
O acto de escrita de Fernando Pessoa
A Gil Fernando de Barreiros Tavares - meu pai - in memoriam
Era eu criança e citava-me Pessoa: "Grande é a poesia a bondade e as danças, mas o melhor do mundo são as crianças..." (Fernando Pessoa).
Era eu criança e citava-me Pessoa: "Grande é a poesia a bondade e as danças, mas o melhor do mundo são as crianças..." (Fernando Pessoa).
Daisy:  Não te julgava tão realista, julgava-te mais poético. Não tens  imaginação? Há várias realidades! Escolhe aquela que te convém. Evade-te  no imaginário. Berenger: Fácil de dizer!
Eugène Ionesco, Rhinocéros. 
When you read these I that was visible am
become invisible,
Now it is you, compact, visible, realizing my
poems, seeking me,Walt Whitman, Full of life now
become invisible,
Now it is you, compact, visible, realizing my
poems, seeking me,Walt Whitman, Full of life now
A escrita e o corpo*
1.  Qualquer coisa ao ler Pessoa, o semi-heterónimo Bernardo Soares e os  heterónimos, sem os reduzir uns aos outros, sugere, por um lado, um  paralelismo entre a leitura e a escrita na sua legibilidade (o conteúdo,  o que se diz, etc.) e, por outro, os traços da caneta, das linhas, da  tinta no papel enquanto gesto material e corporal de escrever (1). Há  algo de corporal em todo o trabalho da escrita. Incidirei a minha  atenção sobretudo no Livro do Desassossego (L.d.D.).  Não abordarei neste estudo a esfera da escrita dactilográfica tão  frequente neste livro. A sua dimensão poética é do meu ponto de vista  indiscutível, apesar de se considerar prosa. Veja-se um capítulo de O lugar do Anjo de Eduardo Lourenço cujo título é Uma poética do silêncio, (A propósito do L.d.D.).  Esta leitura tenta, tanto quanto pode, não encerrar verdades mas abrir  caminhos. Tentarei mostrar que este estudo não se limita ao meta-texto,  nem à meta-escrita, nem à meta-poesia. Leitura que irá oscilar  fundamentalmente entre Fernando Pessoa e Bernardo Soares. Fazendo-se por  vezes o primeiro passar pelo segundo e vice-versa, quando designo um em  vez do outro, respeitando-se no entanto esta curiosa alteridade. «É  que Bernardo Soares, distinguindo-se de mim por suas ideias, seus  sentimentos, seus modos de ver e de compreender, não se distingue de mim  pelo estilo de expor», escreve Pessoa num texto «sobre a criação heteronímica » (ver Obra Poética de Fernando Pessoa, org. A. Quadros). 
Um  trânsito e um espaço abrem-se neste vai-e-vem da escrita no seu gesto  material e da escrita no seu dizer. O sonho intersecta-se com os  segmentos, os traços inscritos na sua materialidade no papel. Leia-se  uma parte do poema interseccionista Chuva Oblíqua:
[…]
A grande Esfinge do Egipto sonha por este papel dentro…
Escrevo – e ela aparece-me através da minha mão transparente. 
E ao canto do papel erguem-se as pirâmides…
Escrevo – perturbo-me de ver o bico da minha pena
Ser o perfil do rei Quéops…
De repente paro…
Escureceu tudo… Caio por um abismo feito de tempo…
Estou soterrado sob as pirâmides a escrever versos à luz clara deste candeeiro
E todo o Egipto me esmaga de alto através dos traços que faço com a pena…
Ouço a Esfinge a rir por dentro
O som da minha pena a correr no papel…
Atravessa o eu não poder vê-la uma mão enorme,
Varre tudo para o canto do tecto que fica por detrás de mim,
E sobre o papel onde escrevo, entre ele e a pena que escreve
Jaz o cadáver do rei Quéops, olhando-me com olhos muito abertos,
E entre os nossos olhares que se cruzam corre o Nilo
E uma alegria de barcos embandeirados erra
Numa diagonal difusa
Entre mim e o que eu penso…
[…] 
(Chuva Oblíqua, Fernando Pessoa,)
As  imagens, o sonho, a ilusão, as sombras, a escuridão e a luz no seu  claro-escuro descrevem-se num espaço e num tempo pouco determinados: «Escureceu  tudo… Caio por um abismo feito de tempo… Estou soterrado sob as  pirâmides a escrever versos à luz clara deste candeeiro». As  silhuetas e os esquemas começam a emergir como recortes ilusórios na  folha de papel. Mas só a emergir? Não só. Começam também a  re-inscrever-se para lá e para cá da folha de papel e a mover-se na página branca: «A  grande Esfinge do Egipto sonha por este papel dentro…/ Escrevo – e ela  aparece-me através da minha mão transparente./ E ao canto do papel  erguem-se as pirâmides…». Os espaços-tempos de lá e de cá partindo  da folha de papel na sua virtualidade afastam-se e aproximam-se de outro  modo. Portanto, nessa diferença re-aproximam-se e re-afastam-se. 
As  linhas, a folha de papel, as letras, as palavras, as frases e a caneta  são instrumentos duma geometria ou geografia flutuantes: «E o esplendor dos mapas, caminho abstracto para a imaginação concreta, / Letras e riscos irregulares abrindo para a maravilha»  (Álvaro de Campos, vj. bibli.). Há neste sentido uma segmentação da  escrita, do acto da escrita. Enfim, uma incisão, cesura não no sentido  da métrica do poema mas da caneta enquanto movimento.
Os riscos de captura
2.  Todavia, este estudo correrá porventura os riscos para os quais José  Gil nos adverte na leitura de Pessoa embora noutro plano (vj. José Gil, O Devir-Eu de Fernando Pessoa). Riscos «do poder de captura» (Ibid.,p.9, sgs.). Há sem dúvida, digamos, esse perigo de des-leitura,  e correspondente captura do leitor pelo texto pessoano caindo o  primeiro, do ponto de vista deste autor, no logro, na «ilusão» de ser «o alvo exclusivo das palavras de Pessoa». Como bem analisou José Gil no texto do primeiro capítulo deste livro, o «plano-multidão»  (o da voz, das vozes, da multiplicidade das vozes) pode induzir em dois  sentidos distintos mas passíveis de se confundirem, salvo algumas  condições que o autor clarifica. Sem poder ir mais longe na sua análise,  posto que o espaço deste texto assim o exige, limito-me a citar dois  passos finais desse capítulo do Devir-Eu de Fernando Pessoa encaminhando o leitor: «Ilusão,  é certo, cultivada pelo próprio Pessoa: como se, de repente, o mundo se  abolisse, o plano-multidão desvanecesse, e o leitor se julgasse o alvo  exclusivo das palavras de Pessoa. Seria um falso devir-Pessoa, um  mimetismo grotesco ou paralisante». No entanto, acrescenta-se, «a  poesia pessoana suscita também um outro devir-Pessoa. Aquele que vem da  força de atracção da espontaneidade da sua escrita-proferição, da sua  escrita-fala intensiva. Cada heterónimo se exprime a partir dessa força  primitiva espontânea. É ela que atrai e subjuga. Mas levando o leitor a  entrar no plano multidão, a tornar-se ele próprio singular e  contaminante. Não a abismar-se num Eu oco sem fundo, mas a entrar, como  Álvaro de campos, “na substância do mundo» (Ibid.,p.32). Creio  modestamente que a minha leitura poderá evitar estes riscos bem como a  armadilha de uma imaginação psicológica ou até psicologista em torno do  sujeito-Pessoa, do Eu-Pessoa. É o que tentarei elucidar.
A escrita e a terra de ninguém
3. Por  vezes, a aparente secura da sua escrita, por muitos acusada de pouco ou  não-poética – misto de prosa e poesia, entre o pensamento abstracto e o  poético – é o que abre para o que chamarei uma terra de ninguém. Nesta terra de ninguém entra o mundo abstracto e geométrico de mapas e sinais mágicos: «desde que, perdida enfim a fé no esforço, me quero abandonar ao extravio, um termo clássico [plácido],  um adjectivo espacial e sóbrio, fazem-me de repente, como uma luz de  sol, ver clara deante de mim a página escripta dormentemente, e as  lettras da minha tinta da caneta são um mappa absurdo de sinaes mágicos» (L.d.D. II p.37).
Por outro lado, as supostas aridez, secura, nulidade, neutralidade, quer dizer, «o signo do insignificante» das personagens, podem ser compreendidos num belo passo de um livro de Eduardo Lourenço que exemplifica a «única personagem» que é o «acto da escrita» enquanto elemento decisivo: «Na  verdade, por mais surpreendente que seja o olhar – um olhar  absolutamente neutro – que Bernardo Soares pousa sobre os telhados de  Lisboa, sobre a face quotidiana e sobrenatural do mais insignificante  dos companheiros de mesa ou de escritório, sobre a própria vida -,  oscilando incessantemente entre a consciência da sua nulidade e a  exaltação quase feliz da sua pouca existência, a única personagem deste  verdadeiro-falso diário é o acto da escrita. Na escrita, o signo do  insignificante subverte-se inexplicavelmente e a extraordinária  irrealidade das coisas torna-se real» (Eduardo Lourenço, O Lugar do Anjo, p.105).
Esta parada, este contraponto entre «o acto da escrita» e a «própria vida»,  nas palavras de Eduardo Lourenço, cria um clima, uma espécie de região.  Há uma pequena distância. Uma certa indiferença inscrita no cálculo e  no cuidado do «acto da escrita». Essa distância é uma espessura ou um intervalo: «Quantos sou? Quem é eu? O que é este intervallo que há entre mim e mim?» (L.d.D. I,  p.25). Intervalo que pode deslocar-se através do chamado sujeito da  escrita, da sua vida, da realidade, do sonho, e do espaço-tempo do  leitor. Digamos uma espessura do invisível.
Pessoa  não escrevia só rápida e automaticamente, escrevia também pausadamente.  A lentidão da escrita a) e a lentidão do sujeito poético b), se assim  se pode dizer, cruzam-se e produzem um efeito de lugar indeterminado  onde o imaginário deixa de limitar-se ao espírito do leitor e ao  espírito do escritor. Exemplo para a): «Escrevo demorando-me nas palavras» (algures no L.d.D.). Exemplo para b): «Vou  num carro electrico, e estou reparando lentamente, conforme é meu  costume, em todos os pormenores das pessoas que vão adeante de mim. Para  mim os pormenores são coisas, vozes, lettras (ou frases). Neste vestido  de rapariga que vae em minha frente decomponho o vestido em o estofo de  que se compõe, o trabalho com que o fizeram [...]» (L.d.D, I, 163, p.184).
Por  outro lado, o cuidado e a demora da escrita reenviam para uma espécie  de exactidão que não é propriamente emissora de sentidos pretensamente  verdadeiros e exactos. É antes a exactidão do corte da ‘pena’ que  responde mas também emite num espaço ressoante que se vai determinando  numa escrita que parece estar a escrever-se. A escrita cruza-se com o  gesto físico de escrever. Noutra perspectiva Eduardo Lourenço escreve  citando Bernardo Soares: «O sentido é o Verbo exacto: “nada há de real na vida que o não seja pelo simples facto que foi bem escrito”» (Op.cit, p.51). O «bem escrito» não é o mero escrever bem.  O bem escrito é, por exemplo, o efeito de um «adjectivo» no «sítio  exacto» desencadeando uma alteração da «paisagem» enquanto «escrita do  ser» (Ibid, p.51): «[...] basta  que um adjectivo, colocado no sítio exacto, ilumine a paisagem como um  relâmpago para que o não-ser do mundo se suspenda e se transforme em  escrita do ser» (Ibid,  p.107). Por outras palavras, a exactidão faz-se não por uma colagem ou  adequação, mas pelo efeito, digamos, de segmentação da escrita. Esta  segmentação, este recorte cuidado, opera uma espécie de desdobramento  resultante de um cruzamento das sensações do trabalho da escrita, do acto de escrita, dos movimentos, das letras, das palavras, das paisagens, do corpo e dos espaços brancos.
Quer  dizer, em Bernardo Soares o trabalho da escrita é um trabalho no que se  escreve e se trabalha ao escrever. Descreve-se o processo de como a  própria escrita se vai des-crevendo ao escrever enquanto gesto corporal do autor: «As  phrases que nunca escreverei, as paisagens que não poderei nunca  descrever, com que clareza as dicto, à minha inercia e as descrevo na  minha meditação, quando recostado, não pertenço, senão longinquamente, à  vida. Talho phrases inteiras [...]» (L.d.D.,  II, 368, p.108). O espantoso é que, neste processo, Soares ao mesmo  tempo (ou quase?) está a descrever paisagens em escrita na medida em  que, ao escrever sobre a sua impossibilidade, desencadeia outras  paisagens: «Em certa altura da  cogitação escripta, já não sei onde tenho o centro da attenção – se nas  sensações dispersas que procuro descrever, como a tapeçarias incognitas,  se nas palavras com que, querendo descrever a propria descripção, me  embrenho, me descaminho e vejo outras cousas» (Ibid., 304, p.307).
Mas  este movimento é só do lado da escrita? E de que escrita se está a  falar? A escrita pessoana é também o jogo espácio-temporal de memória.  Porque é que é um jogo espácio-temporal de memória? Em que sentido se  fala aqui de 'memória'? O poeta produz na leitura com os movimentos das  sensações e as sensações dos movimentos um processo de retrojecção e  projecção espácio-temporal. Um jogo não só de passado para o presente e  vice-versa mas, creio poder dizer, para o futuro. É por isso que o  leitor se sente projectado para atmosferas que não são datadas. Ou  antes, são uma intersecção de tempos. Elas catapultam-no para um futuro  ou um tempo indeterminados em relação ao nosso presente e ao presente  que Pessoa viveu, fundindo-os no entanto imprevisivelmente. João Botelho  parece ter intuído esse efeito chamando-o «distorção do tempo» (disse-o numa entrevista) e transformando-o em linguagem cinematográfica no seu excelente filme recentemente realizado - «Filme do Desassossego» (2010) - onde consegue recriar em cinema um Bernardo Soares. Pena é que não tenha captado o pautamento, a demora do escrever de Soares («escrevo demorando-me nas palavras»)  focando somente o seu carácter rápido e automático. Que me perdoem os  entendidos, mas na minha ignorância sobre estas matérias creio que a  forma extraordinária como Botelho move lentamente a sua câmara, na  esfera da escrita cinematográfica, parece-me compensar de alguma maneira  essa falta.
Jogo e máscaras 
4. De outro ponto de vista, poderemos supor que o próprio Pessoa convivia na sua vida quotidiana com as suas «máscaras». Leia-se uma belíssima passagem de António Tabucchi (Pessoana Mínima, INCM, 1984, p.70) citando Roland Barthes, a propósito de um retrato de Pessoa tirado em estúdio: «Em  Janeiro de 1914, ou seja, cerca de dois meses antes daquele dia 14 de  Março que vê o nascimento triunfal dos heterónimos maiores («foi o dia  triunfal da minha vida e não poderei nunca mais ter outro assim», diz na  carta a Casais Monteiro), Fernando tira um retrato para mandar à tia  Anica, à qual o ligava um terno afecto. É um retrato singular e vale a  pena examiná-lo. Trata-se de uma fotografia tipo carte-postal, daquelas  que se usavam na época para mandar às pessoas queridas. É uma pose de  estúdio, com fundo neutro, como tantas. Mas «puisque toute photo est contingente – par la même hors de sens» [La chambre claire], como afirma Roland Barthes, «la Photographie ne peut signifier – viser une généralité – qu’en prenant un masque». O  que é realmente singular é que Fernando veste um sobretudo escuro e um  chapéu preto, como não era costume usar-se nos estúdios, onde a regra  era «posar» em cabelo e de casaco. Dir-se-ia que o fotografado pretende  sublinhar uma falta de autenticidade, uma impostura: como se quisesse  imitar a imagem de si próprio («Je ne cesse pas de m’imiter, et c’est  pour cela que chaque fois que je me fais photographier, je suis  immanquablement frôlé par une sensation d’inauthenticité, parfois  d’imposture…» [Barthes, Op.cit.]).» Na dedicatória dessa foto Fernando Pessoa escreve: «… provisoria representação visível de si-proprio…» (Pessoana Mínima, p.79).
Outros  exemplos poderiam ser dados. Os frequentes instantâneos tirados  caminhando nas ruas do Rossio, Baixa e Chiado. Dir-se-ia uma figura de  ficção (do latim, fictio, de fingo; «fingir é conhecer-se»)  através da superfície de inscrição da fotografia. Uma figura  estilizada, “quase parecendo fotogramas de um filme sobre o seu andar” (Fotobiografia de Fernando Pessoa, texto de R. Zenith,p.140, vj. bibli.).  O jogo das máscaras, dos simulacros e dos fingimentos poderá  estender-se a outras análises. Por exemplo, segundo o dizer do poema Autopsicografia parece ser necessário fingir o fingimento («finge tão completamente»), para que nessa dobra, nessa repetição, nesse reforço, nessa afirmação da negação  do fingir (ao afirmá-lo) e ao mesmo tempo nessa negação dele (pois  fingir o fingir é também negá-lo) se abram outros sentidos  potencialmente infinitos. Não se trata tanto de dois modos de fingir e  de dois modos de verdade que abram ainda para outro sentido de verdade e  fingimento, num círculo ou quadrado que se fechariam. Mas de um espaço  que partindo da multiplicidade virtual de sentidos faça o leitor saltar  fora de um perímetro redutoramente terminológico e dualista: 
O poeta é um fingidor.
Finge tão completamente
Que chega a fingir que é dor
A dor que deveras sente.
E os que lêem o que escreve,
Na dor lida sentem bem,
Não a dor que ele teve,
Mas só a que eles não têm.
[…] 
Fernando Pessoa
Noutro  ângulo, repare-se na lucidez de Pessoa quanto ao risco de parte da sua  obra - ou da sua obra em parte? - ser considerada pouco ou «não-poética», neste caso pela mão de Caeiro segundo Ricardo Reis citado por Eduardo Lourenço: «Esta  forma de olhar uma pedra pode ser definida como a maneira totalmente  não-poética de olhá-la. O que é inacreditável em Caeiro é que ele cria  poesia a partir desse sentimento. Sente positivamente aquilo que até  agora não podia ser concebido senão como sentimento negativo» (Op.cit.,p.69).  Não se trata propriamente de imagens nem de percepções dadas no sentido  fotogramático. Também não se trata de um suposto plano inteligível.  Usando uma metáfora, a atmosfera que daí decorre é como uma onda, um estado de coisas que banha o leitor como um recosto (citou-se acima no §3 um passo com este termo): “Encostei-me  para trás na cadeira do convés e fechei os olhos, / E o meu destino  apareceu-me na alma como um precipício./ A minha vida passada  misturou-se-me com a futura, / E houve no meio um ruído do salão de  fumo, / Onde, aos meus ouvidos, acabara a partida de xadrez.” (vj. bibli., Poesias de Álvaro de Campos, org. António Quadros).
Outras escritas
         5. «Tornei-me numa figura de livro» (L.d..D,  I, 212). Esta zona espectral, pelicular, «virtual» - à maneira de um  ecrã desfocado de televisão mal sintonizada, ou de uma fotografia mal  tirada - é o resultado desse desdobramento produzido literariamente: «O que quer isto dizer? Que verdade é esta que uma pellicula não erra?» (L.d..D.,  I, 153). Zona de inscrição das linhas delimitativas desdobradas das  figuras, das personagens, das máscaras, das sensações, dos duplos, das  sombras nos seus movimentos por vezes au ralenti.  Esta zona seria o solo estruturante do espaço-imaginário poético.  Aliás, na sua maturidade poética não terá sido Fernando Pessoa um  sublime escriturário («correspondente estrangeiro em casas comerciais», definição escolhida por ele mesmo; vj. Fotobiografia, p.64) a par de um sublime poeta? «E,  com um sorriso que guardo para meu, lembro que a vida, que tem estas  paginas com nomes de fazendas e dinheiro, com os seus brancos, e os seus  traços á regua e de lettra, inclue também os grandes navegadores [...]» (L.d.D., I, 150, p.166). «Escrevo como quem dorme e toda a minha vida é um recibo por assignar (Ibid.,  I, 211)». Aliás, ouso dizer que quem não consegue sorrir e mesmo rir  com Pessoa não compreendeu suficientemente a sua obra. Uma ironia subtil  vai atravessando o seu labor es-crítico,  digamos assim, como quem, apesar de tudo, se sente, não si-mesmo, mas  especial companhia de si-mesmo, o que é diferente. Foi isso sem dúvida  que lhe deu alento e conforto para transformar, no seu «outrar», os por  vezes aparentes tédio e melancolia da sua vida e da sua escrita num  certo gozo da escrita e da vida: «Se  houvesse de inscrever […] a que influências literárias estava grata a  formação do meu espírito, abriria o espaço ponteado com o nome de  Cesário Verde, mas não o fecharia sem nele inscrever os nomes do patrão  Vasques, do guarda-livros Moreira, do Vieira caixeiro de praça e do  António moço do escritório» ( L. d. D., 130, p.150 na edição de Richard Zenith).
Não sei se isto chocará alguns especialistas mas Bernardo Soares terá sido de algum modo um técnico da escrita  ímpar. Mas técnico da escrita em que sentido? Frequentando até altas  horas as firmas onde trabalhava com autorização dos patrões enquanto correspondente estrangeiro em casas comerciais ou «contabilista» nas palavras de Eduardo Lourenço (ver L.d.A.  p.107). Utilizando as máquinas de escrever e os papéis das  contabilidades para adiantar serviço em horários mais livres ao mesmo  tempo que aí empreendia a escrita da sua obra e a do «ajudante de  guarda-livros». Jogando estas duas tarefas uma com a outra, mantendo-as a  par e ao mesmo tempo reciprocamente independentes. «Tenho  ternura, ternura até às lágrimas, pelos meus livros de outros em que  escrituro, pelo tinteiro velho de que me sirvo, pelas costas dobradas do  Sérgio, que faz guias de remessa um pouco para além de mim» (L.d.D., 7, na edição de R.Zenith). 
         Extrapolando do contexto do livro A Origem da Obra de Arte de Martin Heidegger - que pensa a obra de arte plástica («as botas de camponesa» de Van Gogh) - para o poema, digamos que a pro-dução  do poema no seu “carácter coisal” de obra confere-lhe um estatuto de  corporalidade, de objecto de arte. Mas não tanto como objecto. Por  exemplo, Pessoa no seu texto «Sobre a arte e o artista, ontologia da obra de arte» em «Páginas sobre literatura e estética» e na sequência de uma reflexão sobre a possibilidade do «poema» («suponha-se um poema, que penso escrever», Ibid,  p.25) como «obra de arte», alude ao poema enquanto «objecto» ou  «cousa». Mas não um suposto objecto na oposição ao sujeito. Pessoa fala  de «objectivação». Esta diferença é subtil: «Vejamos  o que quer dizer objectivação. A palavra implica a redução da ideia, ou  seja o que for (que há-de ser ideia, e não objecto, para poder dizer-se  que se objectiva) à categoria de cousa análoga a qualquer cousa que  ocupa o mundo exterior» (Ibid, p.27). 
Nada e tudo 
         6. «Crochet das coisas... Intervallo... Nada....» (L.d.D.,I,12,p.12).; «Sou  o intervallo entre o que sou e o que não sou, entre o que sonho e o que  a vida fez de mim, a media abstracta e carnal entre coisas que não são  nada, sendo eu nada também» (L.d.D.,I,154, p.172).
         Com Pessoa é preciso deixar vir à presença  o que na aparência já nada tem a ver com a literatura: o carácter  material-corporal do acto de escrever. É que, repetimo-lo, há uma  dimensão física, corporal na escrita de Pessoa que muitas vezes passa  despercebida. A cómoda (escrever de pé o Guardador de rebanhos, Chuva Oblíqua),  mesa, papel, tinta, caneta, bico da caneta, corpo, sensações e  movimento enquanto escreve o que escreve, etc. Mas o que aparentemente  nada tem a ver com literatura tem-no parcialmente. Porquê parcialmente?  Porque, por outra parte, há também um ‘nada’, um outro nada correlativo,  diríamos assim, no dizer e no pensar poéticos. É o nada que escapa, se  retira ao pensar e dizer poéticos enquanto tais. Ambas as polarizações,  os dois nadas no seu extremar, se transmudam nesta gama de movimentos  parciais. Sem querer forçar textos e contextos cite-se de passagem  Jacques Derrida: «de uma certa maneira, ‘o pensamento’ não quer dizer nada» (2). Leia-se Fernando Belo num excelente passo do seu opúsculo Seja um Texto de Paixão, §7, Suplemento ao livro «Filosofia e ciências da linguagem, ed. Colibri»: «[…] a  resistência do poema ao resumo, à paráfrase, à explicação, e mesmo à  tradução em outra língua, a qualquer equivalência de sentido entre o que  o poema diz e o que poderia ser (e nunca é) o mesmo sentido dito de  forma não literária». E no entanto o pensamento atravessa o pensador e o poeta, embora de modo diferente em cada um e ainda pouco pensado ou até impensado. Como sugere Martin Heidegger: «Conhece-se  sem dúvida muitas coisas sobre as relações da filosofia e da poesia.  Mas nada sabemos do diálogo entre poeta e pensador que «habitam próximos  sobre os montes mais separados» (Martin Heidegger, O que é a Metafísica?).  Heidegger, vale a pena lembrar, foi leitor e escreveu sobre Hölderlin,  Stefan George, Georg Trakl, Rilke, entre outros. Tendo sido amigo de  René Char, poeta e Resistente francês ao regime nazi na Segunda Guerra  Mundial. Há pois também ‘pensar’ na poesia: “a alta poesia pensa” (Fernando Belo, Ibid., §8).  A poesia pensa na condição de haver um pensar que não seja estritamente significável: «Não: não quero nada. Já disse que não quero nada. Não me venham com conclusões!» (Campos, Lisbon Revisited, 1923, vj. bibli.). «Aquilo que com tantas preocupações a palavra crítica se esforça por alcançar, a poesia o é na sua fulgurância de sonho” (Eduardo Lourenço, Pessoa Revisitado, p.105). E Caeiro:
«Constituição íntima das coisas»...
«Sentido íntimo do Universo»...
Tudo isto é falso, tudo isto não quer dizer nada.
É incrível que se possa pensar em coisas dessas.
É como pensar em razões e fins
Agora,  talvez se possa compreender como o ‘nada’ se joga com o ‘tudo’ em  Fernando Pessoa. O ‘nada’ é complexo, e não se limita a um niilismo  fatal. Daí o mito, «o nada que é tudo» da Mensagem de Pessoa. Ou ainda Álvaro de Campos no poema Tabacaria:
Não sou nada.
Nunca serei nada.
No entanto Campos acrescenta: Não posso querer ser nada.
E: À parte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo.
“À parte isso”, mas a partir disso também, esse nada que se des-nada (“Não posso querer ser nada”), se assim se pode dizer, é condição de possibilidade de “todos os sonhos do mundo”. 
Voltando  ao 'nada' material-concreto da escrita e ao 'nada' imaterial-abstracto'  talvez como nenhuma outra a singularidade da escrita de Pessoa alcança  as margens destes dois nadas. No entanto estes acabam por não se reduzir  a 'nada' no sentido vulgar. Como é que escapam a um mero nada vulgar? É  que nem a escrita material é meramente material e plástica escapando ao  dizer poético da escrita, nem a escrita abstracta do pensamento é  meramente abstracta escapando ao sentido poético. Por isso também  poeticamente «Há metafísica bastante em não pensar em nada», diz o  Mestre Caeiro. Pessoa, de modo subtil faz a travessia do suposto  pensamento não-poético no poético. Eis que neste ponto a nossa reflexão  oscila. Mas deixemo-la oscilar com a força da escrita de Pessoa.
Por outro lado, os dois nadas  referidos  como dois pólos apelam um ao outro na sua abrupta separação. Ou seja,  por aquilo em que à partida nada têm a ver um com o outro. Transformando  nestes contextos o questionamento do que é proximidade e distância sem  que ambas desapareçam do horizonte do pensamento e da existência.  Proximidade e distância instalando o espaço real mas também o espaço do  imaginário e porventura literário. Não poderá residir aqui o que se  chama «espaço literário» na análise de Maurice Blanchot (3)? 
Outro  elemento que provavelmente nos ajudará a compreender a intersecção, até  a intercepção, destes dois nadas na escrita pessoana é o da “personalidade literária” ou “personagem” que foi Bernardo Soares segundo João Gaspar Simões (4). Este «não-heterónimo, quando muito semi-heterónimo como o próprio Fernando pessoa reconhece» (Ibid.,  p.163). A mediação (semi-heterónimo) entre o heterónimo e o  não-heterónimo instala-se anulando estes dois pólos mas negando-se  também porque precisa deles. Todavia, abre-se assim uma outra mediação;  dá-se a mutação da mediação. Um novo espaço-tempo. Num magnífico passo,  Gaspar Simões sugere uma espécie de Bernardo Soares desdobrado que,  digamos assim, seria qualquer coisa de espectral, de pelicular: «Para  todos os efeitos, repetimos, entre quem supostamente se confessa, nos  fragmentos do Livro do Desassossego, «ajudante de guarda-livros na  cidade de Lisboa» e esse mesmo virtual «ajudante de guarda-livros na  cidade de Lisboa» não há mais nada em comum além da circunstância  daquele que escreve as páginas do referido livro a cada passo aludir à  condição profissional -«ajudante de guarda livros»- do redactor desse  livro» (Ibid., p.165).
Retomando  o ponto de partida deste §6, aquilo de que aparentemente estamos a  tratar, a escrita pela escrita (que supostamente já nada tem a ver com a  escrita poética), por um lado, e o pensamento abstracto que se pretende  e supõe definidor - mas que por isso mesmo supostamente também já nada  tem a ver com o conteúdo poético - fundem-se e transmudam-se  estruturando um outro terreno aberto de reflexão literária. Talvez  abrindo-se novos caminhos para a transdisciplinaridade e para a relação  realidade/ficção.
Conclusão
7. […]
Acho tão natural que não se pense
Que me ponho a rir às vezes, sózinho,
Não sei bem de quê, mas é de qualquer coisa
Que tem que ver com haver gente que pensa...
Que pensará o meu muro da minha sombra?
[…]
Que pensará isto daquilo?
Nada pensa nada.
(Caeiro)
Finalizando e repetindo alguns pontos, não será que paradoxalmente entre aqueles dois nadas, entre esses não-ser,  poderá haver um nada, um terceiro nada, quer dizer, uma espécie de  vazio entre eles? Parece difícil de apreender, pois o nada, os nadas  nada delimitam. Paradoxalmente ainda, pode-se dizer que se inscreve aí  um elemento, um meio que não é uma mediação, uma intermediariedade no  sentido habitual. Numa palavra, diria que ambos os nadas, no seu  extremar, no seu excesso polarizado, refluem intersectam-se no espaço  indefinido entre eles a tal ponto que o seu anterior sentido na  polarização se transmuda nesta nova mediação, transmudando esta por sua  vez. No entanto, estas duas instâncias devém múltiplas nas gradações pro-duzidas.  Superam-se assim os dualismos através da inovação do pensamento e dos  movimentos da escrita de Fernando Pessoa. Eis que se nos afigura um meio, um elemento na plena acepção da palavra. “Substância do mundo” como escreve Álvaro de Campos. 
A  dimensão imaginária da obra de Pessoa não se reduz às da literatura e  da poesia tal como são habitualmente supostas. 1) Por um lado, como se  viu, na medida em que ela extravasa para o carácter parcialmente não  literário ou poético da mera materialidade e corporalidade da inscrição  (caneta, papel, tinta, etc.). 2) Por outro, na medida em que extravasa  para o carácter do sentido, do pensamento, que escapa sempre,  paradoxalmente, a qualquer explicação ou captação do dizer poético  (apesar da obra pessoana tanger o pensamento conceptual-abstracto sem a  ele se limitar). 
A escrita de Pessoa inscreve-se no campo da poesia e da literatura, mas acima de tudo na poesia, seja em verso ou em prosa. Ela pro-duz,  como vimos, uma articulação singular ao material, ao corporal (ver  acima 1)), ao mesmo tempo que estabelece a ponte com o pensamento  abstracto (ponto 2)). Assim, estes dois campos refluem, no seu excesso,  no campo habitualmente tido como literário, transformando-o.
Objectar-se-á  que esta tese nada traz de novo, pois implicitamente a sua pretensão,  já antiga, dada e adquirida, é a de relacionar a realidade com a  literatura. Tentemos elucidar a questão. Tanto um pólo como o outro (1 e  2) que, à partida, nada tinham a ver com literatura, afinal têm mas já  de outra maneira. Como de outra maneira? A realidade material e corporal  do inscrever da caneta, do papel e da tinta (ou do dactilografar),  riscos, rabiscos 1), e a dimensão do pensamento abstracto e conclusivo  («Não me venham com conclusões!» […] «Tirem-me daqui a metafísica!» Campos, Lisbon Revisited,  1923) 2) que supostamente já nada têm a ver com literatura, repassam  por dentro e por fora, transformando-os, os supostos espaços, já  pretensamente dados e adquiridos, da realidade e da literatura. Um  exemplo de 1): «Escrevo  atentamente, curvado sobre o livro em que faço a lançamentos a história  inútil de uma firma obscura; e ao mesmo tempo o meu pensamento segue,  com igual atenção, a rota de um navio inexistente por paisagens de um  oriente que não há. As duas coisas estão igualmente nítidas, igualmente  visíveis perante mim: a folha onde escrevo com cuidado, nas linhas  pautadas, os versos da epopeia comercial de Vasques e C.ª, e o convés  onde vejo com cuidado, um pouco ao lado da pauta alcatroada dos  interstícios das tábuas, as cadeiras longas alinhadas, e as pernas  saídas dos que sossegam na viagem». Reenviando o corpo para o acto de escrita e para o seu dizer. Segue-se um breve exemplo de 2): «metafísica das sensações»,  reenviando a esfera da metafísica para as sensações do campo poético  (5). Mais do que um movimento por dentro há um movimento por fora - de fora - voltando às próprias coisas e transmudando o sentido habitual do que é inerente à literatura. Deste modo estrutura-se um outro espaço literário,  usando de novo a expressão de Maurice Blanchot, abrindo-se um novo  terreno para o plano poético. Tarefa que a experiência da escrita de  Pessoa que aqui tentámos elucidar ajudará porventura a compreender.
Luís de Barreiros Tavares
16/12/2010
Notas:
(1)  Este breve estudo não se enquadra no que é comum chamar-se análise  literária. Em primeiro lugar porque o nosso propósito não é esse, embora  se trate de uma reflexão sobre a linguagem poética. Enfim, uma reflexão  sobre a esfera literária. O que naturalmente implica uma relação à  dimensão literária, mais propriamente poética e preliminarmente à  questão da linguagem. 
Em  traços largos, a tese esboçada neste breve estudo consiste em focar  alguns elementos que aparentemente nada têm a ver com poesia e  literatura. No entanto, tenta-se demonstrar como esses elementos podem  não só ter a ver com poesia e literatura como também poderão contribuir  para novas formas de leitura neste âmbito. Por certo seria interessante  articular com as linhas de força deste texto uma análise literária, por  exemplo, nos campos semiótico e linguístico. Mas modestamente tal tarefa  ultrapassa a minha competência. 
Respeita-se a ortografia da edição do L.d. D. da Ática (1982).
(2) Derrida , J, De la Gramatologie (1967), Ed. Minuit, Paris, 1992, p.142.
(3) Noutro plano ver o nosso texto no site da SLP :
(5) Sobre este tema ver Gil,J., Fernando Pessoa ou a Metafísica das Sensações, Trad. M.S. Pereira, Relógio D'Água, Lisboa, 1987.
Bibliografia de Fernando Pessoa:
Pessoa, F., (Obras de Fernando Pessoa), O Livro do Desassossego, por Bernardo Soares, edição Richard Zenith, Assírio e Alvim, Lisboa.1998.
Pessoa,F., Livro do Desassossego,  por Bernardo Soares, Ática, 2 vol., (recolha e transcrição dos Textos  de Maria Aliete Galhoz e Teresa Sobral Cunha., Pref. Jacinto do Prado  Coelho), Ática, Lisboa, 1982.
Pessoa, F., Obra em Prosa de Fernando Pessoa, Textos de Intervenção Social e Cultural, A ficção dos Heterónimos, Eur.Amér, Intr. e Org. A. Quadros, 1986.
Pessoa, F., Poemas de Alberto Caeiro, ed. bilingue, trad. Pablo del Barco, Ed. Visor, Madrid, 1980.
Pessoa, F., Poesias de Álvaro de Campos, in Obra poética de Fernando Pessoa, Intr. org. de António Quadros, Eur. Amér., 1986. 
Pessoa, F., Obra poética de Fernando Pessoa, Poesias I, II e III, Intr. org.António Quadros, Eur.América, 1986.
Pessoa, F., Páginas sobre Literatura e Estética, Intr. org. A.Quadros, Eur. América, 1986. 
Zenith, R., Fernando Pessoa: Fotobiografia, Lisboa, Círculo de Leitores, 2008.
Outros autores:
Belo, F., Seja um Texto de Paixão (Suplemento ao livro Filosofia e Ciências da Linguagem), Colibri, Lisboa, 1993.
Blanchot, M., L’Espace Littéraire, [1955], Folio, Paris, 2007.
Derrida , J, De la Gramatologie (1967), Ed. Minuit, Paris, 1992.
Gil,J., Fernando Pessoa ou a Metafísica das Sensações, Trad. M.S.Pereira, Relógio d'Água, Lisboa, 1987. 
Gil, J., O Devir-Eu de Fernando Pessoa, Relógio d’Água, Lisboa, 2010.
Heidegger, M., A Origem da Obra de Arte, trad. Maria da Conceição Costa, Ed.70, Lisboa, 1992.
Heidegger, M., Qu’est-ce que la Métaphysique ? in  Questions I, trad. Henry Corbin, Gallimard, Paris, 1990.
Lourenço, E., Pessoa Revisitado, Leitura estruturante do drama em gente, Gradiva, Lisboa, 2003.
Lourenço, E., O Lugar do Anjo, ensaios pessoanos, Gradiva, Lisboa, 2004.
Simões, J. G., Fernando Pessoa, breve história da sua vida e obra, Lisboa, Difel, 1983.
Tabuchi, A., Pessoana Mínima,  INCM, Lisboa, 1984.
Parte deste texto sobre Fernando Pessoa (§3) foi publicada no nº 8 da revista Nova Águia: Luís Tavares, (2011), 2º semestre, «Pessoa : A escrita e a terra de   ninguém» Revista Nova Águia, nº8, pp. 161-162.
Agradeço a revisão do texto à Dra. Elsa Rodrigues dos Santos.
Desenho: Fernando Pessoa; pincel, tinta da china em papel Canson Ingres Vidalon, 2010.
Por Luís de Barreiros Tavares
Desenho oferecido a Eduardo Lourenço
Por Luís de Barreiros Tavares
Desenho oferecido a Eduardo Lourenço
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Outras pistas, notas e motes. Alguns lidos posteriormente à realização deste texto.
"(...) dá-se uma dupla transformação através da assunção dos nomes próprios do autor e do editor. O primeiro produz escrita por sobre a prosa prosaica, o segundo cria um livro, ele que não fazia senão guardá-los: "Escrevo atentamente, curvado sobre o livro em que faço lançamentos a historia inutil de uma firma obscura; e, ao mesmo tempo, o meu pensamento segue, com igual attenção, a rota de um navio inexistente por paisagens de um oriente que não ha" (p.122) [L do D]. O desdobramento ficcional não se produz tanto pela construção de um espaço imaginário, mas pela duplicidade da escrita que irrompe do texto. A prosaica escrita que ele [Bernardo Soares] vai lançando no papel é e não é "a historia inutil de uma firma". Se é essa referência que constitui o efeito de real, é essa, no entanto, a que é objecto de ficcionalização pelo próprio acto de escrita. A maior ficcionalidade advém, paradoxalmente, do elemento mais verosímil, porque mais prosaico: "a folha onde escrevo com cuidado, os versos da epopeia commercial de Vasques e Cª". A única convergência com o real é pois a de tomar a escrita escrevendo-se: "Avanço a penna para o tinteiro (...) Começo" (Ibid)."
Maria Augusta Babo, A escrita do livro, Lisboa, Vega, col. Passagens, 1993, pp.184-185.
"Na linguagem verbal, a voz e o gesto na oralidade e o traço da mão na escrita permanecem ainda como vestígios do corpo e é sobretudo por essas duas vias (da voz e do gesto), que irrompem o pulsional e o "impensado" da linguagem, provocando frequentes desencontros ou diferimentos entre a palavra dita e a entoação do dizer, ou entre a palavra dita e a gestualidade."
Maria Lucília Marcos, Princípio da Relação e Paradigma Comunicacional, Lisboa, Edições Colibri, 2007, p.50.
"A poesia não vem simplesmente da imaginação, nem da inspiração, nem do esforço. Ela extrai-se das coisas, dos dias que passam, e também dos livros de poesia. Não precisa de ser escrita, pode ser o efeito de um risco de um lápis, como é o caso da poesia de Fernando Pessoa aqui exposta. Esta poesia é formada materialmente pelos riscos de Pessoa que um dia, talvez sem intenção, a extraiu das Poésies de Mallarmé. Não se trata de simples frases, que depois se foram transmutando em poesia, escorrendo para as letras em português. É antes poesia material do lápis e de um olhar que desintegra o texto, libertando outros poemas que contém dentro. Subtraindo a Mallarmé algo que o complicava, simplificando-o absolutamente, e ao mesmo tempo criando as pontes por onde a poesia vai errendo em busca de poetas. Será absurdo dizer que encontrei um inédito de Pessoa?"
José A. Bragança de Miranda, Envios, uma experimentação filosófica na internet, Lisboa, Vega, 2008, pp.116-117.
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"A imagem da linha não é casual. Tal como, numa linha de escrita, o ductus da mão passa continuamente da forma comum das letras aos traços particulares que identificam a sua presença singular, sem que em nenhum ponto, apesar da precisão do grafólogo, se possa traçar uma fronteira real entre as duas esferas, assim, num rosto, a natureza humana passa de modo contínuo na existência, e precisamente esta incessante emergência constitui a sua expressividade."
Giorgio Agamben, A Comunidade que Vem, Trad. A. Guerreiro, Lisboa, Presença, 1993, p.23.
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"Mas devemos ser sensíveis, na obra completa de Pessoa, a um materialismo poético bastante particular. Se bem que seja um grande mestre da imagem surpreendente, este poeta reconhece-se à primeira leitura numa espécie de nitidez quase seca do dizer poético. É, aliás, por isso, que ele consegue integrar na própria sedução poética, uma dose excepcional de abstracção. Digamos que, constantemente preocupado com que o poema não diga exactamente aquilo que diz, Pessoa propõe-nos uma poesia sem aura. Não é nunca na sua ressonância, na sua vibração lateral, que é preciso procurar o porvir do pensamento-poema, mas na sua exactidão literal. O poema de Pessoa não procura seduzir ou sugerir. Por muito complexa que seja a sua composição, ele é em si mesmo, de forma cerrada e compacta, a sua própria verdade. Digamos que, ao contrário de Platão, Pessoa parece dizer-nos, que a escrita não é uma obscura reminiscência, sempre imperfeita, dum algures ideal. Que, pelo contrário, ela é o próprio pensamento, tal qual."
Alain Badiou, Meditações Filosóficas, Pequeno Manual de Inestética, Volume II, , trad. Joana Chaves, Ed. Instituto Piaget, 1999
"Mas devemos ser sensíveis, na obra completa de Pessoa, a um materialismo poético bastante particular. Se bem que seja um grande mestre da imagem surpreendente, este poeta reconhece-se à primeira leitura numa espécie de nitidez quase seca do dizer poético. É, aliás, por isso, que ele consegue integrar na própria sedução poética, uma dose excepcional de abstracção. Digamos que, constantemente preocupado com que o poema não diga exactamente aquilo que diz, Pessoa propõe-nos uma poesia sem aura. Não é nunca na sua ressonância, na sua vibração lateral, que é preciso procurar o porvir do pensamento-poema, mas na sua exactidão literal. O poema de Pessoa não procura seduzir ou sugerir. Por muito complexa que seja a sua composição, ele é em si mesmo, de forma cerrada e compacta, a sua própria verdade. Digamos que, ao contrário de Platão, Pessoa parece dizer-nos, que a escrita não é uma obscura reminiscência, sempre imperfeita, dum algures ideal. Que, pelo contrário, ela é o próprio pensamento, tal qual."
Alain Badiou, Meditações Filosóficas, Pequeno Manual de Inestética, Volume II, , trad. Joana Chaves, Ed. Instituto Piaget, 1999
 
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