sábado, 4 de fevereiro de 2017

António Lobo Antunes, Sôbolos rios que vão | “Antoninho” […] “ecrã” […] “derivado à hérnia” […] etc.

António Lobo Antunes, Sôbolos rios que vão

“Antoninho” […] “ecrã” […] “derivado à hérnia” […] “pingo no sapato” […] “estou a gostar imenso do filme”… etc.

extracto:

“[…]

– Antoninho

Dado que nada acontecera, o senhor vigário na cadeira da latada, a carroça do Virgílio longe, o pingo no sapato

– Não aconteceu nada amigo

Cada órgão a escrever o próprio nome no ecrã sem sobressaltos nem pressas, o enfermeiro

– Ainda cá estamos amigo

e ainda cá estamos de facto mas porquê o roupão velho se te faço companhia, tu a hesitares com a prega na testa de quem luta com os restos da noite, os pés descalços comoviam-me, o dedo pequenino vermelho e os restantes brancos, um pedaço de rótulo preso ao calcanhar e não notavas o rótulo, a mão coçava a nuca de cotovelo erguido, lençóis na corda da marquise e um alguidar de plástico onde uma blusa de molho e sinto-me, sentia-me, digo sentia-me porque as fraldas do hospital sujas, hão-de puxar-me as pernas para cima, limpar-me e apesar disso tu comigo, nós no sofá depois do almoço, tu com duas almofadas derivado à hérnia e eu sem almofada alguma e talvez uma hérnia também ou seja uma espécie de moinha, gosto que chova na janela do hospital, gosto que chova na marquise enquanto nós de televisão ligada sem necessitarmos de palavras, a tua mão, em lugar da nuca, no meu joelho e que diferença entre a mão e a nuca e a mão no joelho, a calça a tornar-se pele e é a minha pele, não o tecido, que afagas,  de longe em longe a cabeça no meu ombro, mais de longe em longe um beijo, inclino a cabeça para um segundo beijo e a boca distante

– Estás a gostar do filme?

eu que não reparo no filme

– Imenso

e não posso reparar no filme dado que me esfregam as nádegas, não um homem, uma enfermeira a humilhar-me

– Falta pouco

enxugando-me as intimidades numa eficiência rápida, não intimidade aliás, trapos que tombam numa moleza atroz, estou a gostar imenso do filme garanto, apenas me entristece um bocadinho, não te inquietes que não me entristece muito, apenas me entristece um bocadinho sem importância, e não quero aborrecer-te com isto, um bocadinho sem importância, a sério, não tornar a ver-te.

[…]”

António Lobo Antunes, Sôbolos rios que vão, Lisboa, D. Quixote, 2010, p. 96-97

transcrito hoje…

Este livro tem muito que ver com uma séria experiência de internamento do autor...


O título “Sôbolos rios que vão” é um verso de um longo poema de Luís Vaz de Camões (Babel e Sião) 



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