"O único sentido íntimo das cousas
É elas não terem sentido íntimo nenhum."
Alberto Caeiro
1. Trata-se aqui de um breve apontamento. “O luar quando bate
na relva / Não sei que cousas me lembra … / Lembra-me a voz da criada velha /
Contando-me contos de fadas […] Se eu já não posso crer que isso é verdade, /
Para que bate o luar na relva?” (Alberto Caeiro, in O Guardador de Rebanhos (GR),
Poema XIX).
Como se “O luar quando bate na relva” fosse para qualquer coisa, para qualquer significado. Por outras palavras, como se o luar, quando batesse na relva, fosse
para ‘eu’ (Caeiro, na dessubjectivação heteronímica do mestre) crer em contos
de fadas. Por outras
palavras, como se fosse para que ‘eu’ (Caeiro, na dessubjectivação heteronímica do mestre)
creia em contos de fadas. Por outro lado, o bater o luar na relva é só isso enquanto tal: "Não sei que cousas me lembra …."Todavia, nem sequer é preciso
bater o luar na relva ("Para que bate o luar na relva?"), pois não é preciso para
nada. Desconstrói-se de um certo modo a linguagem; ou melhor, des-faz-se a frase “O luar quando bate
na relva", reentrando num outro
regime de sentido.
2. “Porque tudo é como
é e assim é que é, / E eu aceito, e nem agradeço, / Para não parecer [1] que
penso nisso…” (GR, Poema XXIII).
Mas como é que se chegou aqui? Caeiro opera um trabalho em que des-faz, de um certo modo, a linguagem no seu dizer (poético; e mesmo em verso : “Por mim, escrevo a prosa dos meus versos” (GR, Poema XXVII)), ao ponto de a re-fazer mantendo o leitor num duplo plano: o do modo em que se desfez o dizer e aquele em que se refez esse dizer, inscrevendo ainda um outro plano (‘3º’), ou grau, como tentaremos mostrar adiante.
Mas como é que se chegou aqui? Caeiro opera um trabalho em que des-faz, de um certo modo, a linguagem no seu dizer (poético; e mesmo em verso : “Por mim, escrevo a prosa dos meus versos” (GR, Poema XXVII)), ao ponto de a re-fazer mantendo o leitor num duplo plano: o do modo em que se desfez o dizer e aquele em que se refez esse dizer, inscrevendo ainda um outro plano (‘3º’), ou grau, como tentaremos mostrar adiante.
3. O que faz o poeta no
poema XXIII, antes de chegar aos três versos finais (“Porque tudo é como é e
assim é que é, / E eu aceito, e nem agradeço, / Para não parecer que
penso nisso…”)?
Primeiro, como que refaz:
1.º
“O meu olhar azul
como o céu
É calmo como a água ao sol.
É assim, azul e calmo,
Porque não interroga nem se espanta ...
Se eu interrogasse e me espantasse
Não nasciam flores novas nos prados
Nem mudaria qualquer cousa no sol de modo a ele ficar mais belo...” (sublinhado nosso)
É calmo como a água ao sol.
É assim, azul e calmo,
Porque não interroga nem se espanta ...
Se eu interrogasse e me espantasse
Não nasciam flores novas nos prados
Nem mudaria qualquer cousa no sol de modo a ele ficar mais belo...” (sublinhado nosso)
Depois, como que desfaz:
2.º
“(Mesmo se nascessem
flores novas no prado
E se o sol mudasse para mais belo,
Eu sentiria menos flores no prado
E achava mais feio o sol ...” (sublinhado nosso)
E se o sol mudasse para mais belo,
Eu sentiria menos flores no prado
E achava mais feio o sol ...” (sublinhado nosso)
Em seguida, refaz e desfaz, e vice-versa:
3.º
Desfaz e refaz, mas
já de outro modo. Um modo não alcançável somente pela linguagem, dita verbal,
nem pelo pensamento; mas agora, também, pela experiência sensacionista da constatação
activa do que é, enquanto tal, das coisas:
“Porque tudo é como é e assim é que é,
E eu aceito, e nem agradeço,
Para não parecer que penso nisso...)” (sublinhado nosso)
E eu aceito, e nem agradeço,
Para não parecer que penso nisso...)” (sublinhado nosso)
Mas, a bem dizer,
esta não se trata propriamente de uma terceira instância, grau ou plano (3º). Ou,
a sê-lo, remete para um 4º plano. Sendo que estes (3º e 4º) são o desdobramento
e deslocamento em aberto dos dois primeiros. Esta abertura faz com que não se
detecte em qual destes dois primeiros planos (1º refazer; 2º desfazer) o nosso
registo de leitura se move no momento em que se lê e vivencia a experiência
poética sensacionista e das “cousas”. Dá-se, pois, como que uma libertação da
linguagem num duplo sentido. 1º: o de uma linguagem que se liberta; 2º: o de
uma libertação relativamente à linguagem. Por exemplo: “Porque há homens que
não percebem a sua linguagem [da “Natureza”]. / Por ela não ser linguagem
nenhuma…” (GR, Poema XXXI).
Luís de Barreiros
Tavares
13/09/2014
[1] Nota dos
organizadores da edição citada: “Vars. a “parecer”; “saber” / “perceber”.”
Referências bibliográficas:
Fernando Pessoa, Poesia
de Alberto Caeiro, Organização de Fernando Cabral Martins e Richard Zenith,
Assírio & Alvim, 2009.
Imagem: pintura de Luís de Barreiros Tavares
Este texto publicou-se também:
http://ecosophyondigitalnetworks.blogspot.pt/2014/10/alberto-caeiro-e-as-coisas-ou-as-cousas.html
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