sábado, 4 de fevereiro de 2012

Mário de Sá-Carneiro : "Ponte" : poema "7".




Este estudo foi publicado em:


Luís de Barreiros Tavares, "Ponte, aceleração e velocidade em Mário de Sá-Carneiro", in Revista Nova Águia, nº15, 1º semestre, 2015, pp. 54-60, Zéfiro.   




                                             I - “Ponte”: poema “7”[1]


“Por exemplo… Revíamos nós, Sá-Carneiro e eu, as provas da primeira folha [Orpheu], quando surgiu, no prefácio de Luís de Montalvor, a frase «maneiras ou formas» transtornada em «maneiras de formas». Ia a emendar quando o Sá-Carneiro me suspendeu. «Deixe ir assim, deixe ir assim: assim ainda se entende menos.»”

(Fernando Pessoa, “Como nasceu «Orpheu»”, Textos de Intervenção Social e Cultural. A ficção dos heterónimos)

Eu não sou eu nem sou o outro,
Sou qualquer coisa de intermédio:
             Pilar da ponte de tédio
             Que vai de mim para o Outro.

(Mário de Sá-Carneiro, Poema “7”, Lisboa, Fevereiro de 1914)
1. A este poema (“7”), em epígrafe, do livro Indícios de Oiro publicado postumamente pelas edições da revista Presença (1937), daremos aqui o nome “Ponte”. Magnífico passo-poema de Mário de Sá-Carneiro que não se traduz num “intermédio” e “tédio” banais. Tentaremos mostrá-lo mais adiante. Mas Sá-Carneiro viveu também a dispersão, tanto assim que esta palavra deu nome a um poema escrito em 1913 e a um livro que o incluía (Dispersão, único livro de poemas publicado em vida do poeta, em 1914). O poema “Dispersão” foi muito apreciado por Fernando Pessoa, seu amigo e admirador. Escutemos Pessoa: “Mas para Sá-Carneiro, génio não só da arte mas da inovação nela, juntou-se, à indiferença que circunda os génios, o escárnio que persegue os inovadores, profetas, como Cassandra, de verdades que todos têm por mentiras” (Páginas sobre Literatura e Estética). Pessoa publicava por essa altura os poemas “Pauis” - com o título “Impressões do crepúsculo” (1913) – e “Ó sino da minha aldeia” (1913) no número único da revista “A Renascença” (1914), esta na linha do movimento Nova Renascença (início em 1912) cujo órgão foi a revista “A Águia” (1910-1932, com seu auge 1912-1916), tendo Teixeira de Pascoaes como director durante o maior período de tempo (até 1926). Sá-Carneiro também colaborou em “A Águia” com alguns contos (“O Homem dos Sonhos”, “O Fixador de Instantes” e “Mistério”). E naquele número único de “A Renascença”, o poeta e ficcionista apresenta a tradução do poema “Além” de um tal Petrus Ivanovich Zagoriansky, um suposto seu heterónimo ou pseudónimo. Com estas publicações e outras iniciativas, Sá-Carneiro e Pessoa, juntamente com Almada, Amadeo de Souza-Cardozo e Santa Rita Pintor, entre outros, deram um forte impulso ao Futurismo e ao Modernismo em Portugal originando em 1915 a revista “Orpheu” fazendo ponte com o Brasil (Luís de Montalvor – Lisboa / Ronald Carvalho – Rio de Janeiro). Para além destas revistas houve várias outras de importância neste contexto[2].

2. Respeitando estes e outros dados que porventura desconhecemos, voltamos ao poema que é o propósito deste estudo. Tenta-se ir ao encontro do poema enquanto poema na sua força poética. Daremos alguns exemplos gramaticais, nomeadamente morfológicos, sem entrar em grandes detalhes[3]. Trata-se antes de pensar com o poema, através do jogo de alguns dos seus elementos, movimentos e seus sentidos, partindo da metáfora e do símbolo da “ponte”. O poeta inscreve, no gesto de escrever, qualquer coisa-outra em trânsito. O “eu” não é o “eu” (o oximoro “Eu não sou eu”) e não é o “outro” (“nem sou o outro”), no primeiro verso. Por outro lado, o “eu”, (pronome pessoal) no início do poema, não é que o vai “para o Outro” (pronome indefinido) no final. O que vai para o Outro é aquele “… qualquer coisa (locução pronominal indefinida) de intermédio (substantivo abstracto…): / Pilar da ponte de tédio”. O “eu” inicial desdobra-se no intermédio. O “mim”, por seu turno, é um desdobramento do eu, e, por assim dizer, também um intermédio. Operam-se portanto redesdobramentos onde deixa de haver um “eu”, ou melhor, um “Eu” propriamente dito. Faz todo o sentido ler aqui a belíssima última estrofe do poema “Ângulo” de Indícios de Oiro:

- Por sobre o que Eu não sou há grandes pontes
Que um outro, só metade, quer passar
Em miragens de falsos horizontes -  
Um Outro que eu não posso acorrentar…

(Barcelona – Setembro 1914)
 Retomando o poema “7” (a “Ponte”), o “Outro” do final do último verso abre indefinidamente para os outros que somos todos nós. O “Outro” supondo também os outros na perdição e fascínio das multidões e das metrópoles começando em Lisboa e terminando no suicídio - aos 25 anos! - em Paris, 1916[4].

3. O “mim”, sendo mais um outro intermédio, como dissemos, articula-se no seu movimento oscilante com o intermédio “Pilar da ponte ”. Compreende-se deste modo a complexidade do “mim” e do “intermédio”, indicando ambos no seu jogo um sentido dinâmico de intervalo. “ (…) Que pesadelo tão bom… /……… / Pressinto um grande intervalo (…)”, escreve Sá-Carneiro no poema “Inter-sonho” no seu livro já mencionado Dispersão. A propósito, citemos um passo de Bernardo Soares no Livro do Desassossego (I, 21, [2 – 76, dact.]): “Quantos sou? Quem é eu? O que é este intervallo que ha entre mim e mim?”. O que importa aqui é compreender um novo sentido, uma nova dinâmica de “intermédio”, intervalar, desdobrando-se e abrindo um espaço-tempo poético. Com esta série de elementos transitórios, de jogos de deslocações parciais Que um outro, só metade, quer passar -, cria-se uma impressão de movimento.

4. Mas voltemos à questão do “tédio”. O tédio (substantivo abstracto), já por si conota neutralidade, apatia, indiferença, desinteresse e um certo sentido de abstracção. Quem não passou por ele? Por vezes diz-se que uma pessoa está abstracta, apartada, separada do real, das coisas concretas da vida, está entediada, enfim, deprimida, como se diz nos nossos dias. O drama de Mário de Sá-Carneiro foi precisamente o de sentir, na sua fina sensibilidade - no seu excesso, é certo - e mais do que muitos, o que geral e paradoxalmente se sente não se sentindo: tédio. Sentia um tédio a dobrar, quando a maioria dos outros não dava por isso, podendo estar todavia cheios de tédio e, por essa razão, ainda mais entediados do que ele. O tédio evocado no poema é uma primeira abstracção que vai desdobrar-se numa segunda abstracção que constitui o poema paradoxalmente no seu corpus. Aliás, Sá-Carneiro não escreve “do tédio”, mas “de tédio.” Quer dizer, não faz a contracção da proposição “de” com o artigo definido “o”. O “de” indica um sentido mais abstracto. É fundamentalmente a partir do poema que essa dupla abstracção é possível. Como é possível? Através do “sou” - primeira pessoa do singular do presente do indicativo do verbo “Ser” - surgindo três vezes nos dois primeiros versos. A não imediata identificação do “sou” com o “eu”, o “mim”, o “outro”’, o “intermédio” e o “Outro”, mas havendo de alguma maneira um movimento passando por eles, transmuda, com o trabalho de escrita, o poema como sendo objecto concreto e reenviando também para algo de abstracto. Por outro lado, como se a dado momento o poema falasse enquanto hipotético “eu”, um sujeito, permitindo-se, contudo, uma libertação em relação a ele.
Por assim dizer, o movimento poético - não propriamente o do sujeito ou do eu - não se identifica nem ao eu nem ao outro (“Eu não sou eu nem sou o outro”). O “Eu” inicial no primeiro verso reenvia para o movimento e para o movimento do poema. É interessante ver aqui uma dessubjectivação[5]. Fernando Cabral Martins (O Modernismo em Mário de Sá-Carneiro, p.147) fala-nos da “cisão do Eu” bem como da “dissociação do Eu”, do “sujeito” e da “despersonalização”. Citando a ensaísta brasileira Nelly Novaes Coelho: “[“despersonalização”]uma das mais flagrantes de modernidade que vai distinguir a poesia tradicional da poesia contemporânea”, é um “denominador comum de Orpheu”.

5. E, por outro lado, esse tal “eu” inicial, que “não” é (”sou”) “eu”, quer dizer, esse intermédio, não vai para além do “Outro” final e não fica aquém de “mim”. Pois é o que somente vai de mim para o Outro, ficando entre estes dois.
Quando se diz “pilar da ponte” visa-se o desdobramento que constitui a própria ponte. O “pilar” divide ao meio a “ponte” e ao mesmo tempo une e é mediação. Pois o pilar é parte da ponte estruturando-a com o que se designa em engenharia civil por tabuleiro que nele assenta. Tabuleiro ou “… arco da ponte (…) não saber se a curva da ponte é a curva do horizonte…”, nas palavras de Fernando Pessoa ortónimo no poema “Além-Deus”[6].
Voltando ao pilar da ponte de “7”. Como se com o pilar a ponte se estabilizasse enquanto tal. Se o pilar lá está, o tabuleiro só o é com ele e vice-versa, estabelecendo a ponte. Os dois veiculando o trânsito da/que é a ponte.

6. A ponte é poema. E como a ponte é veiculada e veiculadora, ela abre para a força deste poema fazendo com que o aparente lado sombrio do “tédio”, tido como banal “intermédio”, não passe, já transmudado, de mais uma entre muitas outras peças da “ponte” abrindo ainda para outra coisa qualquer, para fora do poema, cumprindo-se o papel deste que é o de conferir liberdade a escritor e a leitor. Artifícios de linguagem nesta leitura? Mário de Sá-Carneiro magnificamente os fez. Tentou-se somente analisar alguns pontos no feliz labirinto de linguagem que é este poema “7”.                              
                               
                                      









[1] Trata-se de dois apontamentos que de algum modo comunicam entre si: 1. A “Ponte”: poema “7”; 2. Aceleração e velocidade.
[2] Uma nota de rodapé à maneira de “Iceberg”, digamos: curioso é que muitos admiradores e estudiosos de Pessoa, aliás alguns de mérito, não reparem ou quase não reparem em Sá-Carneiro e em muitos outros… Para não dizer pior… Pessoanos ou não, e não são todos, por estranho que pareça, acabam por fulanizar e afunilar o génio que foi de facto Pessoa (seria interessante perguntar a alguns o que acham da Mensagem, etc.). Mas perdem de vista toda uma contextualidade cultural que é, afinal, o “caldo de cultura” de que resultou a emergência de muitos outros - inclusive ele! - uns mais e outros menos, de diferentes modos, mas numa interacção em rede (para empregar uma linguagem hoje em voga), tessitura onde todos tiveram o seu papel. Pena é que não tenham em conta certos e determinados nomes que não importa agora referir. Por vezes, muitos nomes parecem nos antípodas, mas, ao fim de alguns périplos, passando por muitos outros, acabam por cruzar-se… Por vezes uma ponta da corda toca na outra passando por muitas voltas, diversos e inopinados nós… Sem essas omissões talvez se compreendesse melhor certas “histórias” e questões…
[3] Agradeço à saudosa Dra. Elsa Rodrigues dos Santos (1939-2012) as preciosas indicações e reparos que deu nesse sentido.
[4] Leia-se a sua extraordinária novela Confissão de Lúcio (1914) tida como referência relativamente ao tema do “desdobramento” segundo vários estudos. Também a extraordinária peça (acto único) de José Régio “Mário ou Eu-próprio o Outro” (1957) partindo do conto-poema de Sá-Carneiro “Eu-próprio o Outro” (in Céu em Fogo). Por exemplo, o interessante estudo do brasileiro Fernando de Moraes Gebra sobre a questão do “duplo”: “José Régio e Sá-Carneiro nas encruzilhadas de seus duplos”.
[5] Eduardo Lourenço fala de “ausência”, mesmo de “ausência” de “Ser” e “ausência de essência humana” em Sá-Carneiro num texto polémico que, em linhas gerais, faz o contraponto entre “Orpheu” e “Presença”, tendo como principal contendor João Gaspar Simões :“«Presença» ou a Contra-Revolução do Modernismo Português?” (p.192). Ver Tempo e Poesia de 1974 (livro republicado em 2003 pela Gradiva). O texto veio a público pela primeira vez em 1960 (?) no suplemento d’O Comércio do Porto, mutilado pela censura… Sobre esta polémica consulte-se o próprio Tempo e Poesia. Vj. também, p.ex., Ana Cristina F. Assunção Marrucho, “Um texto sobre o “Orfeu” e a “Presença” – ensaio sobre a cegueira ou a revolução do discurso crítico em Portugal”.
[6] A citação encontra-se na V parte do poema “Além-Deus” (“Braço sem corpo brandindo um gládio”, 1913 (?)), só editado em 1953 por João Gaspar Simões, incluído no número 3 da revista “Orpheu” também com “Poemas de Paris” de Sá-Carneiro, não chegando a ser editado na altura por força de dificuldades económicas do pai deste, saindo somente em 1984 pelas Edições Nova Renascença e Ática.


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