Este estudo foi publicado em:
Luís de Barreiros
Tavares, "Ponte, aceleração e velocidade em Mário de Sá-Carneiro", in
Revista Nova Águia, nº15, 1º semestre, 2015, pp. 54-60, Zéfiro.
I - “Ponte”: poema “7”[1]
“Por exemplo… Revíamos nós, Sá-Carneiro e eu, as
provas da primeira folha [Orpheu], quando surgiu, no prefácio de Luís de
Montalvor, a frase «maneiras ou formas» transtornada em «maneiras de formas».
Ia a emendar quando o Sá-Carneiro me suspendeu. «Deixe ir assim, deixe ir
assim: assim ainda se entende menos.»”
(Fernando Pessoa, “Como nasceu «Orpheu»”, Textos
de Intervenção Social e Cultural. A ficção dos heterónimos)
Eu não sou eu nem sou o outro,
Sou qualquer coisa de intermédio:
Pilar da
ponte de tédio
Que vai de
mim para o Outro.
(Mário de Sá-Carneiro, Poema “7”, Lisboa, Fevereiro de 1914)
1. A
este poema (“7”), em epígrafe, do livro Indícios
de Oiro publicado postumamente pelas edições da revista Presença (1937),
daremos aqui o nome “Ponte”. Magnífico passo-poema
de Mário de Sá-Carneiro que não se traduz num “intermédio” e “tédio” banais. Tentaremos
mostrá-lo mais adiante. Mas Sá-Carneiro viveu também a dispersão, tanto assim que esta palavra deu nome a um poema escrito
em 1913 e a um livro que o incluía (Dispersão,
único livro de poemas publicado em vida do poeta, em 1914). O poema “Dispersão”
foi muito apreciado por Fernando Pessoa, seu amigo e admirador. Escutemos
Pessoa: “Mas para Sá-Carneiro, génio
não só da arte mas da inovação nela, juntou-se, à indiferença que circunda os
génios, o escárnio que persegue os inovadores, profetas, como Cassandra, de
verdades que todos têm por mentiras” (Páginas
sobre Literatura e Estética). Pessoa publicava por essa altura os poemas
“Pauis” - com o título “Impressões do crepúsculo” (1913) – e “Ó sino da minha
aldeia” (1913) no número único da revista “A Renascença” (1914), esta na linha do movimento Nova Renascença (início em
1912) cujo órgão foi a revista “A Águia” (1910-1932, com seu auge 1912-1916),
tendo Teixeira de Pascoaes como director durante o maior período de tempo (até
1926). Sá-Carneiro também colaborou em “A Águia” com alguns contos (“O Homem
dos Sonhos”, “O Fixador de Instantes” e “Mistério”). E naquele número único de
“A Renascença”, o poeta e ficcionista apresenta a tradução do poema “Além” de
um tal Petrus Ivanovich Zagoriansky, um suposto seu heterónimo ou pseudónimo.
Com estas publicações e outras iniciativas, Sá-Carneiro e Pessoa, juntamente
com Almada, Amadeo de Souza-Cardozo e Santa Rita Pintor, entre outros, deram um
forte impulso ao Futurismo e ao Modernismo em Portugal originando em 1915 a
revista “Orpheu” fazendo ponte com o Brasil (Luís de Montalvor – Lisboa /
Ronald Carvalho – Rio de Janeiro). Para além destas revistas houve várias
outras de importância neste contexto[2].
2.
Respeitando estes e outros dados que porventura desconhecemos, voltamos ao
poema que é o propósito deste estudo. Tenta-se ir ao encontro do poema enquanto poema na sua força
poética. Daremos alguns exemplos gramaticais, nomeadamente morfológicos, sem
entrar em grandes detalhes[3]. Trata-se
antes de pensar com o poema, através do jogo de alguns dos seus elementos, movimentos e seus sentidos,
partindo da metáfora e do símbolo da “ponte”. O poeta inscreve, no gesto de
escrever, qualquer coisa-outra em trânsito. O “eu” não é o “eu” (o oximoro
“Eu não sou eu”) e não é o “outro” (“nem sou o outro”), no primeiro verso. Por
outro lado, o “eu”, (pronome pessoal) no início do poema, não é que o vai “para
o Outro” (pronome indefinido) no final. O que vai para o Outro é aquele “…
qualquer coisa (locução pronominal indefinida) de intermédio (substantivo
abstracto…): / Pilar da ponte de tédio”. O “eu” inicial desdobra-se no intermédio.
O “mim”, por seu turno, é um desdobramento do eu, e, por assim dizer, também um
intermédio. Operam-se portanto redesdobramentos onde deixa de haver um “eu”, ou
melhor, um “Eu” propriamente dito. Faz todo o sentido ler aqui a belíssima
última estrofe do poema “Ângulo” de Indícios
de Oiro:
- Por sobre o que Eu não sou há grandes pontes
Que um outro, só metade, quer passar
Em miragens de falsos horizontes -
Um Outro que eu não posso acorrentar…
(Barcelona – Setembro 1914)
Retomando o
poema “7” (a “Ponte”), o “Outro” do final do último verso abre indefinidamente
para os outros que somos todos nós. O “Outro” supondo também os outros na
perdição e fascínio das multidões e das metrópoles começando em Lisboa e
terminando no suicídio - aos 25 anos! - em Paris, 1916[4].
3. O
“mim”, sendo mais um outro intermédio,
como dissemos, articula-se no seu movimento oscilante com o intermédio “Pilar
da ponte ”. Compreende-se deste modo a complexidade do “mim” e do “intermédio”,
indicando ambos no seu jogo um sentido dinâmico de intervalo. “ (…) Que pesadelo tão bom… /……… / Pressinto um
grande intervalo (…)”, escreve Sá-Carneiro no poema “Inter-sonho” no seu
livro já mencionado Dispersão. A
propósito, citemos um passo de Bernardo Soares no Livro do Desassossego (I, 21, [2 – 76, dact.]): “Quantos sou? Quem é eu? O que é este
intervallo que ha entre mim e mim?”. O que importa aqui é compreender um
novo sentido, uma nova dinâmica de “intermédio”, intervalar, desdobrando-se e
abrindo um espaço-tempo poético. Com esta série de elementos transitórios, de
jogos de deslocações parciais – “Que um outro, só metade,
quer passar” -, cria-se uma
impressão de movimento.
4. Mas
voltemos à questão do “tédio”. O tédio (substantivo abstracto), já por si
conota neutralidade, apatia, indiferença, desinteresse e um certo sentido de
abstracção. Quem não passou por ele? Por vezes diz-se que uma pessoa está
abstracta, apartada, separada do real, das coisas concretas da vida, está
entediada, enfim, deprimida, como se diz nos nossos dias. O drama de Mário de
Sá-Carneiro foi precisamente o de sentir, na sua fina sensibilidade - no seu
excesso, é certo - e mais do que muitos, o que geral e paradoxalmente se sente
não se sentindo: tédio. Sentia um tédio a dobrar, quando a maioria dos outros
não dava por isso, podendo estar todavia cheios de tédio e, por essa razão,
ainda mais entediados do que ele. O tédio evocado no poema é uma primeira
abstracção que vai desdobrar-se numa segunda abstracção que constitui o poema
paradoxalmente no seu corpus. Aliás,
Sá-Carneiro não escreve “do tédio”,
mas “de tédio.” Quer dizer, não faz a
contracção da proposição “de” com o artigo definido “o”. O “de” indica um
sentido mais abstracto. É fundamentalmente a partir do poema que essa dupla
abstracção é possível. Como é possível? Através do “sou” - primeira pessoa do
singular do presente do indicativo do verbo “Ser” - surgindo três vezes nos
dois primeiros versos. A não imediata identificação do “sou” com o “eu”, o “mim”,
o “outro”’, o “intermédio” e o “Outro”, mas havendo de alguma maneira um
movimento passando por eles, transmuda, com o trabalho de escrita, o poema como
sendo objecto concreto e reenviando
também para algo de abstracto. Por outro lado, como se a dado momento o poema falasse
enquanto hipotético “eu”, um sujeito, permitindo-se, contudo, uma libertação em
relação a ele.
Por assim
dizer, o movimento poético - não propriamente o do sujeito ou do eu - não se identifica nem ao eu nem ao outro (“Eu não sou eu nem sou o outro”). O “Eu”
inicial no primeiro verso reenvia para o movimento e para o movimento do poema.
É interessante ver aqui uma dessubjectivação[5].
Fernando Cabral Martins (O Modernismo em
Mário de Sá-Carneiro, p.147) fala-nos da “cisão do Eu” bem como da
“dissociação do Eu”, do “sujeito” e da “despersonalização”. Citando a ensaísta
brasileira Nelly Novaes Coelho: “[“despersonalização”]uma das mais flagrantes de modernidade que
vai distinguir a poesia tradicional da poesia contemporânea”, é um “denominador
comum de Orpheu”.
5. E,
por outro lado, esse tal “eu” inicial, que “não” é (”sou”) “eu”, quer dizer,
esse intermédio, não vai para além do “Outro” final e não fica aquém de “mim”.
Pois é o que somente vai de mim para o
Outro, ficando entre estes dois.
Quando se diz “pilar da ponte” visa-se o
desdobramento que constitui a própria ponte. O “pilar” divide ao meio a “ponte”
e ao mesmo tempo une e é mediação. Pois o pilar é parte da ponte estruturando-a
com o que se designa em engenharia civil por tabuleiro que nele assenta. Tabuleiro ou “… arco da ponte (…) não
saber se a curva da ponte é a curva do horizonte…”, nas palavras de Fernando
Pessoa ortónimo no poema “Além-Deus”[6].
Voltando ao pilar da ponte de “7”. Como se com o
pilar a ponte se estabilizasse enquanto tal. Se o pilar lá está, o tabuleiro só
o é com ele e vice-versa, estabelecendo a ponte. Os dois veiculando o trânsito
da/que é a ponte.
6. A
ponte é poema. E como a ponte é veiculada e veiculadora, ela abre para a força
deste poema fazendo com que o aparente lado sombrio do “tédio”, tido como banal
“intermédio”, não passe, já transmudado, de mais uma entre muitas outras peças da “ponte” abrindo ainda para outra coisa qualquer, para fora do
poema, cumprindo-se o papel deste que é o de conferir liberdade a escritor e a
leitor. Artifícios de linguagem nesta leitura? Mário de Sá-Carneiro
magnificamente os fez. Tentou-se somente analisar alguns pontos no feliz labirinto de linguagem que é este poema
“7”.
[1] Trata-se
de dois apontamentos que de algum modo comunicam entre si: 1. A “Ponte”: poema “7”; 2. Aceleração e
velocidade.
[2]
Uma nota de rodapé à maneira de “Iceberg”, digamos: curioso é que muitos
admiradores e estudiosos de Pessoa, aliás alguns de mérito, não reparem ou
quase não reparem em Sá-Carneiro e em muitos outros… Para não dizer pior…
Pessoanos ou não, e não são todos, por estranho que pareça, acabam por
fulanizar e afunilar o génio que foi de facto Pessoa (seria interessante
perguntar a alguns o que acham da Mensagem,
etc.). Mas perdem de vista toda uma contextualidade cultural que é, afinal, o
“caldo de cultura” de que resultou a emergência de muitos outros - inclusive
ele! - uns mais e outros menos, de diferentes modos, mas numa interacção em rede (para empregar uma
linguagem hoje em voga), tessitura onde todos tiveram o seu papel. Pena é que
não tenham em conta certos e determinados nomes que não importa agora referir.
Por vezes, muitos nomes parecem nos antípodas, mas, ao fim de alguns périplos,
passando por muitos outros, acabam por cruzar-se… Por vezes uma ponta da corda
toca na outra passando por muitas voltas, diversos e inopinados nós… Sem essas
omissões talvez se compreendesse melhor certas “histórias” e questões…
[3]
Agradeço à saudosa Dra. Elsa Rodrigues dos Santos (1939-2012) as preciosas indicações
e reparos que deu nesse sentido.
[4]
Leia-se a sua extraordinária novela Confissão
de Lúcio (1914) tida como referência relativamente ao tema do “desdobramento”
segundo vários estudos. Também a extraordinária peça (acto único) de José Régio
“Mário ou Eu-próprio o Outro” (1957) partindo do conto-poema de Sá-Carneiro
“Eu-próprio o Outro” (in Céu em Fogo).
Por exemplo, o interessante estudo do brasileiro Fernando de Moraes Gebra sobre
a questão do “duplo”: “José Régio e Sá-Carneiro nas encruzilhadas de seus
duplos”.
[5]
Eduardo Lourenço fala de “ausência”, mesmo de “ausência” de “Ser” e “ausência
de essência humana” em Sá-Carneiro num texto polémico que, em linhas gerais,
faz o contraponto entre “Orpheu” e “Presença”, tendo como principal contendor
João Gaspar Simões :“«Presença» ou a Contra-Revolução do Modernismo Português?”
(p.192). Ver Tempo e Poesia de 1974 (livro
republicado em 2003 pela Gradiva). O texto veio a público pela primeira vez em
1960 (?) no suplemento d’O Comércio do
Porto, mutilado pela censura… Sobre esta polémica consulte-se o próprio
Tempo e Poesia. Vj. também, p.ex., Ana
Cristina F. Assunção Marrucho, “Um texto sobre o “Orfeu” e a “Presença” – ensaio
sobre a cegueira ou a revolução do discurso crítico em Portugal”.
[6]
A citação encontra-se na V parte do poema “Além-Deus” (“Braço sem corpo
brandindo um gládio”, 1913 (?)), só editado em 1953 por João Gaspar Simões,
incluído no número 3 da revista “Orpheu” também com “Poemas de Paris” de
Sá-Carneiro, não chegando a ser editado na altura por força de dificuldades
económicas do pai deste, saindo somente em 1984 pelas Edições Nova Renascença e
Ática.
Sem comentários:
Enviar um comentário