mas digamos 3: 1) a disposição das teclas no teclado; 2) a conjugação dos algarismos como esquema na imagem do teclado; 3) os movimentos correspondentes de digitação nas teclas. E a serem três, não poderemos supor já que uma sequência indefinida de imagens ou esquemas se processaram conduzindo à execução dos gestos e movimentos de digitação do código?


Passando a outra questão. É a divisão, o processo de espelhismos que já se manifesta na natureza quando os animais há milhões de anos vão beber ao lago e se debruçam repetidamente ao longo desse tempo, conforme explica, do seu ponto de vista, Bragança de Miranda num filme interessante feito por Edmundo Cordeiro e que me foi oferecido gentilmente por ele em dvd ("Palavra e Tentação, um retrato de José A. Bragança de Miranda", 2009), exibido em estreia na Cinemateca. Poderá ser visto em: http://www.youtube.com/watch?v=9_M8_7pAzMo  (10/11/2012).
   Não podendo desenvolver muito aqui, e admitindo algumas imprecisões, tenho a ideia de que B. Miranda diz lá que as figuras do Paleolítico Superior (de há 25-30 mil anos + -) são já algo que vem depois de todo um processo que se havia dado. Mas os homens não se espelham, ou praticamente não se espelham, se assim se pode dizer nas paredes Paleolíticas. Ou então espelham-se deformada, deslocadamente - tentarei explicar mais à frente - em relação aos animais que por sua vez eles figuram de modo tão expressivo. Há portanto componentes que não concernem somente as imagens, mas se jogam com as imagens. Há assim um fosso, uma fractura qualquer que é preciso pensar. Mas não é o momento de reflectir sobre estas questões. Só posso adiantar para já, e a partir da constatação da ausência de espelhismo figurativo do humano daquela extraordinária arte pré-histórica que, do meu ponto de vista, a arte do Paleolítico Superior tem algo de crucial quanto à génese das dimensões do pensamento e mesmo da espiritualidade humana. Para não falar aqui das execuções abstractas na arte desse tempo, que também podem sugerir marcas ou delimitações territoriais, espaciais, armadilhas de caça...
Por outro lado, se bem entendi, segundo J.B.M., de cuja obra sou leitor, a natureza é contínua e o homem, com o recorte da imagem, com o "frame", é que lhe traz descontinuidade. E o dispositivo fotográfico consuma definitivamente esse processo, abrindo caminho. Por outro lado, a produção da imagem, seja no Paleolítico ou antes, abre e estrutura a cultura. A imagem é também objecto técnico segundo J.B.M., conforme refere numa comunicação que registei em vídeo a propósito da primeira fotografia da Terra que Gagarine tirou, acarretando várias consequências que são analisadas aí de maneira bastante interessante: http://youtu.be/lbhksI9-05M




b) Voltando ao filme de Edmundo Cordeiro. Neste filme, que na sua concepção cinematográfica se estrutura com o conteúdo - os temas analisados na aula registada -, vem lá o exemplo da fotografia ("Reflexions", daguerreótipo) de Fox Talbot, em meados do séc. XIX (1840+-), onde se vê o reflexo de árvores num lago cujas margens se cindem por seu turno. Quer dizer que a fotografia vem dar a ver, por corte e divisão uma divisão que já lá está, na phusis ... Questões discutíveis, pois como dei um exemplo ao Edmundo, também as células de um organismo primário unicelular se dividem e multiplicam (cissiparidade; sobre a cissiparidade vejam-se as reflexões de Georges Bataille no seu livro O Erotismo). E se pensarmos nos milhões ou biliões de anos que a vida tem, só se sabe há "pouco tempo" que estas divisões acontecem, quer dizer: são enquanto conhecidas, enquanto dados científicos.
É que há aqui um aspecto interessante. Dizer que certas coisas já eram antes de as conhecermos pode ser aceitável mas comporta um estranho anacronismo que reenvia à questão: o que é a linguagem? Antes, isso (p.ex., as células) era invisível... Digamos que não as vemos ainda propriamente no sentido de poder ver à vista desarmada, i.e., a olho nu. Mas vemo-las, por exemplo, ao microscópico. Detectamo-las, melhor dizendo, o que equivale a dizer que se trata antes de uma visibilidade em segundo grau, implicando por outro lado, uma invisibilidade em segundo grau. E se podemos aqui falar de diferença operada quanto aos critérios habituais do que é visível e do que é invisível, não será que poderemos falar mesmo de uma alteração de raiz do que é da ordem do visível e do que é da ordem do invisível? Em Platão, as ideias eram ontologicamente existentes, mas invisíveis e inteligíveis. Foi Platão quem primeiro falou das coisas invisíveis (abstractas) e inteligíveis (noeta) e das visíveis, as sensíveis (aistheta). Os atomistas gregos também falavam das invisíveis, os átomos. Os átomos eram físicos segundo estes filósofos, mas não se viam. Os átomos actuais são vistos, mas só enquanto detectados por dispositivos técnicos (microscópios electrónicos, etc.).
As coisas hoje da física actual que não vemos, pelo menos até certa altura, primeiras décadas do séc. XX, eram tidas como sensíveis e extensíveis. Isso mudou com o princípio de incerteza ou de indeterminação de Heisenberg. Mas quais as implicações desta reviravolta que não se traduz somente numa inversão?
Por outro lado, qual a legitimidade para sustentar que uma partícula subatómica, uma célula ou um minúsculo vírus, por exemplo, já existiam antes de os detectarmos laboratorialmente? Talvez se trate melhor de dizer que essas entidades existem na condição de existirem, precisamente, enquanto descobertas. A realidade na sua constituição já era a mesma, mas a visão e o conhecimento dessas e outras entidades invisíveis de uma maneira ou de outra é o que as constitui enquanto tais nas determinações que lhes são atribuídas. De certa maneira, elas não eram. Não eram no sentido da sua constituição enquanto descobertas cientificamente. Descobertas que as constituem enquanto tais agora.
Não será aqui pertinente a seguinte citação de Kant?

“Ao falar de objectos no tempo e no espaço, não falo de coisas em si, porque nada sei destas, mas apenas de coisas no fenómeno, isto é, da experiência, como de um modo particular de conhecimento dos objectos, que só é concedido ao homem. O que eu concebo no espaço ou no tempo, disso não posso dizer que existe em si mesmo, fora do meu pensamento, no espaço e no tempo; porque então contradizer-me-ia a mim mesmo; visto que o espaço e o tempo, juntamente com os fenómenos que contêm, nada são de existente em si mesmo e fora das minhas representações, mas apenas modos de representação, e porque é manifestamente contraditório dizer que um simples modo de representação existe também fora da nossa representação. Portanto, os objectos dos sentidos existem unicamente na experiência; em contrapartida, atribuir-lhes independentemente desta, ou anteriormente a ela, uma existência própria subsistindo por si mesma, equivale a imaginar que a experiência existe sem experiência ou antes da experiência.”
Immanuel Kant, Prolegómenos a Toda a Metafísica Futura, que queira apresentar-se como ciência, Trad. Artur Morão, Lisboa, Ed. 70, 2008, § 52 c. (acrescentou-se a este texto esta citação de Kant a 12/06/2013).

Por outro lado, não será para este problema que Heidegger nos alerta com o jogo do velamento-desvelamento, evocando a verdade como aletheia grega? Vejam-se também algumas observações de Heidegger sobre a técnica como Ge-stell. É que o princípio de indeterminação de Heisenberg estende-se a todo o panorama dos conhecimentos. Mas não importa ficar por aqui para não recair em generalismos.
O que pretendo indicar, dentro das minhas possibilidades, é que na constituição do nosso conhecimento há sempre movimentos de colagem, digamos, temporais. Demos um exemplo: "Se 'eu' tivesse nascido no séc. XVI." Ora, esta frase em forma de pergunta ou suposição não supõe um paradoxo e anacronismo evidente? Ainda estou a supor-me 'eu' (no séc. XXI) enquanto transportado e/ou suposto no séc. XVI, sendo 'eu' à mesma, duas vezes. Colam-se e descolam-se estas duas instâncias. Quer dizer, 'eu' tanto no séc. XXI como no séc. XVI. Colagens temporais anacrónicas, que se traduzem em descolagens, sendo que ambas, nestas condições confusas - colagens temporais que se confundem e desconfundem, por um lado, e descolagens temporais que se desconfundem e confundem, por outro, se entrecruzam por seu turno, colando-se e descolando-se.


Noutra perspectiva poderemos pensar o seguinte a respeito dos átomos e das partículas subatómicas. Basta considerarmos a sua microscopia para supor que estes implicam implicitamente um critério de "divisibilidade", na sua progressão na pequenez. Ou até pensarmos na própria divisão enquanto caminho progressivo para a pequenez, a microscopia, sem supor obrigatoriamente a divisão em si mesma do 'pequeno' ou do infinitamente pequeno, seja a várias escalas: celular, molecular, atómica, até ao bosão de Higgs, também chamado "partícula de Deus"... Várias escalas da realidade, ou, se quisermos, para usar um conceito e o título de uma obra de Deleuze: "Mil planaltos"
Outra questão que pode surgir a propósito daquela paradoxalidade anacrónica - e que dá que pensar - é o exemplo de linguisticamente enunciarmos o seguinte: "o mundo antes de termos nascido". Ora, esta frase supõe-nos ainda na condição de existentes, precisamente enquanto nós, mas, ao mesmo tempo na condição de nós enquanto ainda inexistentes: nós, antes de termos nascido. Trata-se, por outro lado, do mundo na condição de ser a partir da nossa ausência, ou seja, enquanto (nós) ainda inexistentes. Como se ele só fosse possível na condição de possibilidade de se admitir a nossa não existência nele, mesmo como Humanidade: o mundo sem os humanos. Mas ainda assim essa suposta nossa não-existência, essa nossa ausência, comporta paradoxalmente presença, a nossa presença enquanto 'nós' enunciativamente como inexistentes.
Claro que parece mais que evidente admitir que o mundo já existia antes de cada um de nós existir. Parece indiscutível. Retomando, o que pretendo deixar no ar é o facto de que compreender a existência do mundo antes de nós supõe paradoxalmente, o nós, ou mesmo, supõe-nos, enquanto tais, na condição de inexistentes, i.e., [nós] antes de [nós] existirmos. Mas por outro lado também a condição do mundo ser, na condição, por sua vez de não existirmos. Pensar isto afigura-se mais que evidente. Leva a concluir nem valer a pena pensar a questão. Mas tal é a evidência que mais difícil se torna pensá-la. No entanto, pensar deste modo não será ainda pensar o mundo como pensado na sua ausência relativamente a nós (nós sem mundo), sujeitos, humanos, uma vez que o pensamos separadamente numa oposição sujeito / objecto? E também, por um lado, ele pode ser pensado sem nós, como, por outro, nós podemos pensá-lo sem ele. O problema da morte também se joga aí, nesta possibilidade, que provém da imaginação e da memória, da privação recíproca entre nós e o mundo.
Pelo que, o mundo, neste sentido, será mera concepção do sujeito, ao mesmo tempo que aquele (primeiro indício para a noção de objecto?) confere este. Talvez isto possa levar-nos a um requestionamento da anterioridade em Platão e talvez também a Leibniz com o seu "melhor dos mundos possíveis". Mas no que respeita a Platão, até que ponto isto não subverte o modo usual de o pensarmos? Pois o que é curioso é que a instituição da "teoria das ideias" platónica e sua correlação à epistemê pode comportar inevitavelmente, por ela mesma - e aqui é preciso um pensamento atento - como que uma inversão, no sentido de se tornar doxa, quando de início o seu propósito era a esta se opor. Ouvi um dia José Gil dizer a um aluno no final de uma aula que há uma "doxa filosófica". Mas o aluno não pareceu dar-lhe muita atenção. E não será interessante também requestionar o modo usual de pensar a inversão do platonismo? É que o modo usual de o pensar tende a limitar-se enquanto mera posição simetricamente oposta ao pensamento platónico.

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Mas escutemos o monge vietnamita Thich Nhat Hanh: "Le poète indien Rabindranath Tagore exista-t-il avant sa naissance ou non? Exist-t-il encore depuis sa mort ou a-t-il cessé d'exister? Si vous acceptez le principe tiré du Soutra Avatamsaka d'«interpénétration» ou celui, venant de la physique de l'impulsion initiale, d'«inter-être», vous ne pouvez pas déclarer qu'il a existé un temps où «Tagore n'est pas [atentem-se aos itálicos do autor]», même avant sa naissance ou aprés sa mort. Si Tagore n'est pas, l'univers entier ne peut être, ni vous ni moi exister. Ce n'est pas à cause de sa «naissance» que Tagore existe, ni à cause de sa «mort» qu'il n'existe plus [atente-se nas aspas do autor]."

Thich Nhat Hanh, La Vision Profonde, De la Pleine Conscience à la contemplation intérieure, trad. de l'anglais par Philippe Kerforne, Paris, Albin Michel, col. spiritualités vivantes, 1995, p. 142.

Eis toda uma outra concepção de linguagem.


Este texto de Thich Nhat Hanh parece indiciar a chamada de atenção para o problema do enredamento da linguagem, que já Nietzsche noutras formulações aludira. Poderemos dizer que também esta compreensão do monge budista vietnamita está enredada na linguagem, pois radica numa tradição que não deixa de pensar conceptualmente, apesar de se supor não regida prioritariamente por conceitos? Provavelmente. Mas então, há, pelo menos, um duplo enredo: o deste texto e de um outro que se lhe oponha denunciando-o sem dar por que é o mesmo no seu avesso. E é este duplo enredo que importa pensar. Questões como double bind, dupla ligação , duplo laço, dupla articulação da linguagem não poderão contribuir para pensar nestes contextos? Noutra perspectiva, já Platão no Crátilo havia falado da sumplokê, de um plegma - entrelaçamento, entretecimento - do nome e do verbo. Mas do nosso ponto de vista, estas abordagens linguísticas e da reflexão da linguagem só respondem parcialmente. Não será necessário estabelecer diálogos e pontes, por exemplo, entre estas leituras e aquelas compreensões orientais, por vezes tão estranhas para nós? Creio haver sinais de início desse empreendimento dando atenção ao trecho de Thich Nhat Hanh.

c) O famoso Koan Zen do budismo que pergunta "qual era o teu rosto antes dos teus pais nascerem?" é extraordinário! Mais ainda quando o pensamos fora do regime de sentido e de linguagem que pensámos acima a propósito da dificuldade de pensar, por um lado, a presença do mundo com a nossa ausência e, por outro - por via de consequência recíproca -, a ausência do mundo com a nossa presença. Estas dificuldades reenviam para a questão da linguagem, ou seja,o problema da linguagem. Mas talvez também para qualquer coisa do plano do pré-verbal, quer dizer, da ordem do que chamaria a imagem da ausência. Talvez o intervalo aonde o dizer e o ver ainda não se articulam pela palavra. Com a oposição sujeito / objecto, a imposição de cada um ao outro de cada vez, implica a dado momento a necessária ausência ora de um ora de outro devido precisamente à sua separação e oposição recíprocas. O que mostra que a dificuldade da oposição, aliada a um pensamento fundado na oposição sujeito / objecto, têm que que ver com um certo esquecimento do movimento. Fica-se num intervalo estático. Assim, da necessária ausência de um ou de outro que institui a sua mútua separação e oposição releva um outro intervalo a pensar.
Mas se o Koan manifesta um sentido de intervalo diferente em relação àquele intervalo de registo ocidental que acabámos de explicitar o melhor que pudemos, não haverá qualquer coisa que se poderia entender, a título de primeira mão, como um intervalo entre estes dois intervalos? Um intervalo em movimento? Um movimento espacial? Não sabemos. Mas do nosso ponto de vista o tathata talvez responda assim ao apelo de um novo sentido de intervalo num diálogo a meditar Oriente - Ocidente.
Nesta linha, poderemos deixar de evocar a khôra (lugar, zona, espaço (?)) de que nos fala o Timeu de Platão (52 a-d)? A khôra só é concebível aproximadamente por meio de um raciocínio que Platão designa por "bastardo" (nótho) ou "híbrido" (neste segundo caso, e pertinente, na tradução de Albert Rivaud, Belles Lettres, 1925). Daí, por exemplo a seguinte passagem bem actual de Bragança de Miranda: "A experiência emerge enquanto tal, confundindo-se com a medialidade, apresentando-se assim como uma imensa cadeia de elementos heteróclitos, cuja afinidade lhes advém de estarem todos caídos no mesmo espaço. Talvez não seja por acaso que a noção platónica de khôra retorna hoje com intensidade, indicando uma nova enigmaticidade do espaço (J. A. Bragança de Miranda, Queda sem fim, seguido de Descida ao Maelström, de Edgar Allan Poe, Lisboa,Vega, 2006, p.18)".
Ora, por que razão na terminologia, ou na linguagem, se quisermos, das filosofias e sociologias da técnica, se emprega tão frequentemente - sendo mesmo um conceito ou categoria decisivos nas suas análises - os termos "híbrido", "hibridismo", "hibridização", "formas híbridas" termos que vêm no seguimento dos estudos sobre o interface homem-máquina, homem-computador, cyborgues, replicantes, reenviando para o chamado pós-humano, etc., a par das investigações sobre as mediações, ligações, mutações operadas nas áreas, por exemplo da engenharia genética, biotecnologia...? Não será uma questão digna de ser pensada? "Tudo se precipita num meio heteróclito e informe, que muitos têm a ilusão de controlar falando do "híbrido", do composto, cuja natureza é mais incompreensível que toda a "natureza" existente até aqui (J.B.M., Idem, p.11)." O híbrido, a questão do híbrido, repete-se? Mas o problema será o já se ter pensado esta questão desde os gregos, ou seja: estamos a repetir-nos com a questão do 'híbrido'? Não. É ao repetir-se que estamos a abrir novas pistas e leituras. Com o senão, todavia, de que, se não nos damos conta dessa repetição, não avaliamos as possíveis novidades (o que não se repete na repetição), supondo, porém, que estamos a trazer algumas novidades com essa pretensão do novo mal pesada.



Qual o lugar da técnica quando devemos também questionar qual a técnica do lugar? Mas este jogo mútuo de simetria não é suficiente.

d) Invocando ainda o Koan, o budismo e a questão do intervalo, podemos dar um exemplo do carácter intervalar do sânscrito tathata (talidade, tal-qualidade, natureza de tal, o 'assim' do 'como tal'...). O tathata (não confundir com tathagata - natureza de buda) enquanto intervalo manifestando-se espácio-temporalmente na atitude de meditação sentada do Zazen que se traduz num estar pura e simplesmente sentado enquanto prática, num agir aliando, num regime de espiritualidade oriental, a prática como um agir e não-pensar. Trata-se mais propriamente do agir do 'não-agir' a par do que os budistas chamam de 'não-pensamento'. Mas é sem dúvida uma prática. E quem diz Zazen pode dizer Yoga, embora bem diferentes. E poderá testemunhá-lo quem pratica, pois manter a postura sentada, uma disposição da mente e as técnicas respiratórias não é tarefa fácil. Como leigo tenho uma vaga experiência. Mas ficarmos só por isto, é permanecermos na palavra sem acção. E é por isso que o budismo tem as suas formas de apelo à prática, seja sentada, seja nas mais banais tarefas, como por exemplo varrer o chão da cozinha... Com efeito, estas práticas, e o principiante pode testemunhá-lo, conjugam de forma inaudita o que é da ordem do mental e do corporal, justamente, pela prática, paradoxo para o ocidental, em que o agir e o não-agir, o pensamento e o não-pensamento se articulam, de um modo que o dito pensamento ocidental tem dificuldade em compreender. Eis o chamado pensamento não-dual, que nem é propriamente uno - pelo que 'dual' seria o seu oposto numa primeira interpretação fundada nas oposições metafísicas -, nem 'dual', apesar de parecer duplicar-se a partir do 'uno' para o 'não-dual'. Não querendo por agora ir mais longe, deixo somente mais uma breve nota: "pensamento não-dual" ao invés de pensamento uno (fusão) por oposição a dual (cisão). Eis um modo bem diferente de abordar o problema dos binómios, dos dualismos e das oposições que nós ocidentais tanto requestionamos tentando superá-los sem deixar de paradoxalmente continuar a referi-los.


"Toda a linguagem emprega signos", escreve José Gil, e, portanto, pode-se dizer que dificulta assim o diálogo entre algumas vertentes do pensamento Oriental e Ocidental. O problema está em que, como ocidentais e escrevendo sobre estas questões temos dificuldade em compreendê-las se não nos despojarmos de uma certa nomenclatura. Por outro lado, um texto oriental também os emprega, mas com um dispositivo diferente tendo em conta a correspondência desses signos, dessas palavras com as práticas e exercícios corporais-respiratórias (por exemplo, o prânayama no yoga) que escapam à disposição teórica ocidental. Dou em seguida um exemplo que, embora não tenha obrigatória e directamente relação com esse diálogo, ilustra de modo paradoxal essa dificuldade, operando nele uma espécie de curto-circuito ao mesmo tempo que o viabiliza e veicula enquanto metáfora e símbolo. O exemplo de que falo é uma frase de Carlos Silva (Carlos Henrique do Carmo Silva, que foi meu professor na Universidade Católica) empregue um dia em conversa numa aula: "A inteligência de se estar sentado". Para simplificar, usemos as duas figuras: 'Oriente' (no quadro da meditação sentada, Zazen do budismo Zen) e 'Ocidente' (no quadro do logos-discurso-razão correlativos do pensamento-intelecto-inteligência, aqui na perspectiva que se inscreve já em Platão no Sofista 263 e; note-se, de passagem, que, curiosamente, no contexto do lógos, poderemos aceitar a chamada tematização - tema - no sentido de 'colocação', 'assentamento', 'pôr'; e também poderíamos analisar a questão do termo 'tese'; deixaremos para outra oportunidade). Por assim dizer, usamos aqueles dois pólos (Oriente e Ocidente) para facilitar a compreensão e para abrir a tentativa de um diálogo possível entre ambos nestes contextos. Digamos então que, por um lado, à partida, a enunciação "a inteligência de se estar sentado" é incompatível com a tradição ocidental (que tem a "inteligência" a ver com o "estar-se sentado"?), e que, por outro, "a inteligência de se estar sentado" é incompatível com a tradição oriental (que tem o "estar-se sentado" a ver com a "inteligência"?). Todavia, ambas as disposições ("inteligência" e "estar sentado") se entrecruzam paradoxalmente na própria enunciação. Como se algo de "estar-se sentado" tivesse que ver com "inteligência" e vice-versa. Portanto, entrecuzam-se dispondo uma nova e outra compreensão para o diálogo a que apelámos. E assim a bipolarização, a dicotomia à partida pouco sensata que empregámos, a saber "Oriente /Ocidente", ganha viabilidade no sentido de melhor se compreender como, usando esse binómio numa certa perspectiva, as condições - para o estabelecermos num regime de diálogo e de transformação de cada um dos pólos - são favoráveis e abrem caminho para outras e novas disposições de pensamento. Portanto, o que aqui mais importa, do nosso ponto de vista, é que o "intervalo de nada", digamos, se relança com essas duas disposições. Não esquecendo, porém, que a enunciação "a inteligência de se estar sentado" é uma metáfora, exerce também uma função simbólica e é um exemplo de que nos servimos para tentar ilustrar e ao mesmo tempo superar, de um modo lúdico, mas sério, a dificuldade que se levanta. Só por si essa enunciação nada é e nada tem que ver com o movimento intervalar de que falava; sendo, contudo, bastante interessante.

Mas voltando à postura sentada. Prova de que se trata de um exercício que exige empenho físico, corporal, é o facto de que quando estamos ainda no princípio, na iniciação dessas práticas, o que nos ocorre durante a postura sentada de meditação (Zazen), é que estamos a perder tempo, de que precisamos de fazer qualquer coisa - nem que seja coçar a cabeça, pois às tantas precisamos de mexer as mãos. Ou ir fazer qualquer coisa como arrumar umas papeladas que já podiam estar arrumadas em vez de estarmos ali, e de que o estar ali sentado confere um certo absurdo do lugar , do espaço e do tempo. É a meditação enquanto tal, que nos mostra que isso se trata afinal de um absurdo aparente, e que de facto algo se realiza nesta prática, podendo fazer vivenciar, por exemplo, que o estar a escrever neste momento este texto e o possível esforço que por vezes me obriga a estar mais conectado com o computador desfavorecendo uma postura mais desapegada dele, que pode levar-me a manter sempre em aberto a possibilidade de estar a escrevê-lo como algo que pode ser tão absurdo quanto o que supunha ser a meditação sentada (Zazen). Passo então a uma postura-meditação enquanto escrevo sem apego.
Há por exemplo práticas cristãs e de certas vertentes islâmicas, como o sufismo (com influências do yoga), que cultivam processos corporais. Os próprios exercícios vocais-espirituais sufis (dikhr) e os mantras hindus são expressões de exercícios corporais. Mas não vamos tratar dessas questões, até porque nos interessa aqui referir principalmente a importância da tradição extremo-oriental.

Com algumas indicações sobre o sufismo vj. o meu texto em:http://slp.pt/Variavel/Luis_Tavares.html
Ou ainda o mesmo texto com alguns breves acrescentos:http://linguafone.blogspot.pt/search?q=o+outro+espa%C3%A7o

Voltando ao tathata. A tradução para o pensamento filosófico feita por Daisetz Teitaro Suzuki do tathata é 'quididade' (que vem do latim quidditas, vj. Essais sur le Boudhisme Zen, 3 tomes, Albin Michel. Respeito e admiro muito Suzuki, historiador do budismo e praticante, bem informado e estudioso da tradição do pensamento filosófico ocidental. Mas não posso deixar de discordar desta versão, embora não seja este o momento para analisá-la.

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Thich Nhat Hanh escreve "Nous avons remarqué que ces deux types de phénomène, l'esprit et les objets de l'esprit, dépendent l'un de l'autre pour leur existence et sont donc interdépendants. Mais nous ne voyons pas qu'ils ont eux-mêmes la même nature. Cette nature est parfois appelée «esprit» et parfois nommée «essence» (tathata) ou Dieu. Quel que soit son nom, nous ne pouvons mesurer cette nature en utilisant des concepts (La Vision Profonde, De la Pleine Conscience à la contemplation intérieur, p. 157)."

"Le Soutra Satipatthana, un écrit bouddhique qui enseigne la pratique de la Pleine Conscience, utilise des expressions comme «observer le corps dans le corps», «observer les sentiments dans les sentiments», «observer l'esprit dans l'esprit», «observer les objets de l'esprit dans les objets de l'esprit». Pourquoi les mots corps, sentiments, esprit et objets de l'esprit sont-ils répétés? Quelques maîtres de l'Abhidhamma disent que le but de cette répétition est de souligner l'importance de ces mots. Je vois la chose autrement. Je pense que ces mots sont répétés afin de nous rappeler de ne pas séparer le méditant et l'objet de sa méditation. Nous devons vivre avec cet objet, nous identifier à lui, nous immerger en lui, comme un grain de sel qui pénétrerait dans la mer afin d'en mesurer la salinité (Idem, p.56)."

Leiamos um trecho de Contemplación de los objectos de la mente (dhamânupassanâ) do Buda em La Palabra del Buda de Nyânatiloka Mahâthera (Barcelona, Trad. Amadeo Solé-Leris, Ed. Indigo, 1191, p.86): "Así permanece practicando la contemplación de los objectos de la mente en los objectos de la mente, por dentro, por fuera, y por dentro y por fuera a la vez. Contempla el surgir de los fenómenos en los objectos de la mente, contempla el desvanecerse de los fenómenos en los objectos de la mente, y contempla la alternación del surgir e desvanecer de los fenómenos en los objectos de la mente. Tiene conciencia de que "hay objectos de la mente" en la medida necessaria para ejercer la atención y obtener el conocimiento. [colocámos itálicos]"
Poderíamos também dizer que esta repetição, este desdobramento produz uma espécie de afastamento por efeito de um qualquer processo de 'des-fazer' o sentido estático, i.e., uma certa coisificação da palavra (talvez um indício de conceptualização). Re-faz-se assim algo de novo mantendo ainda a palavra na sua condição veiculadora. Aquele afastamento já não é o da objectivação, da oposição sujeito /objecto. E como é que ele se opera. Tentemos ventilar dizendo desta maneira: pela dupla afirmação da repetição que dá negação: "Así permanece practicando la contemplación de los objectos de la mente en los objectos de la mente, por dentro, por fuera, y por dentro y por fuera a la vez." Tudo indica também um movimento de fazer-desfazer-refazer inaugurando outros sentidos de realização e libertação, aceitando por seu turno a "impermanência" tão importante na espiritualidade budista: "Contempla el surgir de los fenómenos en los objectos de la mente, contempla el desvanecerse de los fenómenos en los objectos de la mente, y contempla la alternación del surgir e desvanecer de los fenómenos en los objectos de la mente." Ao contrário do que a uma ou a duas leituras possa afigurar-se, Buda não está a objectivar. Ou, digamos assim, ele objectiva por uma re-objectivação que desloca, des-objectiva, negando por um exercício de linguagem fundado na repetição, o próprio princípio de não contradição que se cristalizou, se coisificou segundo o nosso regime de pensar de tradição ocidental que assenta num outro tipo de dupla afirmação remontando a Parménides. Sem precisar muito, cito somente um fragmento deste filósofo pré-socrático: "Xρὴ τὸ λέγειν τε νοεῖν τἐὁν ἔμμεναι · ἔστι γἀρ εἶναι" Parménides, fr.6. Uma possível tradução: "Necessário é dizer e pensar que pensamento é, com efeito é ser (ou ‘pois lhe possível ser’)". Ou ainda "Tὸ γὰρ αὐτὸ νoεὶν ἐστίν τε kαὶ εἶναι (Pois pensar e ser é o mesmo, (Parménides, fr.3)". Noutra versão do mesmo fragmento: «… Ser e Pensar são unos no sentido do que tende a opor-se, i.é, [..] são o mesmo enquanto co-pertencentes num único conjunto» (Heidegger, M., Introdução à metafísica, Trad. Mário Matos, Bernhard Sylla, Lisboa, Piaget, Ibid. P.153). Sem adiantar muito a análise, parece evidente um reforço, uma insistência mediante a linguagem, esboçando por exemplo o que virá a ser mais tarde a enunciação do princípio de identidade de Aristóteles (designado também por "princípio de contradição" ou de "não-contradição"); digamos assim: "uma coisa não pode ser e não ser ao mesmo tempo e sob o mesmo aspecto (Metafísica, 1005 b 20)." O que significa que uma coisa é ao mesmo tempo que é segundo o seu mesmo aspecto. Neste caso, trata-se de uma afirmação duplicada pelo próprio processo de enunciação (do lego, o 'digo' de Aristóteles). Tudo isto foi extraordinário e a nossa civilização é o que é hoje graças a isso mesmo. Porém, não seria interessante pôr em diálogo e requestionar o que é da ordem do sim e do não, do ser e do não-ser, da afirmação e da negação?
Foi por isso que se falou acima de outras possibilidades de pensar estas questões.
Lembremo-nos do ‘espanto’ de que fala o Aristóteles como ponto de partida do filosofar (gr. thauma: espectáculo, admiração…) não será uma grande interrogação, uma grande afirmação das coisas, do mundo, do ‘ser-no-mundo’, para falar com Heidegger, mas também uma grande negação, tal é a presença dessas coisas e do mundo e do ‘ser-no-mundo’ que impõe uma espécie de reflexo de recusa antes que os/nos percamos? Por isso, Parménides nuns daqueles passos famosos citados pelo Heidegger, procede a qualquer coisa como um reforço, um acentuar. Não indo mais longe, quando ele afirma o ‘ser’, já está a re-afirmá-lo, mas de outro modo, e por isso não deixa somente de o afirmar, mas nega-o de outro modo também relativamente ao pensamento dos seus antecessores. Nega-o até o afirmar, e afirmar que a negação, o-não ser desta vez já não pode-não ser. Mas está a re-afirmá-lo. A re-afirmá-lo, digamos que relativamente à sua manifestação latente e ainda não explicitada, embora afirmativa, nos textos e no pensamento anteriores a ele.
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Abrindo um parênteses: faço aqui uma breve leitura de algumas passagens de Agamben no seu livro Le Temps qui reste aonde o autor aborda também questões análogas mas numa perspectiva bíblica, nomeadamente em Paulo de Tarso.
Não poderemos ler, numa certa oscilação de proximidade, embora em contextos diferentes, o que Giorgio Agamben analisa numa perspectiva bíblica no passo seguinte? "D'un point de vue épistémologique, il s'agit plutôt de couper la partition bipolaire entre Juifs et non-Juifs afin de passer par là même à une logique du genre de celle qui est utilisée par Nicolas de Cuse dans son Non aliud: l'opposition A / non-A y admet un tiers qui a la forme d'une double négation : non non-A. L'évocation de ce paradigme logique trouve un fondement chez Paul lui-même, dans le passage de 1 Cor 9, 20-23, où il définit sa propre position par rapport à la division Juifs (hupo nomon, sous la loi) / non-Juifs (anomoi, sans loi) par la progression singulière: «comme sans loi, non sans loi de Dieu, mais dans la loi du messie» (hos anomos, me on anomos theou, all'ennomos christou). Celui qui se tient dans la loi messianique est non non-dans la loi (Giorgio Agamben, Le temps qui reste, un commentaire de L’Épître aux Romains, trad., Judith Revel, Paris, Rivages, 2004, pp.90-91)."
"la division entre Juifs et non-Juifs, dans la loi et sans loi, laisse désormais, d’un côté comme de l’autre, un reste, qu’il est impossible de definir comme juif ou comme non-juif: il est le non non-Juif, celui qui est dans loi du messie. On a donc à peu près le schéma suivant…” Por difuldade de reproduzir o referido esquema reenviamos o leitor para a obra mencionada (p. 91)
O queremos somente aqui assinalar é a referida "dupla negação" ("double négation") de que fala Agamben. Dupla negação reenviando para uma afirmação de outra natureza. De outra natureza que não a da oposição de "A " em "A (afirmação) /não-A (negação)". Por sua vez, este "A" de outra natureza compreendendo outro "não-A", outra negação que não a da oposição "A / não-A". E assim, eis o que permite falar, tematizar outra oposição, outra contradição que não a primeira enunciada ("A / não-A"). Outra contradição, no decorrer da qual "afirmação" e "negação" já não bastam, já não são suficientes como determinações no quadro da primeira formulação "A / não-A". Daí um outro novo "não" (o "não não-Judeus") de que decorre um novo outro "sim".
A questão do "resto" de que fala Agamben, e que nesta linha argumentativa é analisada mais demoradamente na pág. 94, não poderá responder a esta nova articulação?
Não nos parece que seguimos aqui uma linha especulativa hegeliana no que respeita à sua dialéctica e à Aufhebung. Mas não é o lugar para explicar porquê. Note-se somente que não damos relevância ao 3 mas ao 4 (dois 'sim' e dois 'não'; duas afirmações e duas negações), enfim, à abertura virtual do 4.

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A questão do presente

O problema do 'presente' que desde os tempos humanos mais remotos produz muito frequentemente uma espécie de ilusão. Como se no presente, de tão presente, se operasse um processo que se origina numa tendência que nós humanos temos para enfrentar o real; real que vem já do espanto de que nos fala Aristóteles. Espanto (do grego thauma), que significa 'admiração', mas também choque ante o 'espectáculo' do real, produzindo-se um duplo gesto de entrega ao mundo e recusa de o perder ou de nele nos perdermos. Interrogação-afirmação-negação. Nos nossos dias isso ainda mais se acentuou, ao que parece, pelo efeito do imediatismo dos media e do próprio espectáculo inerente ao que é produzido pela técnica. O que produz, no revés, um estado de presença-ausência que tem muito a ver com certas novas formas de alienação, mas principalmente por força de uma espécie de desdobramento do real.

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Mas as repetições de que falava quanto aos exercícios espirituais-corporais da citação acima
(Contemplación de los objectos de la mente (dhamânupassanâ) não remeterão precisamente para um trabalho sobre esse presente ilusório que por vezes nos assola? Ora, é presentificando um certo presente - ilusório de tão imediato sem mais - que se desfaz (descontrói, se quisermos) esse mesmo presente, re-inscrevendo ao mesmo tempo um outro presente que, pela repetições sucessivas, se desfaz, por seu turno, por ele mesmo, inaugurando-se e re-fazendo-se (reconstruindo-se) outro ainda. Outro presente ainda que dispensa, desta feita, agora, a palavra nas suas repetições verbais daquela presentificação preliminar. O silêncio e a palavra jogam-se desta forma segundo uma nova compreensão. É por isso que as práticas yoguicas e do Zen passam essencialmente pelo não-pensamento enquanto sem palavras e sem pensamentos. Deixá-los correr, fluir, até que, por tanto fluirem livremente, o próprio fluxo das coisas muda para um outro estado, supostamente o nirvana. Nirvana (liberação, iluminação, despertar) que, segundo esta espiritualidade oriental de vertente budista, começa ao fim e ao cabo por ser a vida tal como ela é.
Mas, pondo de lado a questão do nirvana, peguemos num exemplo do yoga sobre a "presença do Sentido", o "sentido do Sentido", o "«silêncio»", a "Palavra do corpo", na linha dalguns pontos que tratámos acima: "O Ioga - como qualquer doutrina iniciática ou religiosa - afirma que a presença do Sentido aparece numa experiência indizível, inexprímivel, porque toda a linguagem emprega signos. É, portanto, no «silêncio» que a presença se revela. A sua revelação é Palavra do corpo: porque «o Verbo se fez Carne», é necessário que a Carne volte ao estado de Verbo. A experiência iogui, eis o sentido do Sentido: sentido de um círculo em que o significante supremo apenas diz a sua profundidade, no silêncio em que o corpo se transforma em palavra, única via que conduz precisamente ao sentido (José Gil, Metamorfoses do corpo, Lisboa, Relógio D'Água, 1997, p.102)."

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“Car à l’origine il y a de la répétition-toujours-déjà, l’oeuf de la poule, des usages, des mots. Sans que l’on renonce toutefois à les interroger e plusieurs points de vue.”
Fernando Belo, Le Jeu des sciences avec Heidegger et Derrida


Não por acaso, os significantes são "repetições de diferenças", como um dia o Fernando Belo me chamou a atenção em conversa. Essas repetições de diferenças da dupla articulação não guardarão também repetições de diferenças de silêncios que por si mesmas nada significam, contribuindo todavia para o sentido? "Ce sont les mots qui sont doublement articulés, liés. D'une part, ils sont liés aux phonèmes (lettres, dans l'écriture) qui le composent, dont il suffit le changemnt d'un(e) seul(e), d'un accent, pour qu'il s'agisse d'un tout autre mot, dont le sens n'aura la plupart du temps aucun rapport avec lui. Ce lien est constitutif du signifiant de chez Saussure, différence de phonèmes (lettres) entre eux, quoi qu'il en soit des sons des voix qui disent le mot ou des graphies qui l'écrivent: seules leurs différences comptent. Or, ces phonèmes et ces lettres sont retirés strictement de la scène du sens de la communication, d'eux mêmes ils ne veulent rien dire, ne sont non plus l'image de rien (...) (Fernando Belo, La Philosophie avec Sciences au XX siècle, Paris, L'Harmattan, 2009, p.34)." Quer dizer, até que ponto estes fonemas e letras que "por si mesmos não querem dizer nada e não são imagem de nada" não se jogam também com repetições de diferenças de silêncios, se assim se pode dizer. Pois não poderemos ter em conta a questão do 'silêncio' ou dos 'silêncios' nas suas possíveis repetições de diferenças no jogo com com as repetições de diferenças de fonemas e/ou letras enquanto significantes no movimento e trace? Sendo assim, até que ponto a questão do 'silêncio' ou, melhor, dos 'silêncios' não subverte nestes contextos, sem se submeter, o tema do "diálogo interior e em silêncio que a alma tem consigo mesma como pensamento" - diálogôs aneu phônês (διάλoγoς ἂνευ φωνῆς) no Sofista de Platão, 265 e - que decide o fonocentrismo e o logocentrimo inaugurado por Platão e analisado de maneira extraordinária por Derrida (ver também F.B., Filosofia e ciências da linguagem, Lisboa, Colibri, 1993, p.87)?

No bLogoshttp://blogoscomfbeloperguntaserespostas.blogspot.pt/ , (bLogos, mensagem 89) Fernando Belo respondeu-me do seguinte modo: "A questão da 'trace' (rasto) e do silêncio é uma boa questão. Implica saber o que é 'silêncio'. Por um lado, é a ausência de sons, mas uma ausência, em regra, intermitente, temporária (em todo o lado há ruídos). Define-se em relação ao som, como o seu outro, e nesse sentido releva também do que se chama o sensível (como o escuro releva da luz). Em relação a esta definição de silêncio, o rasto derridiano não é nem sonoro nem silencioso.
Limitando-nos à questão da linguagem, o rasto é o (não) movimento - espaço-temporalização - que produz as diferenças significantes, diferença entre sensíveis: portanto não é 'sensível', é nada. Nada não é luminoso nem escuro, nem sonoro nem silencioso.

A outro nível, acima desta diferença no Sofista (tua primeira questão neste bLogos), o silêncio é algo que as escolas místicas, do pouco que delas sei, cristãs, buscam e têm muita dificuldade em conseguir, há métodos de evitar devaneios para prosseguir em meditação, mas na 'contemplação', chegar a um verdadeiro silêncio, sem pensamento, é extremamente difícil, busca-se durante anos e anos. Ora bem, se se chegar lá, talvez não muito tempo, que sei eu?, pode-se dizer que o jogo do rasto se interrompe? que esse silêncio seja silêncio do rasto? Não tenho a certeza.
Complexa questão."

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É interessante que outras práticas e exercícios espirituais com base em verbalizações se verifiquem no Cristianismo mediante a chamada 'oração', no Islamismo com o dhikr e nos mantras do Hinduísmo, sendo que estas duas já haviam sido assinaladas neste texto. Não irei analisar aqui estas práticas até porque me falta competência. Mas não deixo de aproveitar uma passagem sobre a experiência do mantra no hinduísmo e o yoga citando Mircea Eliade citado por seu turno por José Gil: "Acontece por vezes que toda uma metafísica está concentrada num mantra. As 8000 estâncias do volumoso tratado mahâyana Asta-sâhasrikâ-prajnâ-pâramitâ foram resumidas apenas em algumas que constituem o Prajna-pâramitâ-hrdaya-sûtra este pequeno texto foi reduzido em algumas linhas da Prajnâ-pâramitâ-dhârani, que, por sua vez, foi concentrada numa Prajnâ-pâramitâ-mantra: finalmente esse mantra foi reduzido à sua «semente» o bîja-mantra: pram. De tal modo que poderíamos dominar toda a metafísica prajnâpâramita murmurando a sílaba pram (Mircea Eliade, Techniques du Ioga, Paris, Gallimard, 1948, p.217, in José Gil, op.cit., p. 97)."
Nesta linha do pram, poderíamos dizer com José Gil a propósito da recitação dos mantras e da "teoria tântrica do som": "(...) digamos apenas que, enquanto fonema vazio, a sua recitação (japa) [implicando repetição] tem uma dupla função: negativa, de destruição do sentido e da linguagem [sublinhamos]; positiva, de acção sobre os sakra. Neste ponto, seria necessário expor a teoria tântrica do som (sabda), dos mantra-germe (bîja) e dos nomes das coisas. Basta-nos notar: a) que o iogui destrói o sentido com a recitação dos mantras, mas para criar uma espécie de voz (no sentido quase husserliano) que atinge este nível originário em que o som se coloca no limiar do sentido: o mantra recitado torna-se assim o eco do corpo todo, a sua ressonância única, o som interior cuja modulação - como sobre um teclado - se repercute sobre toda a consciência, visto que ele é também a única consciência nesse momento. Ele é o eco do corpo e o corpo em si mesmo, o corpo transformando-se em consciência (José Gil, op. cit., p.98)." A par da repetição que caracteriza a "recitação", há um acompanhamento da palavra, da vocalidade com o corpo até que o "corpo se transforme em consciência" enquanto "ressonância única".
«Vasubando dizia, no seu tratado Bodhisattvabhûmi, que o verdadeiro sentido dos mantra reside na sua ausência de significação» (M.Eliade, Le Yoga, Immortalité et Liberté, Payot, Paris, 1954, p.218, citado por José Gil, op. cit., p.97).
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Noutra perspectiva, este 'com' do acompanhamento pode também encontrar-se no texto de Heidegger intitulado Identidade e Diferença quando é aí pensado o famoso "princípio de identidade". "A = A" comporta como é óbvio repetição. No entanto Heidegger aponta como mais conveniente "A é A". Mas Heidegger ainda vai mais longe: "La formule A = A indique une égalité. Elle ne présente pas A comme étant le même. La formule courante du principe d'identité voile précisément ce que le principe voudrait dire, à savoir que A est A, en d'autres termes, que tout A est lui-même.
Pendant que nous définissons ainsi l'identité, une parole ancienne se réveille au fond de notre mémoire, celle par laquelle Platon nous fait entendre ce qu'est l'identique, et cette parole en évoque elle-même une plus ancienne. Dans le Sophiste, 254 d, Platon parle de stásis et de kínesis, d'arrêt et de changement, et il fait dire à lÉtranger, en ce même passage: oukoun autõn hékaston toin mèn dyoin héterón estin, autò d''heautõ.
«Maintenaint chacun d'eux est différent des deux autres, mais il est lui-même à lui-même le même.» Platon ne dit pas seulement : hékaston autò tautón, «chacun est lui-même le même», mais bien: hékaston... autó d'heauto tautón, «chacun est lui-même à lui-même le même».
(...)
Il est donc préférable de donner au principe d'identité la forme: A est A, et cette forme ne dit pas seulement: Tout A est lui-même le même, mais bien plutôt: Tout A est lui-même le même avec lui-même [colocámos itálicos]. L'identité implique la relation marquée par la préposition «avec», donc une médiation, une liaison, une synthèse: l'union en une unité (Martin Heidegger, Questions I, Paris, Gallimard; as transcrições fonéticas do grego seguiram a versão brasileira de Ernildo Stein, S. Paulo, Livraria duas cidades)".

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Noutro plano, a questão da repetição pode ser perspectivada, por exemplo, ainda da seguinte maneira na reflexão de Heidegger acerca do princípio de identidade no seu texto Identidade e Diferença. Repetindo-se desta maneira diferente, nega-se a repetição do "A é A" e ainda mais do "A = A" (segundo Heidegger, a segunda formulação é menos conveniente ao princípio de identidade; vj. Heidegger, Identidade e Diferença).
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Mas não nos espantemos com esta citação de Heidegger aparentemente descabida neste estudo. Leiamos Toshihiko Izutsu, mestre e erudito japonês: "El primer paso de la vikalpa ["conhecimento descriminador"] en el ejercicio de su función natural es la identificación o el reconocimiento de una cosa tal como es en sí misma (A en tanto que A), procediendo por descriminación, o, lo que es lo mismo, distinguiéndola de todas las demás cosas (las no-A). Una manzana debe ser reconocida y clasificada entanto que manzana. Esta identificación por discriminación constituye la base y el punto de partida de todas las etapas ulteriores de la actividad mental. Si nos faltase esta base, el mundo de nuestra experiencia empírica normal se derrumbaría y las cosas caerían irremediablemente en un estado caótico (Toshihiko Izutsu, El Kôan Zen, Ensayos sobre el budismo Zen, Trad. J. Garcia Atienza, Madrid, Ed. Eyras, 1980, p.55)."
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"Tiene conciencia de que "hay objectos de la mente" en la medida necessaria para ejercer la atención y obtener el conocimiento." Ou então, seguindo o trecho de Buda citado por Nhat Hahn: "Le Soutra Satipatthana, un écrit bouddhique qui enseigne la pratique de la Pleine Conscience, utilise des expressions comme «observer le corps dans le corps». Mas só a meditação enquanto prática corporal respiratória permite compreender uma dupla afirmação destas na sua redundância. Pois aqui também se afirma, se re-afirma, mas sem separar o corpo da respiração, a ponto de, de tanto se afirmar por duplicação, se nega, mas desta vez já se afirmando, re-afirmando, se se quiser, mas de outro modo. Só assim não ficaremos meramente por estas palavras aqui escritas, ou outras, faladas, pensadas. O que não é tarefa fácil.

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“The purpose of a fish trap is to catch fish,

And when the fish are caught, the trap is forgotten.

The purpose of a rabbit snare is to catch rabbits.

When the rabbits are caught, the snare is forgotten.

The purpose of words is to convey ideas.

When the ideas are grasped, the words are forgotten.

Where can I find a man who had forgotten words?

He is the one I would like to talk to.”

Chuang-Tzu


David Schiller, The Little Zen Companion, Workman Publishing, New York, 1994, p.58.



O Anapanasati Sutta - Sutra da Atenção Plena à Respiração - começa assim:

“[1] Inspirando profundamente, ele percebe que está inspirando profundamente; ou expirando profundamente, ele percebe que está expirando profundamente”.

“[2] Inspirando superficialmente, ele percebe que está inspirando superficialmente; expirando superficialmente, ele percebe que está expirando superficialmente”.

“[3] Ele procura ficar sensível à inspiração [processando-se] no corpo inteiro, e à expiração [processando-se] no corpo inteiro”.

“[4] Ele procura ficar sensível à [ação da] inspiração acalmando o processo corporal, e à [ação da] expiração acalmando o processo corporal”.


"Notre esprit crée des catégories - espace et temps, au-dessus et au-dessous, intérieur et extérieur, moi-même et les autres, cause et effet, naissance et mort, un et plusieurs - et classe tous les phénomènes psychologiques et physiques dans des catégories de ce type avant de les examiner et d'essayer de déterminer leur vraie nature. C'est comme de remplir plusieurs bouteilles de formes et de tailles différentes avec de l'eau afin de trouver la forme et le volume de l'eau. La vérité elle-même transcende ces concepts. Aussi, si vous voulez y accéder, vous devez vous débarasser des catégories conceptuelles que vous utilisez dans la vie quotidienne normale (La Vision Profonde, De la Pleine Conscience à la contemplation intérieur, p.74)."

Poderemos objectar que o autor continua a servir-se de conceitos e categorias. 'Verdade' e mesmo 'categorias', 'conceitos', 'categorias conceptuais' que não são senão conceptualizações e categorizações num regime de metalinguagem. Com a salvaguarda de que é um budista que vê um pouco de fora o "nosso espírito criador de categorias". Vê um pouco de fora visto que conhece bem o outro lado, o das ciências e das filosofias europeias. Ora, não será o seguinte movimento que se impõe, o de, do outro lado, vendo um pouco também de fora, e experienciando algumas práticas de espiritualidade oriental, meditar esta mesma espiritualidade que inevitavelmente se encontra também marcada pelas influências da tradição do pensamento ocidental? Neste duplo movimento - que porventura se desdobra virtualmente num quádruplo movimento - sobre um intervalo, não se instalará um segundo grau intervalar, condição de possibilidade, para usar uma expressão de Kant, de novas dimensões de pensamento a vir?

"Avec les mots, il est particulièrement difficile d'échapper à des catégorisations conceptuelles; et même si l'orateur essaye avec dextérité de les éviter, l'auditeur peut néanmoins tomber dans leurs pièges. Vous vous rappelez des bouteilles vides? Elles avaient des formes et des tailles précises avant même d'être remplies. Les praticants du Zen conseillent souvent de ne pas utiliser les mots. Ce n'est pas pour discréditer ceux-ci, mais pour échapper au danger de se laisser prendre par eux. Ceci afin de nous encourager à utiliser les mots aussi précautionneusement que possible pour la sauvegarde de ceux qui les entendent (Idem, p. 79). "

Algo análogo sucede com os conceitos e categorias. No olhar de Nhat Hanh, é preciso não estar apegado aos conceitos e às categorias. No entanto ele usa-os, necessita de usá-los para negar a sua prevalência. É este necessitar 'de' (da palavra nomeada e nomeante 'conceito') que abre a via, como "orgão-obstáculo", para empregar uma noção, que vem a calhar, de Vladimir Jankélévitch ("l'0rgane-obstacle"). Este necessitar abre a via para a compreensão de que, utilizá-lo, re-lança em jogo o dar e o tirar do retiro, para usar um motivo de Fernando Belo. Dar e tirar que "não leva para o inferno", como se costuma dizer ("quem dá e tira vai para o inferno", segundo um dito popular). Não leva para o inferno, porque desta feita se desdobra, se desdobra o dar e tirar. Daí 'retiro' (re-tiro) que reenvia para duplo movimento sobre aquele inicial. Este desdobramento institui, instala um espaço-tempo e uma nova compreensão da viabilidade conceptual. Pois não se trata de negar os conceitos nem as categorais. O motivo de "zona não-fenoménica correlativa" de Fernando Belo poderá aqui ser útil para a inteligibilidade destas questões, embora os contextos deste filósofo sejam da ordem do pensamento da "filosofia com ciências". Mas não nos inibamos com abordagens menos ortodoxas. Thich Nhat Hanh não faz também incursões na física contemporânea, na filosofia, na poesia e literatura ocidentais?


A fronteira entre o sujeito e o objecto

"La respiration et l'esprit sont un. L'esprit et le corps sont un. Au moment de l'observation, l'esprit n'est pas une entité existant indépendamment, extérieure à votre respiration et à votre corps. La frontière entre le sujet et l'objet de l'observation a disparu. Nous observons «le corps dans le corps». L'esprit ne se tient pas à l'extérieur de l'objet afin de l'observer, mais fait un avec ce dernier. Voici le premier principe: «Sujet et objet sont vides (sujet et objet ne sont pas deux)» - largement développé dans la tradition mahayana (Thich Nhat Hanh, La respiration essentielle, notre rendez-vous avec la vie, Paris, Albin Michel, col. spiritualités vivantes, 1996, p.70)."
"Voici le premier principe: «Sujet et objet sont vides (sujet et objet ne sont pas deux)» - largement développé dans la tradition mahayana."Thich Nhat Hanh fala do sujeito e do objecto, enunciando-os, compreendendo que pretender superar a sua separação implica ainda considerá-los como dois enquanto cada um de cada vez nomeado. E isso implica ainda estar a separá-los. O ocidental tende a omitir isto, este jogo essencial. Esquece-se da possibilidade de ao estar a tematizá-los e a nomeá-los, poder estar ainda a com-pará-los e, de maneira imperceptivelmente paradoxal, nesse gesto, já a se-pará-los. Na repetição de certas palavras, é como se estas se desfizessem e se refizessem, estruturando-se sentidos outros de compreensão, desde que acompanhados por seu turno de práticas repetitivas corporais, desde as respiratórias às sonoras ou mais propriamente vocais como os mantras por exemplo como referi acima.
Sobre o tathata vj. o post do meu blogue Transporizações:http://transporizacoes.blogspot.pt/search?q=tathata
Giorgio Agamben no seu livro fala-nos da 'talidade', da 'tal-qualidade', do 'tal-qual' (A Comunidade que Vem, trad. António Guerreiro, Lisboa, Presença, 1993, p.78, p.82...). Se bem que noutra perspectiva, as suas muito interessantes análises ajudarão certamente alguns pontos do nosso texto.
Sem pretender fazer transposições um tanto grosseira, convém lembrar que Malevitch, grande artista plástico e também pensador, na sua arte "não-figurativa", como gostava de dizer, ou abstracta, fala-nos da "talqualidade pictural" ("telquéllité picturale", nos seus textos publicados e traduzidos nas edições l'Âge d'Homme), que em linhas gerais consistia nas massas picturais, nas formas suprematistas geométricas, pintura auto-referencial do mundo "sem objecto", não mimético, não representacional... Não deixa de ser interessante que essas pinturas, principalmente as primeiras, mais minimalistas, digamos assim, como o seu famoso Quadrângulo Negro (sobre fundo branco), apelarem a um estado de meditação aliadas ao que ele designava como "abismo sideral", "nada libertado", sugerindo a vacuidade (sunyata) e, por assim dizer, lembrando os motivos-força do budismo Zen.
Ver o meu texto sobre Malevitch no seguinte post do meu blogue escrita-fone: http://escrita-fone.blogspot.pt/2012/04/malevich-suprematismo.html

O Oriente e o Ocidente dialogam, por vezes, talvez, sibilinos. Daí o famoso o diálogo de Heidegger com um mestre japonês (Acheminement vers la parole; Encaminhamento à fala) . Donde que, por exemplo, vários autores japoneses de tradição budista se tenham inteirado suficientemente da tradição filosófica e cultura ocidentais e mesmo do Cristianismo. Entre outros, D.T. Suzuki, já mencionado, mas igualmente Shunryu Suzuki, Toshihiko Izutsu (citado acima), Taisen Deshimaro, no seu livro "Zen et christianisme, Albin Michel, col. Spiritualités vivantes, 1990" tendo vivido muitos anos no Ocidente (França), fundando escolas budistas, o vietnamita Thich Nhat Hanh que já citei acima, este, viajando também pelo Ocidente, fazendo o contraponto de algumas dimensões da espiritualidade budista com questões e dados da física contemporânea...
Sabe-se hoje através de experiências laboratoriais que a meditação é a favorável ao funcionamento cerebral em termos por exemplo de melhorias na concentração. Mas ... cá está! ... isto graças às tecnologias e às ciências, legado ocidental. Todavia, o praticante não precisou disto para o saber. Trata-se naquele caso de uma com-provação no plano científico.
Ventilemos então: dar vazão, diferindo do fechamento de fogo cruzado que assola frequentemente o pensamento de tradição ocidental obstinado tanto em superar a oposição sujeito / objecto quanto paradoxalmente em mantê-la e a mantê-los enquanto temas, manifestando assim as grandes dificuldades em se libertar dessas grelhas. É por isso que importa pensar estas questões...

e) Mas voltando ao ponto de partida, o filme "A palavra e a tentação" de Edmundo Cordeiro, retomando a alínea "a)". Os homens já viam aqueles reflexos. E foi um processo que levou centenas de milhares de anos, até serem, segundo B.M., trabalhadas nas paredes do Paleolítico Superior (25-30 mil anos), momento resultante de um processo mais fundamental prévio de centenas de milénios, quando os homens se reflectiam somente nos lagos. Mas eu acrescentaria que o culminar de "qualquer coisa" é razão recíproca de todo um processo que a esse "qualquer coisa" levou, sem que não importe muito se esse culminar é ou não fundamental. Caso contrário ficaremos numa espécie de razão suficiente (principium rationis) leibniziana, sem poder pensar muito mais a partir dela. Não deixam de ser questões interessantes.
Do meu ponto de vista parece-me fundamental repetir a questão acima levantada que baralha um pouco estas partidas e chegadas e juntar ainda outra um tanto derivada da primeira: por que é que os artistas do Paleolítico Superior não trabalharam as figurações com base, também, nas imagens humanas, destas apenas executando uns esboços, uns esquemas, por vezes quase caricaturas? Por que é que essas imagens animais guardam qualquer coisa de humano, quando no entanto por vezes parecem esboçar qualquer coisa de humano (por exemplo, parecendo esboçar um sorriso ou nas linhas dos olhos, etc.), ou, quando muito, desempenham um estranho espelhismo (para usar uma expressão de B. Miranda) no próprio facto de precisamente estarem em vez de humanos, a saber, espelharem-nos - com a sua presença - pela sua (nossa) ausência?

Noutra parte interessante do filme B. Miranda fala da imagem, das imagens no cristianismo e do seu aspecto centralizador - e de controlo - na iconologia e na economia do ícone até ao séc. XIX, onde o ícone de Cristo e os santos (Flaubert, La Tentation de saint Antoine), seus "duplos" têm um papel catalizador relativamente à profusão do grotesco, do imaginário das tentações (lascívia, sedução, vontade de vida, etc.), sendo que aquele centramento não podia passar sem este descentramento ...
As novas tecnologias aliadas às ciências estão implicadas em toda uma série de questões que complexificam ainda mais estes e outros problemas.
Um livro que Moisés de Lemos Martins me ofereceu há uns dias irá com certeza esclarecer-me nalguns pontos: Crise no Castelo da Cultura, das estrelas para os ecrãs.
"Poderá haver dúvidas de que boa parte do pensamento se faz numa relação à técnica em geral, e aos media em particular?" Bragança de Miranda, Traços, Ensaios de crítica da cultura, Lisboa, Vega, 1998, p.14.

f) "São coisas que dantes só os artistas faziam e agora qualquer pessoa com uma maquinazinha barata" (F. Belo). Essa afirmação da maquinazinha parece-me interessante. Mais ainda quando constatamos que muitas vezes já se trabalha mais 'para a fotografia' dessas coisas, como se costuma dizer. Ou então para os seus espaços envolventes. Claro que isto tem a ver com novas concepções de arte (novos conceitos - por exemplo, existe a noção 'arte conceptual'). Também o que se chama instalação - que já fiz - conta para isso. O próprio readymade (objecto terminado, acabado, dado ...) contribuiu originariamente para estas novas dimensões da arte, e bem. Só que depois, corre-se o risco de grande parte destas criações actuais passarem a contar com essa facilidade, precisamente, do já dado, já terminado, já feito... Por vezes quando vou a museus contemporâneos, fascino-me a observar as estruturas arquitectónicas, no exterior e no interior. Talvez tanto ou mais do que as obras plásticas que estão neles. Sem dúvida que isto é um dos sinais de como a visão da arte mudou. Desfruto dos espaços, das atmosferas, da respiração arquitectónica. Mas é que por outro lado são as próprias obras de arte plásticas, etc. que coabitam com o espaço circundante.
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Eis que hoje, há uma outra reduplicação total das coisas, ou por outra, quase total. Pois 'total' implica o 'quase', este, por sua vez, comportando, por um lado, o 'excesso' (o 'a mais', a 'sobra') e, por outro, o defeito (o 'a menos', 'o que falta'). Não se trata portanto, propriamente de uma reduplicação, ou a sê-lo, é antes a sua desconstrução. É que o efeito espectral do jogo das margens do excesso e do defeito, adquire um estatuto estrutural desconstruindo a simetria, quer de duplicidade (duplicação) quer de dupla-duplicidade (reduplicação). Mas também de par e de duplo respectivamente. Aqui talvez 'as séries' de que fala Deleuze possam ajudar no esclarecimento do que nos propomos. Não deixa de haver um reforço análogo à duplicação e à reduplicação. O facto de tudo, ou melhor, de quase tudo (presque tout, como diria Vladimir Jankélévitch) estar classificado ('classe', do grego taxis), catalogado (cata-logos, sendo que as duas partículas desta palavra composta reenviam para terminologias filosóficas do 'grego') contribui para este estado de coisas. Demos somente o exemplo que o nosso código genético, genoma humano, foi finalmente mapeado, quer dizer, por outras palavras, trazido à luz. Eis como o humano conhece o humano conhecendo o humano através. Por outro lado, alta definição, alta resolução, etc. Esta reafirmação, este reforço do logos, ou, se quisermos, pela "logo-tecnia" tal como lhe chama Lyotard, estrutura, do nosso ponto de vista, como que uma estranha negação. Estranha negação, precisamente por efeito reforçado, na diferença, de uma nova dupla afirmação (a título provisório chamamos-lhe 'dupla'). Se pensarmos e compreendermos melhor estes acontecimentos, eles não poderão reverter a favor de novas condições de possibilidade para a partir de agora pensar sem a limitação das grandes oposições tradicionais da metafísica sem que, todavia, nesse mesmo processo estas ainda se pensem, contudo já de outro modo, diferidamente? Não terá a différance de Derrida uma palavra a dizer neste contexto? Levinas, algures no seu Autrement qu'être ou au-delà de l'essence, escreve, deslocando-se da máxima shakespeareana, não para se opor, outrossim para abrir outro jogo do pensar: "Ser ou não ser não é propriamente a questão."


Luís de Barreiros Tavares 11/06/2012

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Links para Thich Nhat Hanh:

http://www.youtube.com/watch?v=FoVuPTqj7gk






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