terça-feira, 7 de agosto de 2012

Tópicos filosóficos e outros dispersos num bloco de notas (2012)




Com algumas citações acrescentadas.

Advertência: alguns destes apontamentos mais ou menos livres requerem revisões, aprofundamentos e rectificações.

“Se o nosso espírito pudesse compreender a eternidade ou o infinito, saberíamos tudo. Até podermos entender esse facto, não podemos saber nada.” Fernando Pessoa

1.

Xρὴ τὸ λέγειν τε νοεῖν τ’ ἐὁν ἔμμεναι · ἔστι γἀρ εἶναι
Parménides, fr.6

Krê to legein te noein t’eon emenai; estin gar einai. Parménides, fr.6
É na repetição da nomeação (nomeação que já de si é, de alguma maneira, repetição) ” o ser é ser” (Parménides : pois lhe é possível ser – estin gar einai) que, nessa inscrição, justamente, se começa a operar a abstracção. Nesta iteração, já com um índice de sensível do dizer (legein) e com índice de inteligível do pensar (noein), se opera o começo da abstracção e esboça o que se enunciará mais tarde "ser enquanto ser", o to on hê on de Aristóteles.
"Dizer que o Ser «é» sem mais comentário, é representá-lo demasiado facilmente como um «ente» segundo o modo de o ente conhecido que, como causa, produz e, como efeito, é produzido. E no entanto Parménides diz já na primeira idade do pensamento: ἔστι γἀρ εἶναι: «é com efeito ser». Nesta fala esconde-se o mistério original para todo o pensamento." (...) "ἔστι γἀρ εἶναι [L'estin gar einai] de Parménides não é hoje ainda pensado." (Heidegger, Carta sobre humanismo) "Estin gar einai" (É, com efeito, ser)
A conjunção 'gar' ( γἀρ: com efeito, pois...) reforça o 'ser'.
começa a enunciar-se, a dizer-se o dizer - legein
“O mesmo, pois, tanto é apreender (pensar) como também ser. (tò gàr autò noein estín te kaí einai)
Pois o mesmo é ser e pensar._
“É necessário dizer e pensar que o ente é; é, pois, que é.” Parménides
Esta afirmação traduz-se já na constatação de uma constatação.
O “ser” de Parménides é o desdobramento do “devir-fluir” (Panta rei) de Heraclito.
O “é” [já] é “que é”, portanto, [já] não é, pois [já] é outro “é”. Mas, se “não é”, [já] é que “não é”, portanto, [já] é, pois [já] é outro “não é" que não aquele.
2.
Não se trata já de 'transparência' mas de trans-aparência. “aparência instantaneamente transmitida à distância.” Paul Virilio
Por isso é um espaço num/de um espaço. Um tempo num/de um tempo. Daí uma dupla distância. Donde, um presente desdobrado, um mundo desdobrado. O passado é sempre-já aí, como que des-dobrando-se em presente des-dobrado. Daí o risco o risco de ilusão de presença pela hiper-presença (vj. hiperrealidade, Baudrillard) da instantaneidade da tele-presença (Virilio; tela-presença; tele: distância, fim). É a duplicação da teoria platónica das ideias?
É por isso que se pode dizer paradoxalmente que o que já foi é agora, mas não só por reminiscência (anamnese) segundo a doutrina platónica. Pois é mediante a tele-presença que o passado, tão próximo, tão instantâneo, tão presente, é agora, e vice-versa (o presente, de tão presente, é passado). Donde a correria louca como se se estivesse sempre atrasado! mas correndo para estar sempre actual. Embora ambos discerníveis - ‘presente’ e ‘passado’ - enquanto se designam como tais. Discerníveis, mas só em designação, só em denominação, “só de nome”.
Só poderemos percepcionar como estamos-somos aqui compreendendo a maneira como de algum modo já não estamos-somos aqui na medida precisamente em que afinal estamos-somos aqui mas já de outro modo. As coisas fazem-se ver. E fazem-se fazer. Desdobramento, re-duplicação platónica? Mas só aceitaremos esse desdobramento, essa re-duplicação enquanto preliminar para a compreensão de outra dimensão e forma do estado de coisas.
Mas é preciso não cair numa simetria dialéctica.
Heidegger denuncia o ente como ser, na determinação da metafísica e da ontoteologia ocidentais, enquanto presente da presença. Isso encontra-se já na presente do ser como Ideia em Platão, no plano dos inteligíveis (noeta), presente que, a par da anamnese platónica, não deixa de já estar, presente, a par por seu turno, dos sensíveis (aistheta), presentes também.
Ora, importa pensar hoje a hiperpresença do real, do simulacral que vem a par de uma espécie de realização do real, e principalmente o efeito de real das novas tecnologias e dos media enquanto qualquer coisa como realização às avessas do inteligível reificado nas realizações e nos objectos técnicos. Isto não é uma crítica da técnica, mas mais um apelo, entre muitos hoje, para repensar estas questões complexas.
Veja-se Heidegger, Sein und Zeit e Kant e o problema da metafísica, questões também analisadas no texto "Ousia e grammê" em Derrida, Margens da Filosofia.
3.
Poderíamos aqui falar do simulacro em Platão (veja-se o anexo" Platon et le simulacre" em Deleuze, Logique du sens ), no jogo do campo da khôra (lugar, zona - Platão, Sofista; Derrida, Khôra) e do notho (raciocínio bastardo, híbrido - Platão, Sofista). O que é que faz o estar e não-estar, o ser e o não-ser do simulacro? Se com o advento do logos e do ser (Heraclito e Parménides respectivamente) se abre uma troca de tempos de ser e não-ser anteriores (no mito, poesia, épica e teatro) para outro momento de ser e não-ser, o que é que acontece? Importa repensar como se opera o ser como não-ser e reciprocamente, questão levantada no "parricídio" de Parménides por Platão no Sofista.
O gesto parricida é sempre um movimento para um antes e para um depois...
A inversão do platonismo é o que está a acontecer com a técnica. Não há problema com isso. Só que a constatação dessa inversão é que é uma estranha duplicação.
Algo entretanto já se marcou pela linguagem quando se supõe que é nesse momento que algo se está a marcar por ela.
Há um movimento que é traído pelo pensamento.
4.
A matéria das imagens.
5. Notas sobre o Zazen e postura-meditação sentada. Com algum risco de especulação pouco dada ao Zen e Zazen, convenhamos. Simplesmente para ventilar alguma coisa do sentido de Zazen.
O próprio corpo que, enquanto postura sentada, auto-táctil, auto-háptico, se sente no estar sentado, captando o espaço enquanto envolvente. Este, o espaço, na coabitação com o corpo, permite ao corpo sentir-se e coabitar-se. Nesta co-espacialidade, digamos, o corpo começa a ver-se, ou antes, a visibilizar-se, na sua auto-presença no e com o mundo, enquanto mundo (mas sempre na condição de possibilidade para qualquer corpo - há também no Zen uma relação ao outro). A visibilizar-se e não propriamente a visualizar-se. Porquê? Porque não é necessária a visão. Mas uma espécie de visão háptica, qualquer coisa como um reflexo háptico.
5.
Por vezes temem-se certas palavras. Mas esse temor traduzirá porventura a inscrição do sentimento que elas suscitam previamente em nós sem darmos conta?
6.
Quando dizemos que dois pólos não estão separados, ainda podem estar mais na medida em que continuamos a falar deles cada um enquanto tal, num outro plano, mas sem dar por isso.
Quebra-cabeças?
Se há universal no singular e vice-versa (1ª troca), no momento em que o dizemos, em que se enuncia tal, então trocam-se os momentos. Ou seja, opera-se uma troca no momento da troca.
a. Pretender que se unem os dois pólos de uma bipolaridade é estar ainda a separá-los enquanto são tomados como ‘dois’.
b. Mas, pretender que se separam os dois pólos de uma bipolaridade é estar ainda a uni-los enquanto são tomados também como dois (ao mesmo tempo, paralelos, um com o outro), igualando-os e confundindo-os de forma um pouco grosseira. Separam-se do todo, mas num primeiro grau.
c. Mas também se pode estar a pretender unir ou separar estas duas teses.
d. Separar é unir e unir é separar. Há um modo unido de separar e um modo separado de unir. Há um modo de unir ao separar e um modo de separar ao unir.
e. Outrossim, trata-se de separar mesmo, efectivamente, no sentido de separação radical que se traduz num reforço de sentido de separação (aqui pouco importa positividade ou negatividade; se bem que neutralidade adquira assim um cunho forte), para que, nessa separação, nesse gesto de separar do separar, se una já de outro modo, re-unindo e re-separando. Por isso, os critérios de separar e de unir não são o que mais importa. A não ser que sejam condições de possibilidade, veículos de compreensão deles mesmos na distância em que consiste o pensar enquanto movimento a dar-se.
7.
O trauma tem que ver com um como que « ficar do lado da fala do outro » (ficar do lado da fala do outro implica a questão do sujeito e do objecto e sua oposição). E desse modo ser-se antecipado pelo outro. Mas o mais crucial aqui é que a ordem cronológica inverte-se. No entanto, só depois é que se poderá ver (pensar, constatar) isso. Por conseguinte, poder-se-á dizer que o tempo cronológico surge precisamente, aí, nesse momento – intervalo – que é simultaneamente – quase – a sua negação.
8.
Uma escrita que assenta sobre ela mesma na sua indiferença, retumba e ressoa. Nessa indiferença ela retumba e ressoa.
9.
Chronos (Xρόνoς) é o ‘Tempo’ (que é um deus). Cronos (Κρόνoς) é o deus-tempo. É um deus, mas é também ‘tempo’.
Crono (Κρόνoς) é nome de um deus. É o nome de um deus titânico, filho de Urânus e pai de Zeus (deus-rei do olimpo). Não é o ‘Tempo’, embora derive, segundo alguns, de Chronos (Xρόνoς, ‘Tempo’). Parece-me uma observação importante. Freud em Traumdeutung faz abordagens a alguns destes pontos.
Mas Κρόνoς e Κρόνoς entrelaçam-se.
10.
Há um momento em que, à força do distanciamento, separação gradual, se dá a união, aproximação gradual. Há um momento de coincidência. Todavia, esse movimento, de transformação do próprio processo de distanciação e aproximação, desencadeia um ápice de que não nos damos conta, a menos que a posteriori. Daí o efeito de choque. Choque, portanto, não gradual. Choque da ordem do impensado e de um certo inconsciente desencadeado que vai inscrever-se por arrastamento no a vir. Por outras palavras, choque que se manifesta por si mesmo de um novo e outro modo - de um outro grau - que não aquele movimento de coincidência da aproximação e da distanciação. Como se se desse um choque enquanto efeito da coincidência da coincidência. A coincidentiae oppositorum de Nicolau de Cusa desdobra-se.
Ao deixar-se um momento e já se estar noutro momento, já se deixou este.11.

Quando você diz sempre que ‘é’, já (é) ‘foi’. Está a ser condicionado pelo passado, como se estivesse no presente, mas sem dar por tal. Mais ainda, está/é condicionado pelo futuro….. Mas condicionado pelas instâncias (extâses do tempo, numa linguagem heideggeriana) de modo estático. Só tentando compreender o(s) movimento(s) que marcam este estado de coisas é que se poderá transmutá-las e viver o tempo como temporalidade. Então o futuro será condição de temporalidade (Heidegger) mas sem esse condicionamento de “primeira mão”. Ou se quisermos, numa linguagem de Deleuze, compreenderemos o devir. Numa palavra: é preciso voltar à troca.
12.
Dar o primeiro lugar a uma coisa para dar o primeiro lugar a outra?
A paragem não é mais do que um movimento que se colou, num qualquer ponto ou outro, a outro movimento. O movimento prossegue.
13.
Os mais velhos olham os mais novos e vêem coisas que eles não vêem. Os mais novos acham-se nos presente e no tempo absolutos. Actualização. Os mais velhos vêem que eles, os mais jovens, não estão nesse presente e tempo, tal como eles, mais velhos agora, também não estavam vendo-se à distância como quando eram mais novos. No entanto é preciso que a distância etária seja significativa. Eis um exemplo de como o presente real pode mais não ser do que uma ilusão se não o metermos em jogo com a sua dissimulação. Aí, já a ilusão ganha um sentido novo. Não só a ilusão mas a utopia, e o próprio acto de simularmos, de imaginarmos, neste jogo, outros tempos na nossa vida presente, tempos passados ou futuros, em jogo também com o presente que, na sua ameaça de monotonia e rotina tende a devir ausente.
É a desfasagem temporal (imaginando-nos noutros tempos e desconstruindo os tempos que nos são impostos por certos mitos, modas e imaginários supostamente muito actuais) a condição de possibilidade de vivermos mais intensamente o presente. Vivendo o presente como hiperpresente é como se não o vivêssemos. Eis a advertência que Baudrillard faz quando fala por seu turno da hiperrealidade.
Recuando-se num imaginário do passado ou avançando-se num imaginário do futuro, faz com que se viva o presente a dobrar por ricochete.
Compreendendo a ambivalência a nós imanente do querer estar presente e do não querer estar presente em virtude do evitar a presença da vida parcialmente para não a contrastar intensamente com ausência da morte, importa viver essa ambivalência duplamente, constatando-a, e, por assim dizer compreendendo-a já duplamente. Desde modo creio que poderemos fazer face à vida com mais discernimento.
14.
“O tao oculto não tem nome”
Tao te king
15.
Consciência e constatação.
O processo gradual de operação da abstracção ocidental obedece numa primeira fase decisiva a um duplo movimento de fusão e cisão.
16.
X lembra Y. Quando se produz um nexo com uma imagem – como se ela significasse algo. Ou talvez antes: no sentido em que significa algo de carácter (um traço de carácter) que poderá reenviar para algo de psicológico e algo verbal (tal aparência significa tal traço de personalidade). Se nos limitarmos a esta leitura redutora, há (dá-se) um outro nexo da imagem (de X, p.ex.) com outra imagem (de Y). Quando na verdade, estamos a confundir aspectos que são próprios de cada um (X e Y). Como quando pensamos: esta cara lembra-me alguma coisa; e colo-lhe um significado. Por vezes é difícil sair dessas confusões. Esta confusões são problemas psicologistas, sem dúvida. Mas pensá-los mais vezes, talvez não tanto...

17.

Imaginamos dois pensadores que se pretendem opor-se nas suas teses, no seu pensar, acusando-se do mesmo. O que se passa aqui? Pensam o mesmo sem darem por isso? Ou pensam o diverso como sendo o mesmo e vice-versa? Pensam o diferente?
A e B acusando-se mutuamente do mesmo como se o mesmo se desdobrasse em A e B enquanto cada um o outro.
Como é possível que dois autores se “acusem” mutuamente do mesmo: X diz Y de Z e Z diz Y de X?
Como é possível que do ponto de vista de x, y esteja a pôr determinada questão materialmente, e do ponto de vista y, x esteja a pôr determinada questão materialmente?
18.
A palavra é sacrificial: mata e dá vida.
Na medida em que se põe um carácter sacrificial da linguagem, quando ela diz, algo se perde – nega – e algo se ganha – se afirma. Sacrificium.
Vem a calhar esta citação sem pensar aqui propriamente nas questões em causa : "Mais uma vez atribuem-se aquilo que eu denuncio, como se tivessem menos interesse em me criticarem ou em me discutirem do que se colocarem primeiro no meu lugar para o fazerem." (Jacques Derrida), Posições, Plátano, 1975, p.65
19.
A tarefa do pensamento é a de tentar compreender, pensando, o modo como o pensar se dá como fenómeno.
20.
É um pouco como isto: as coisas vão-se fazendo à medida que vão fazendo com que as coisas sejam feitas. À primeira, isto parece redundante. Mas de facto não é, pois não são só as mesmas coisas que estão aqui em jogo, mas outras. Isto não é inverter a máxima de Protágoras: "o homem é a medida de todas as coisas."

21.

Alguém diz: “o tempo passa.” O tempo passa? Não, o tempo não passa, pelo menos neste plano. É por isso que de súbito dizemos que “o tempo passa”, pois não demos durante um tempo por ele passar, e, quando damos, é como se ele não tivesse passado durante aquele tempo. Só damos a dado momento por que ele passou. Correndo o risco de passarmos a maior parte do tempo – ou pelo menos alguns períodos de tempo - sem vivermos, na intensidade devida, e da vida, o passar do tempo que, deste modo, já será outro passar, dando-se outro sentido do tempo.
Por outras palavras: alguém diz: “o tempo passa.” O tempo passa? Não, o tempo não passa, pelo menos neste plano. É por isso que de súbito dizemos que “o tempo passa”, pois não demos, durante um tempo, por ele passar. Neste outro plano de compreensão, já se pode dizer que o tempo passa. Deste modo, já podemos também viver o tempo, e, viver outro modo de dar pelo modo – passe a expressão – do tempo passar.
22.
Posso dizer o seguinte: na formulação formal da predicação proposicional é suposta uma inversão de A é A que subjaz a S é P. Isto comporta uma inversão, ou reversão no sentido em que um dos A, seja ele qual for (porque é o mesmo desdobrado), se converte potencialmente em S e o ou outro em P. donde, um antecedente e consequente. Mas se enuncio, quer dizer, ao enunciar esta reversão e esta ordem de antecedente e consequente, ou seja, pela constatação enunciativa, repito, reinverto, ou volto a reverter. Aliás, a proposição é a expressão verbal de um juízo, este como operação de pensamento.

23.
Pensei ter perdido o guarda-chuva. De súbito, tive uma ideia (imagem) de que não o tinha perdido. Pois visualizei-o num canto da cozinha conforme o tinha visto há uns momentos ou há umas horas. Fui lá, e lá estava. Memória de imagem e imagem de memória.
Memória e imagem.
24.
“O odor do corpo de uma pessoa é o próprio corpo que inspiramos pelo boca.” J.P.Sartre
Se a memória olfactiva se encontra associada à imagem (imagem de experiência passada) do corpo e não ao corpo em si – pois o que resta é imagem do corpo, então imagem e corpo estão associados. Ou antes, podem estar associados sem que se dê por isso, re- associando-os nessa inconsciência. Por isso podemos reagir a uma imagem como se inspirássemos o odor.
Mas também é físico.
Poderá corresponder a um apego à imagem e fazer da imagem uma ideia?
25.
A proposição: “Todos os homens são mortais”
Qualquer homem em particular pode dizer dos homens (de todos os homens) que são mortais. O que tem implícito – não sei se é o termo mais apropriado – que todos os homens (cada um e todos ao mesmo tempo) podem dizer, de todos os homens, que são mortais.
26.
Tauton d’esti noein te kai ouneken esti noema. Parménides, Fr.8 O que pode ser pensado é apenas (só) o pensamento que é.
27.
A co-memória.
28.
Como é que há uma conexão de uma expressão verbal com uma expressão corporal? Quer dizer, penso verbalmente algo, algo enunciável mentalmente (em silêncio, sem voz exterior), e isso pode, por exemplo, provocar em mim um leve trejeito, uma careta. Há aqui um nexo do verbal com o corporal?
Porque é que há um nexo entre uma expressão verbal e uma expressão facial (corporal)?
29.
Sobre a inversão do platonismo (Nietzsche). O problema é que a inversão do platonismo está hoje mais do que realizada. E com essa inversão realizada, ele duplicou-se. Todavia, isto não significa que se tenha reforçado. Pois, paradoxalmente este acontecimento, faz com que estejamos mais do que nunca, por um lado, no momento platónico realizado, consumado, e por outro, o não estejamos. O momento intervalar entre estes dois pólos de ser e/ou não um momento platónico, desfralda-se, digamos assim. O por entre como que transborda e nas margens também. O “entre” duplica-se. Como poderemos interpretar este processo? Admitindo que um fenómeno literal de jogo de luz e de sombra se marca neste regime.O simulacro entra aqui. E o fantasma também. Será que o nosso presente, alguns aspectos da contemporaneidade, aparentemente muito real, é fantasmal, simulacral, mas já de outra ordem que não a pensada por Platão. O Tempo parece entrar aqui.
30.
Hoje, o atómico, singularíssimo e indivisível, devém universal?
31.
A duração, o devir, correm algum risco? É que, com efeito, não aceleramos somente para avançar mais e descobrirmos mais (ciências), mas para recuperarmos um tempo perdido (estou a lembrar-me do extraordinário Em busca do tempo perdido de Proust). É como se a humanidade padecesse de certa maneira de uma nostalgia (nostos-algos; dor de - querer - voltar) ou estado de perda. E por isso se manifestasse uma dupla vontade, tanto de recuar no tempo para ir buscar algo atrás e passar para a frente, bem como avançar no tempo e ir buscar algo que está à frente para assegurar o atrás (a memória, o não ser esquecido, a imortalidade). Todavia, estes dois movimentos entrecruzam-se. Basta dizer, por exemplo, que a ideia de recuperar o tempo perdido, acelerando, faz com que deste modo já se caminhe em frente de maneira incontrolada, descontrolada. De tal modo que, em vez de caminhar em frente já se está a recuar sem dar por isso. E vice-versa. O impasse, porém, de hoje consiste no estado de coisas que se marca por este movimento, este duplo movimento, se re-duplicar. Mas não é só isto. É que o chamado medium da linguagem (na acepção de meio de expressão, instrumento, etc.), tido como o que torna manifesto os fenómenos pela sua compreensão e leitura e comunicação, tomou o papel da instantaneidade, da imediatidade. O processo de mediação desdobrou-se. Estamos e não estamos aqui e agora no mundo, não no sentido platónico, mas no sentido em que a categoria da “presença” já se alterou. Pelo que, se imediatamente, pela instantaneidade de tudo, se diz presente do já presente (do já classificado, etc.), então, esta dupla presença, mais do que resultar em ausência, é ausência. E reciprocamente para a condição da ausência. É preciso um “descer à Terra” no sentido meditativo e do silêncio fecundo. Mas ver também o que é transversal a isto segundo várias leituras. Para isto serve a transdisciplinaridade (Morin).

Por exemplo, uma informação por e-mail é uma informação por luz.
Como que em busca do tempo perdido, em busca de algo (tempo) perdido. É recuando para recuperar o tempo perdido – em busca dele (como sendo implicitamente algo que não sabemos o que é) que aceleramos ainda mais, pois mais nos foge, na medida em que, paradoxalmente (de modo duplamente paradoxal), vamos para a frente acelerando cada vez mais. É neste duplo movimento de avanço e recuo ao ponto de haver um efeito e ilusão de óptica (como no caso dos raios de roda da bicicleta de Duchamp) que se instala também uma dupla paragem um duplo ralentie para a frente e para trás. Só pausando na Terra, no silêncio e no vazio meditativos é que poderemos de novo conceder à linguagem verbal o sentido de compreensão que lhe compete, sendo este todavia, já outro sentido, saindo do estado de coisas que descrevemos e entrando nele, mantendo a condição de possibilidade de a ele voltar, jogando-se por seu turno nestes movimentos (ir e voltar) com aqueles (efeitos de óptica, instantaneidade, fuga para a frente e para trás, etc.). Linguagem e corpo jogam-se aqui noutro regime. A ver esta questão mais à frente.
Não queremos e queremos ir para a frente. Não queremos e queremos ir para trás. Eis o momento actual em que vivemos por virtude da aceleração tecnológica que tomamos aqui , neste momento, no sentido negativo e nefasto simplesmente pelo facto de ao invés de se tratar de aceleração quando o supomos, trata-se nesse mesmo momento, imediatamente – e a linguagem já está nisso implicada – de desaceleração, de paragem de reversão, mas no sentido mortal, pois também não damos por isso. Não damos por isso duplamente. É neste duplamente não dar por isso que poderemos entrever a dupla instantaneidade. As coisas manifestam-se então num como que marcar passo. Somos e não somos literalmente na medida em que o literal se alterou e se tornou real. Tornou-se real, não porque real e literal se permutaram. Mas porque real e literal se imediatizaram.
Tudo praticamente está classificado, catalogado, presentificado. E tudo se torna abissalmente menos controlado.
É evidente que eu estou a escrever isto. E dir-me-ão que corro o mesmo risco de isto não ser nada. Mas para escrever isto eu quero ter ao mesmo tempo em conta que trato de uma ninhada de gatinhos dentro de oliveira, que passeio o meu cão e que faço meditação Zen tanto quanto posso e sei fazê-lo, pois não é assim tão fácil. Tanto mais quando se trata de não fazer nada daquela maneira que é ainda fazer alguma coisa: simplesmente estar sentado, obedecendo evidentemente a certos requisitos posturais e respiratórios, etc.
Ou pensemos no dolce far niente, expressão que encontrei em A Vontade de Poderio de Nietzsche
32.

A co-memória.
33.
Esta sensação de que nunca tenho tempo para o que quero fazer no dia-a-dia acaba por ser aquilo que mais ando a fazer. Paradoxalmente, isto talvez se deva ao facto de, à partida, ter todos os dias livres – o que já é uma ilusão. Ou seja, ter todos os dias o tempo livre, coisa que no entanto é muitíssimo difícil de gerir e, por assim dizer, de trabalhar.
34.
Não só altera a nossa percepção do real, mas é o próprio real que se altera. Por isso é que se corre o risco de ao falarmos da alteração da percepção do real, já estarmos a falar da alteração do real. Este processo desdobra-se.
Este processo não é novidade. Ele vem dos pré-socráticos que o iniciaram e lançaram….
É o culminar ou quase culminar de todo um processo que vem dos pré-socráticos e se institui com Sócrates, Platão e Aristóteles.
Hoje altera-se a relação entre sujeito e objecto de modo inaudito. Mas este processo e esta relação já se iniciara com os pré-socráticos, como se disse acima. Não se trata de pretender que os nossos tempos actuais tenham atingido totalmente algo como o ápice de todo esse processo. Isso seria cegueira precisamente quanto ao nosso tempo quando este erronea e ilusoriamente se pretende como um presente absoluto.
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Este tópicos encontram-se em revisão
Continua

35.

Se não se pode ir ao antes da linguagem - como alguém disse há dias, e que muito respeito, a propósito de Wittgenstein e Goethe -, essa constatação não suporá a pretensão de ir ao antes na medida em que, reconhecendo-se a impossibilidade, esta impossibilidade é paradoxalmente possível enquanto precisamente reconhecida?
Não se entra aqui num círculo sem fim análogo àquele que busca o antes da linguagem?

36.

Cada homem individual vê - como se fosse o mundo e todos os homens - o mundo e todos os homens, sem que se confunda, a partir do seu ponto de vista com os restantes homens, nem com o mundo. O mundo vê - como se fosse o mundo a partir de cada homem individual e como se fosse o mundo a partir de todos os homens - o mundo e todos os homens, sem que se confunda, a partir do seu ponto de vista, com o mundo a partir de cada homem individual e com o mundo a partir de todos os homens.
Não há aqui qualquer coisa a ver com a monadologia de Leibniz?

37.

Estas coisas do sujeito e do objecto (sujeito/objecto) têm que se lhe diga. Pois, na verdade, fazendo aqui um jogo de palavras, em princípio é o objecto que se sujeita: é sujeito. Demos um exemplo, talvez de "lógica da batata", como se costuma dizer. Suponhamos então que estou a cavar batatas, coisa que fiz há muitos anos quando era jovem na quinta de familiares que muito prezo, coisa que dá que pensar, e espero em breve voltar a fazer na pequena horta da minha vizinha, já idosa, alentejana analfabeta, Maria Belmira Quintal de seu nome, que muito me ensina com a sua linguagem e sabedoria do campo, digamos assim. Estou a cavar batatas, dizia - note-se que isto são questões sérias - e eis que, por um qualquer motivo insuspeitado, quando apoio a enxada na cerca, parecendo estar segura, ela - a enxada (também podia ser a cerca) - mexe-se e cai. Isto provoca em mim uma leve irritação que, bem vistas as coisas, essa mesma irritação poderia provocar posteriormente por ela mesma uma irritação acrescida, tal não é o irrisório da enxada tombar. A enxada pareceu mexer-se por ela mesma, e eis que, por uma espécie de movimento de desobediência e, quiçá, um movimento de infracção do meu território, pois ela move-se e obriga-me a mover-me forçadamente para a pôr de pé encostada, eu a tomo quase como que tendo alma, a saber, como se estivesse viva. Como quando dizemos: este objecto -inerte - parece que está vivo. A quem não aconteceu já casos semelhantes, quando nos parece que as coisas se mexem sozinhas contrariando a posição que lhes impomos? basta às vezes um vento...
A enxada, o objecto, pareceu não sujeitar-se.
Mas não só cavar batatas; plantar espinafres, ervas aromáticas, regar, etc., etc.
No filme "2001 Odisseia no espaço" (1968) de Stanley Kubrick, o computador da IBM, Hall 9000 hiper-evoluído, espécie de novo escravo dissimulado em mordomo com excelentes modos (não desprimorando o escravo, pois antigos trouxeram-nos surpresas como Epicteto, por exemplo, escravo sábio), desobedece a dada altura, cujas circunstâncias agora não me recordo bem. Lembro-me só, se não me engano, embora a ideia me pareça mais ou menos essa, que Hall reage ao facto de não ter sido posto a par de certos planos da missão, o que o descontentou profundamente. E não é interessante que foneticamente 'Hall' tem aproximações com 'Hell' (inferno)?
Mas para não complicar aqui muito, voltemos ao exemplo da enxada, e vejamos se não há analogias com o que nos acontece quando o nosso computador doméstico, do qual quase tudo esperamos de bandeja em tempo real, à mão de semear - e quanto mais rapidinho melhor -, de súbito torna-se lento, ou pura e simplesmente não funciona, quer dizer, por qualquer razão que desconhecemos ou não controlamos, não nos "obedece". Já agora, lembrei-me daquela que todos conhecemos: "o material tem sempre razão". Mas quem é o escravo, e de que maneira, afinal...?

08/2012

Nota bene: Quando falo de cavar batatas e da 'lógica da batata', são coisas sérias. Pois cavar permite pensar, tal como caminhar, como o peregrino, ou varrer as cascas do chão da cozinha, como faz o aprendiz budista no templo. Assim como pintar, gesto que ainda de vez em quando pratico. Aprendi que pintar comporta pensar. Há pensamento no acto de pintar. Ou melhor, há pensamento ao cavar, há pensamento ao varrer, há pensamento ao pintar. São apenas alguns exemplos. 'Estar nas tintas' também pode ser pensar. E não é isso que de certa maneira faz o praticante de Zazen - meditação sentada - no budismo? Estar, de uma certa maneira, nas tintas. Não indo mais longe, falando eufemisticamente 'estar-se nas tintas' quer dizer 'ser-se in-diferente', 'estar-se borrifando'...
Voltando ao Zazen. O corpo na sua postura auto-referencia-se pela meditação que se traduz numa espécie de auto-reflexão sem relação à visão propriamente dita. Ou, melhor dizendo, a uma outra ordem da visão. Tanto assim que se pode meditar de olhos fechados embora se recomende, creio, os olhos meio-fechados e na penumbra. Mas de olhos fechados é bem tranquilizante.
Os pensamentos passam até deixarem de passar pelo simples facto de passarem. Passando-se , por assim dizer, a outro plano de ordem espiritual, que só a prática abre a via. Com o Yoga, embora noutros enquadramentos, estas observações também são consideradas. Quem escreve estas linhas não passa de um leigo...

08/2012


Não foi preciso descobrir a velocidade da luz no vácuo (300.000 km/sg. + -) para perceber como o jogo de luz e sombra é tão ou mais rápido que aquele cálculo medido. Isto, porque muito antes deste cálculo, o logos e o ser ocidentais gregos, de Heraclito e Parménides - estes ajudados por muitos outros tão ou mais importantes do que eles -, começaram a manifestar, pela linguagem, essa realidade veloz da luz e da sombra na génese da contradição e da identidade, no sim e no não, no é e no não é... Mas com eles, a luz e a sombra são pensáveis, também (embora Heidegger diga que a filosofia se deve afastar de um certo 'também' - Sein und Zeit, §82), devagar...

09/2012



Estabelecer, numa primeira demão, a relação (supondo, por assim dizer, união) entre um pólo (por exemplo, sujeito) e outro (por exemplo, objecto), é não percepcionar como um pólo é, numa certa medida, o outro e reciprocamente. Quer dizer, são a mesma coisa, ou o mesmo, mas designado (definido, determinado) cada um diversamente. Portanto, nessa primeira demão, já não se está, paradoxalmente, a estabelecer a relação, posto que se mantém cada um como tal, e, por assim dizer, está-se a separá-los em vez de uni-los. Mas o tempo joga aqui?
Compreendendo razoavelmente, tanto quanto podemos, este processo, talvez se abra caminho para a compreensão da "mesmidade" (Derrida), sem que o mesmo e o outro se ponham radicalmente. Compreender-se-á eventualmente também como os critérios de separação e de união, de sujeito e de objecto, do mesmo e do outro, de mente e de cérebro, etc., se manifestam já de outro modo que não ("autrement qu'être", Levinas) o de "ser ou não ser", parafraseando Levinas ("ser ou não ser não é propriamente a questão"; vj. Autrement qu'être ou au-delá de l'essence), parafraseando por sua vez Shakespeare, mas invertendo a proposição deste ("To be or not to be, that's the question" - "Ser ou não ser, eis a questão" em Hamlet).

09/2012

"O feliz do João". Esta proposição poderá significar ou supor, tanto "o José, que é feliz" quanto "o feliz, que é José". Pegue-se agora em "O sentido da questão". Poderá ser traduzido ou interpretado como "o sentido que é questão" como "a questão que é sentido". Mas entre estas duas proposições não há paralelismo simétrico. Não haverá antes uma relação aparalela e/ou assimétrica?

17/09/2012



É assim. E parece que se determina que "é assim". Mas isso, quer dizer, o "é assim", não será determinado, por seu turno, pelo que faz com que se diga isso mesmo, que "é assim"?
Com o "é assim" pretende-se uma antecipação. Pretende-se antecipar a uma antecipação que, por sua vez, se antecipa. E, assim, progressiva e regressivamente?

A pretensa antecipação na e pela definição (orismôs) não será já uma antecipação a uma antecipação que tende a insurgir-se? Mas, a dupla positividade da antecipação-definição, não se traduzirá na negação dela mesma, i.e., na negação da dupla positividade da dupla antecipação?

Da dupla positividade do antecipar-se à antecipação, não relevará a negatividade da não antecipação?

A "invenção da definição" (definição - orismôs) em Sócrates, Platão e Aristóteles, tematizada pelo estagirita.

Define-se porquê? Para proteger como ecrã. Ecrã-tela-protecção. Ecrã-palavra. Repetição verbal.

Ver "impulso antecipativo do ser-para-a-morte" em Heidegger.

20/09/2012







No ser há um duplo que é?

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