domingo, 10 de dezembro de 2017

Uma recensão de sobre o livro "Amadeo de Souza-Cardoso -- A Força da Pintura", por Renato Epifânio | publicada no jornal semanal O Diabo (05//12/2017)

Amadeo de Souza-Cardoso: a Força da Pintura


 
Decerto, uma das grandes questões que se levantam na apreciação de qualquer obra de arte é a inevitável dessintonia entre o olhar do seu criador e de quem aprecia a obra. Como se refere neste livro de Luís de Barreiros Tavares (Amadeu de Souza-Cardoso: a Força da Pintura, Edição MIL, 2017), citando-se Paul Klee: “Será que um quadro nasce de um gesto único? Não, constrói-se peça por peça, tal como uma casa. E o observador consegue apreender o quadro com um único olhar? (Muitas vezes sim, infelizmente.)” (p. 71).

No caso da obra plástica de Amadeo de Souza-Cardoso (1887-1918), essa dificuldade parece aumentar, desde logo pela própria posição do criador, auto-proclamadamente fora de qualquer escola ou corrente que pudesse, de alguma forma, orientar o nosso olhar: “Eu não sigo escola alguma. As escolas morreram. Nós, os novos, só procuramos a originalidade. Sou impressionista, cubista, futurista, abstraccionista? De tudo um pouco. Mas nada disso forma uma escola.” (p. 40).

Se há, porém, algo que transparece na sua obra é a força de um carácter, de um temperamento – como igualmente se refere neste livro, dando-se voz ao próprio Amadeo: “Ninguém deixa de fazer uma obra de arte intensa por falta de técnica mas por falta de outra coisa a que se chama temperamento. Enfim, para mim os tais artistas de técnica acabaram” (p. 68). Amadeo parecia estar em guerra permanente com o mundo – no livro, alguém refere mesmo que ele se havia preparado para uma certa exposição “como quem se prepara para a guerra” (p. 57). Daí, também, a alusão a uma permanente insatisfação: “Permanentemente insatisfeito; insatisfeito entre Manhufe e Paris […]; só está bem onde não está” (p. 29).

Esse assumido desprezo pelos “artistas da técnica” tê-lo-á levado a adoptar, pelo menos nalguns casos, uma “técnica propositadamente rude e tosca” (p. 56), como escreveu o autor deste muito interessante livro, Luís de Barreiros Tavares. Poder-se-á, a este respeito, estabelecer uma ponte entre Amadeo de Souza-Cardoso e o seu conterrâneo Teixeira de Pascoaes (1887-1952), pelo menos na visão do seu mais insigne hermeneuta - falamos de José Marinho (1904-1975) -, bem expressa no livro postumamente publicado Teixeira de Pascoaes, Poeta das Origens e da Saudade(“Obras de José Marinho”, vol. VI, INCM, 2005).

Nesta sua obra, com efeito, José Marinho valorizou a poesia de Teixeira de Pascoaes por ser “autenticamente original” – como ressalvou, “no sentido mais puro, como Leonardo Coimbra assinalou: original porque vem da origem” (p. 243; cf., igualmente, ibid., pp. 289 e 398) –, não por ser “artista”. Muito pelo contrário – chegou a qualificá-la como “a poesia menos ‘artista’, a menos latina e ladina, a menos francesa” (ibid., p. 249). Algo que, de resto, já havia acontecido em relação a outro grande poeta: Guerra Junqueiro (1850-1923), igualmente por José Marinho considerado como “original” e “pouco, ou nada, artista” (cf. “Obras de José Marinho”, vol. V, INCM, 2003, p. 558). Em suma, na arte como na vida, o que mais importa é a força do carácter, do temperamento.

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