sábado, 19 de julho de 2014

Influências e leituras – Fernando Pessoa, Gilles Deleuze, José Gil – Um esboço






Influências e leituras – Fernando Pessoa, Gilles Deleuze, José Gil – Um esboço*

      

“O movimento Sensacionista português […] tem um precursor inconsciente. Esboçou-o levemente, sem querer, Cesário Verde.” 
Fernando Pessoa, Páginas sobre Literatura e Estética

 
Optamos neste breve estudo por tentar analisar, em esboço, a relação de influências e leituras entre Fernando Pessoa, Gilles Deleuze e José Gil. Gostaríamos de começar por citar a nota de rodapé ‘63’ do capítulo "O Analisador de Sensações" em Fernando Pessoa ou a Metafísica das Sensações, publicado por J.Gil  em 1988. Nesta nota, o autor confirma a influência decisiva de Deleuze no seu livro: “É tempo de assinalar tudo o que este trabalho deve à obra de G. Deleuze. Nenhum outro pensamento contribui tanto para esclarecer a compreensão de Fernando Pessoa. Ao ponto de que, tendo aqui esta leitura de Pessoa feito surgir, uns após outros, os temas deleuzianos – tais como o devir-outro, as multiplicidades, o plano de consistência, o corpo-sem-orgãos, o nomadismo, as intensidades, a profundidade e a superfície – imbricados segundo a lógica descrita em Mille Plateaux ou em Francis Bacon, formou-se uma convicção inabalável no Autor: Fernando Pessoa leu Deleuze! Apesar de não se ter verificado o inverso, a leitura das obras do primeiro limitava-se, por vezes, simplesmente a confirmar a pertinência do pensamento do segundo: é, todavia, verdade que a um faltavam os conceitos que o outro possui.” Até aqui prevalece a tese (1.ª) de que o contributo dos conceitos de G. Deleuze são determinantes para a leitura da poética pessoana. Mas a nota não termina e prossegue com uma inflexão: “Tendo esta surpresa ainda por extinguir feito nascer no Autor o desgosto de não ser um “verdadeiro deleuziano”, resta a esperança de que alguém dessa raça (mas será que ela existe?) empreenda a análise da obra de Pessoa – o que contribuirá, sem dúvida, para o aprofundar do pensamento de Deleuze.” Eis que neste último passo a importância da obra de F. Pessoa para a leitura de Deleuze, 2.ª tese, parece ganhar alguns contornos. Todavia, o que poderemos concluir desta nota ‘63’ é que há uma relevância mais acentuada quanto à 1.ª tese, a da importância da leitura de Pessoa à luz da de Deleuze, enquanto apenas se ventila a 2.ª tese: o empreendimento da análise da obra de Pessoa garantindo o aprofundamento do pensamento de Deleuze.

Ora, no início de Diferença e Negação na Poesia de Fernando Pessoa (1999) de Gil, 11 anos mais tarde, na Nota introdutória:  intitulada “Pessoa com Deleuze”, é indicado que o seu ponto de partida poderia ser o de uma clarificação da poética pessoana à luz dos conceitos de Deleuze, na linha da primeira tese que assinalámos acima: “Não se tratava de comparar Pessoa e Deleuze, mas de trazer para o comentário do texto pessoano instrumentos conceptuais deleuzianos, que considero os mais apropriados para tal tarefa. O que legitima esse transporte de conceitos é a afinidade extraordinária entre os dois pensamentos: muitas vezes, o que aparece sob o modo implícito em Pessoa, ganha contornos explícitos em Deleuze, o que era simples noção, fruto de uma rápida anotação no Livro do Desassossego, por exemplo, torna-se conceito claro em Mille Plateaux.[1]” (Diferença e Negação, p.9). Tratar-se-ia, portanto, de uma certa tendência de matriz conceptual, seguindo os conceitos deleuzianos enquanto condição de possibilidade de análise e comentário do texto pessoano na linha, ainda, da prevalência da primeira tese em Fernando Pessoa ou a Metafísica das Sensações, onde a influência da obra de Deleuze neste livro era reconhecida pelo seu autor. Assim, o pensamento de Deleuze viria clarificar a poética de Pessoa. Mas acontece que, numas linhas mais à frente, na página seguinte em Diferença e Negação, Gil opera uma inflexão considerando que se pode falar de uma influência de Pessoa em Deleuze: “Mas não só Deleuze ilumina Pessoa. Não foi por acaso que Deleuze, em O que É a Filosofia?, publicado depois da vaga pessoana ter começado a expandir-se em França, chamou “heterónimos” às suas “personagens conceptuais”. Poderíamos acrescentar que a estética que apresenta no mesmo livro mostra traços da influência de Pessoa” (p.10). Isto é, já não há propriamente uma prevalência da 1.ª tese relativamente à 2.ª, mas antes um reforço mais assinalável desta última. Sobre as “personagens conceptuais” optamos, de passagem, por ler este passo de Deleuze em O que é a Filosofia?: “Pode acontecer que a personagem conceptual só bastante raramente, ou por alusão, apareça por si mesma. No entanto, ela está lá; e mesmo inominada, subterrânea, tem de ser reconstituída pelo leitor. Por vezes, quando aparece, tem um nome próprio: Sócrates é a principal personagem conceptual do platonismo. Muitos filósofos escreveram diálogos, mas é arriscado confundir as personagens de diálogo com as personagens conceptuais.” Mas voltemos aos traços em Deleuze com influência de Pessoa segundo o filósofo português. Eis que este procede a uma inversão ou reversão decisiva logo a seguir, na página11: “Tudo isto legitima a operação inversa daquela que acima evocámos: não já iluminar o implícito ou vago, ou incrustado na escrita poética, por conceitos deleuzianos que lhes correspondem, mas ao contrário, trazer à explicitação minuciosa das descrições pessoanas (do Livro, da poesia, ou mesmo dos textos de teoria estética) processos que Deleuze não deixou bem claros – sem dúvida porque não relevam já de conceitos, mas de experimentações corporais, sensoriais (e intelectuais) obscuras. Refiro-me, sobretudo, à questão fundamental da 2ª filosofia de Deleuze: como construir um corpo-sem-orgãos?”. O “corpo-sem-orgãos” é uma noção que Deleuze conceptualizou até certo ponto partindo do texto de Artaud Pour en finir avec le jugement de dieu. O que é o corpo-sem-orgãos? Preferimos citar Deleuze em Francis Bacon, Lógica da Sensação: “O corpo é o corpo. Ele é só isso e não tem necessidade de órgãos. […] O corpo-sem-orgãos opõe-se menos aos órgãos que a esta organização de órgãos que se chama organismo. É um corpo intenso, intensivo. É percorrido por uma onda que traça no corpo níveis ou limiares […] O corpo não tem portanto órgãos, mas limiares ou níveis.” A temática do corpo-sem-orgãos está em Deleuze e Guattari relacionada com a esquizofrenia, partindo precisamente do caso Artaud, mas também se encontra relacionada com o masoquismo e o efeito de drogas…[2]

Voltando às leituras e influências Pessoa / Deleuze / Gil. Digamos, portanto, que Gil reclama para si, legitimamente, a tese e as argumentações inovadoras que estabelecem um certo paralelismo de Pessoa com Deleuze ("afinidade extraordinária entre os dois pensamentos"). Citemos de novo dois passos, um logo no início da nota de rodapé 63: “Nenhum outro pensamento [o de Deleuze] contribui tanto para esclarecer a compreensão de Fernando Pessoa.” E um outro no final da mesma nota: “resta a esperança de que alguém dessa raça [um verdadeiro deleuziano] (mas será que ela existe?) empreenda a análise da obra de Pessoa – o que contribuirá, sem dúvida, para o aprofundar do pensamento de Deleuze.” Por outras palavras, pela sua leitura de Pessoa, e tendo também lido Deleuze, Gil vai permitir que, retroactivamente, no contraponto que faz de Pessoa com Deleuze, e na leitura que faz deste à luz de Pessoa, este, por seu turno leia Deleuze. Quer dizer, a obra de Pessoa abre caminho para uma leitura da obra do filósofo francês; é neste sentido que se pode dizer que o poeta leu o filósofo : "(...) trazer à explicitação minuciosa das descrições pessoanas (do Livro, da poesia, ou mesmo dos textos de teoria estética) processos que Deleuze não deixou bem claros – sem dúvida porque não relevam já de conceitos, mas de experimentações corporais, sensoriais (e intelectuais) obscuras." Não há dúvida que Gil abre este caminho de leitura, principalmente em Diferença e Negação. Esta parece-nos ser uma possível argumentação para aquela enigmática afirmação de Gil: “Fernando Pessoa leu Deleuze!” Poder-se-á pensar aqui em intertextualidade? 
Alain Badiou, no seu texto “Uma tarefa filosófica: ser contemporâneo de Pessoa”, apresentado no colóquio de Cerisy em 1997 e constando no seu livro Pequeno Manual de Inestética (1998), escreve: “Digamos que José Gil se dedicou, não exactamente a inventar filosofemas que pudessem acolher e suportar a obra de Pessoa, mas pelo menos a verificar uma hipótese: a compatibilidade entre essa obra – mais particularmente a de Campos – e determinadas proposições filosóficas de Deleuze.” (p.57). Mas o que reforça o pensamento próprio de Gil é precisamente o facto de ele ter sido o primeiro a encontrar esta compatibilidade, "afinidade" e a sua complexidade segundo o que tentámos analisar acima. Todavia, não podemos omitir uma coisa: Gil não deixa de manter frequentemente a leitura de Pessoa segundo a grelha conceptual de Deleuze. Isso pôde verificar-se na sua interessante conferência “Questões Pessoanas” no Colóquio “O dia Triunfal de Fernando Pessoa” na Gulbenkian este ano (2014), que tivemos o gosto registar em vídeo com o acordo do próprio[3]. Apesar de, do nosso ponto de vista, considerarmos José Gil um pensador a ter decisivamente em conta, por vezes aparece-nos esta dificuldade e aporia: Gil entre Pessoa e Deleuze. Porquê só "Pessoa com Deleuze", para empregar o título da nota introdutória de Diferença e Negação? Evidentemente que falamos neste contexto, pois o  seu pensamento não se limita ao estudo destes autores. Se há algo de novo abrindo um campo de pensamento na proposta de Gil quanto a uma leitura recíproca Pessoa / Deleuze num leque alargado de análise, ontológico, filosófico, fenomenológico, estético, etc., todavia, julgamos fundamental poder ler Pessoa independentemente de Deleuze. É certo que nos últimos livros de Gil sobre Pessoa a leitura se deixa marcar menos por Deleuze; pelo menos o contraponto dos dois não é tão assinalado (vj. O Devir-Eu de Fernando Pessoa (2010) e Cansaço, Tédio, Desassossego (2013)). Certo também que em O Espaço Interior, de 1993, a abordagem deleuziana não se faz notar, pelo menos em termos de referências. No entanto, neste livro, não se faz o contraponto com nenhum outro autor em particular. Tão-pouco nos outros mais recentes mencionados anteriormente, salvo uma ou outra referência pontual ao filósofo francês e a outros autores (Kant, Baumgarten, Merleau-Ponty, Husserl, Leibniz, Artaud...).
Curiosamente, O Espaço Interior encontra-se sensivelmente a igual distância cronológica dos dois aqui analisados (1988 e 1999). Entre um e outro. O facto de o pensamento de Deleuze parecer estar ausente, ou pelo menos não tão explícito em O Espaço Interior, confirma a possibilidade aberta por Gil em pensar também Pessoa sem Deleuze. Algo de semelhante sucede com os dois últimos livros sobre o poeta, como já referimos, embora mantenham leituras com algumas abordagens conceptuais deleuzianas como é o caso, por exemplo, do Devir-Eu de Fernando Pessoa onde se analisa parte do último capítulo "O Inconsciente da Sensação na Passagem das Horas" do ponto de vista do Corpo-sem-orgãos originariamente na linha de Artaud. Relevam assim duas teses quanto às reflexões de Gil sobre Pessoa. 1.ª : Pessoa por Pessoa; 2.ª : Pessoa a par de Deleuze e reciprocamente. Contudo, com Diferença e Negação, opera-se uma como que viragem conforme assinalámos antes: A reflexão sobre Deleuze passa a carecer mais significativamente do pensamento e da poética Sensacionista de Pessoa. A prevalência do poeta português no trabalho de pensamento do filósofo português parece emergir, sendo que os dois últimos livros, dispensam um tanto o pensamento de Deleuze e debruçam-se mais singularmente sobre Pessoa. No entanto, Gil acaba por recorrer de novo aos conceitos deleuzianos. Prova disso é a conferência que referimos neste estudo. Daí a oscilação e o correlativo contraponto Pessoa / Deleuze. Há pois na obra de Gil a importância decisiva de ler Pessoa à luz de Deleuze e vice-versa. Um singular diálogo entre poesia e filosofia onde se inscreve um trabalho de pensamento a partir do poeta Fernando Pessoa e do filósofo Gilles Deleuze: "(...) a afinidade extraordinária entre os dois pensamentos (...)" (Diderença e Negação).
Na nossa perspectiva, importa, contudo, fazer um contraponto mais aturado entre Pessoa e outros autores...

Gostaríamos de concluir dizendo apenas que Pessoa foi acima de tudo o inspirador decisivo deste nosso breve texto que pede ainda muito trabalho e leitura. Mas, no que nos toca, e no caso de termos de escolher, preferiríamos, de longe, ser pessoanos a deleuzianos.




[1] Aqui, J. Gil fala da “extraordinária afinidade entre os dois pensamentos”. A questão dos dois pensamentos, em Pessoa e Deleuze, irá complexificar-se à medida que as leituras recíprocas de um pelo outro se irão aprofundar segundo algumas teses, inflexões e reversões propostas por J. Gil. Iremos mostrá-lo mais adiante.
[2] Corpo-sem-orgãos (CsO) seria a forma de dispensar o corpo como “organização de órgãos” (organismo). Por isso, segundo Deleuze, o CsO opõe-se menos ao corpo do que ao que se designa por organismo (“esta organização de órgãos que se chama organismo”). Ao mesmo tempo os órgãos designados enquanto tais, e cada um de cada vez enquanto tal, deixariam de ser considerados separadamente enquanto subentendidos na designação ‘corpo’ que, supostamente, os suporia. O corpo já seria fundamentalmente CsO: “O corpo é o corpo. Ele é só isso e não tem necessidade de órgãos.” Tópico a retrabalhar e desenvolver noutro lugar.
[3] Vj. vídeo na nossa página no Youtube: http://youtu.be/aJIIZQ-BZDQ

* Este texto resulta de uma breve troca de impressões com o filósofo e psicanalista José Martinho.

Imagem: Retrato de Fernando Pessoa - desenho pincel e tinta da china em papel Canson Ingres Vidalon (2010), por Luís de Barreiros Tavares. Colecção do artista.

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Cesário Verde

3 comentários:

  1. Levado às suas últimas consequências, o teu argumento pode levar a um pensamento deste tipo, deixando um pouco para trás o debate sobre a ligação entre Pessoa e Deleuze: Fernando Pessoa é um grande filósofo, um pensador ecosófico "avant la lettre". Faria, por isso, todo o sentido considerar Pessoa como um dos grandes filósofos da crise da modernidade. Fernando Pessoa como um dos principais fundadores da Ecosofia, muito antes de Bateson, Naess, Guattari, Morin, Maffesoli, etc.

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  2. Sim, talvez tenhas razão quanto a essa vertente ecosófica de Pessoa como pensador. Pessoa disseminou a casa (oikos – eco) dos múltiplos (heteronímia) pelo mundo fora. Aliás, a célebre arca «vogou», até aos nossos dias, sem sair de Lisboa, ecologica e filosoficamente digamos, de Tóquio a Nova York…
    Para não ir mais longe, e não falando nesse duplo movimento aberto, num âmbito ainda impensado da crise da modernidade: o «nem/nem» («Pessoa nem platónico nem antiplatónico») proposto por Alain Badiou no texto referido. Este, todavia platónico segundo alguns (p.ex., Didi-Huberman)…
    Dir-se-ia que, em Pessoa, quando estamos nele já estamos noutro, e quando estamos nestoutro já estamos noutroutro. Não será por isso que ele fala no «outrar-se»? Importa questionar a identidade no contemporâneo bem como o princípio de identidade (vide também Badiou, op.cit.).
    Eduardo Lourenço é fulgurante e incisivo no final do vídeo praticamente esquecido (Bouillon de Culture com Bernard Pivot, no Palácio dos Marqueses de Fronteira, 1998) que fui buscar aos arquivos INA.fr, via Net, e que se encontra publicado na minha página do Youtube: «[…] ele [Pessoa] é um caso […] alguém que pôs em cena essa «doença», essa condição especificamente moderna da perda de identidade […] esse sentimento que transportou (trouxe) os homens durante séculos, o de que somos sujeitos, que somos a forma do mundo […] [Pessoa] pertence a essa categoria de alguém que descobre, não que é ninguém, mas que é uma multiplicidade que não se pode verdadeiramente reunir […] o importante é que ele mostra, por aí, que não é o seu caso [Pessoa], é verdadeiramente o caso da modernidade e do homem moderno, que ele é múltiplo!» (vide: http://youtu.be/ioF7X_Ki4PQ ).

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