sábado, 10 de março de 2012

A oscilação na descrição em Fernando Gil - Uma leitura

           A oscilação na descrição em Fernando Gil - Uma leitura*

 
Resumo: O que está em questão neste breve estudo é a tentativa de analisar a «boa descrição» no seu carácter dinâmico e oscilatório segundo Fernando Gil: «a descrição oscila…». Dinâmico, implicando movimento e reenviando para «potência» no sentido etimológico grego de dýnamis. Dinâmico também enquanto potenciador de sentidos, mas partindo essencialmente da oscilação na descrição conforme indicamos no título. Apresentam-se e analisam-se vários exemplos dados por Fernando Gil no seu texto, a par de algumas reflexões que propomos, focalizando fundamentalmente o sentido do movimento analisado no seu texto. Portanto, respeitando e seguindo a linha de pensamento de Fernando Gil relativamente ao sentido de «oscilação» na «boa descrição».

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«Segundo o Petit Robert, descrever é «representar na sua totalidade por escrito ou oralmente». Também para o Littré, representar e pintar são os significados principais. Descrever e representar designam actos do pensamento. Mas descrever significa muitas outras coisas se nos referirmos a acepções mais antigas que subsistem na filosofia da descrição. Descrever e descrição têm que ver com o abstracto e o concreto, com o activo e o passivo. Descrever significa representar, pintar, traçar, exibir e, no séc. XVIII, escrever, consignar, formular (Grimm): a descrição prende-se com o abstracto. Mas descrever significa também apresentar (darstellen, Grimm), enumerar os caracteres de algo, pormenorizar: a descrição prende-se com o concreto ou com um movimento em direcção ao concreto. A descrição cola-se à coisa descrita, que é o seu conteúdo. O latim inclui sob a descriptio a descriptio locorum da pintura, bem como a delimitação, a determinação, a fixação (dos cargos de um magistrado, por exemplo). A descrição evoca então a figura destacando-se do fundo e o bordo que traça uma fronteira. Ela demarca o objecto que quer apreender na sua concretude, o seu modelo é a percepção. A descrição é «o ornamento do discurso que consiste em pintar com as cores mais vivas» (Littré).
A descrição é ainda do âmbito da «receptividade» e da «espontaneidade». Copia a coisa (latim) – passivamente. Tal é, de resto, o seu sentido enquanto representação; a descrição reproduz o dado. Mas na descrição a coisa põe-se a si própria; do lado do sujeito, encontramos essa dimensão de actividade em delimitação, fixação, «preenchimento» (v. vollschreiben, por exemplo implere paginam, Grimm), que constituem outros significados de descrever. A forma acabada desta descrição criativa inspira-se na geometria e na foronomia. Descrever uma curva é construí-la, os astros descrevem os seus movimentos efectuando-os.
A descrição é, por conseguinte, cópia e construção, representação indeterminada e apresentação «em carne e osso». É uma operação paradoxal. Estas hesitações lexicais estão subjacentes e alimentam a filosofia e a epistemologia da descrição no modo de problemas e aporias. Dizer que a descrição oscila entre o abstracto e o concreto leva a procurar categorias que lhe sejam próprias. Existem conceitos descritivos, a meio caminho entre os protocolos das observações e os conceitos explicativos? Dizer que a descrição é receptiva e ao mesmo tempo activa é interrogarmo-nos acerca da sua objectividade. A descrição «fiel» pretende ser factual. Mas, sendo uma «construção», ela contém a prioris, interpretações. Como conciliar a exigência de objectividade com o arbitrário da interpretação? Chamaremos à primeira questão categorização da descrição e à segunda, estatuto da observação. A avaliação da boa descrição depende de ambas. O que é bom na boa descrição, de onde vem o valor da descrição? Do seu teor informativo – e aprecia-se este teor pela sua «fidelidade»? Ou provém das suas virtualidades operatórias num contexto de inquérito – mas então como se mede a «operatividade»?
Concretude e factualidade apontam para os conteúdos, abstracção da representação e interpretação do dado são obra do sujeito. Por intermédio das categorias e da observação, a descrição envolve o sujeito e o objecto. A categorização refere-se eminentemente à matéria a descrever, a observação à intenção de descrever. A fronteira entre descrição e interpretação, seguindo a terminologia consagrada, é impossível de traçar. Toda a descrição está «carregada», se não de teoria, pelo menos de expectativas que predeterminam a sua orientação. E os contornos movediços da descrição parecem interdizer de imediato qualquer categorização. Sabemos, contudo, que fixar um facto é diferente de interpretá-lo e que, entre o percebido e a explicação, a observação tem o seu lugar.»
Fernando Gil, «A boa descrição» (páginas introdutórias, pp.195-197, ver bibliografia)

Leitura
Tenta-se analisar neste breve estudo o tema «oscilação» nas páginas introdutórias acima transcritas (pp. 195-197, cerca de uma página e meia num total de vinte e três) do artigo «A boa descrição» (pp. 195- 217) no livro de Fernando Gil (F. Gil) Modos de Evidência (Lisboa, INCM, 1986) (1).
Este texto é uma análise detalhada do que F. Gil designa por «boa descrição», segundo várias perspectivas no campo da «filosofia e da epistemologia da descrição» (p.196).
Todavia, abordaremos somente alguns pontos dessa parte introdutória, tendo em conta fundamentalmente o passo que inclui a questão da oscilação na descrição: «a descrição oscila […]». Trata-se de mostrar como esta questão é decisiva no texto de F. Gil. E porquê decisiva? Esta pergunta é o ponto de partida para desenvolvermos algumas reflexões que do nosso ponto de vista a fundamentam.
Oscilação, do latim oscillatio, oscillationis: oscillatio, (oscillo), acção de balançar, acção de baloiçar-se. Oscillum: 1. pequena cavidade no interior dos legumes, donde brota o embrião; 2. pequena imagem que se suspendia das árvores, para ser agitada pelo vento, em oferenda a Baco e Saturno, etc. (Ferreira, A. Gomes, Dicionário Latim-Português, Porto Editora).
F. Gil começa por fazer referência a alguns dicionários cujas definições de «descrição» vão no sentido do que o autor pretende reflectir segundo o seu ponto de vista: a) Descrever «é representar na sua totalidade por escrito ou oralmente» (Petit Robert) (p.195); b) A descrição « é o ornamento do discurso que consiste em pintar com as cores mais vivas» (Littré) (p.196).
No Vocabulaire Technique et Critique de la Philosophie de André Lalande (p.218) encontramos a seguinte passagem sobre a descrição: «Entre as "definições de coisas" Port-Royal distingue duas espécies: "uma mais exacta que tem o nome de definição; a outra menos exacta, que se chama descrição". Esta última é aquela que dá algum conhecimento de uma coisa através dos acidentes que lhe são próprios e que a determinam o bastante para dar alguma ideia que a distingue das outras. Logique de Port-Royal, 2ª parte, cap. XVI, Ed. Charles, 215)». Nesta linha, a descrição joga com uma componente de incerteza, de acidental e de indeterminação. Porquê de indeterminação? Porque «os acidentes (..) determinam o bastante [a descrição] para dar alguma ideia que a distingue das outras [descrições].» Quer dizer, determinam não rigorosamente, não rigidamente, mas aproximativamente («menos exacta»); daí «o bastante», ou seja, tanto quanto baste e, portanto, de algum modo indeterminadamente.
Sobre o sentido oscilatório da descrição podem registar-se alguns exemplos no plano do vocabulário ou de enunciados e interrogações. Vocabulário: «a descrição oscila», «hesitações», «operação paradoxal», «problemas e aporias». Enunciados e interrogações: «a descrição oscila entre o abstracto e o concreto»; «existem conceitos descritivos, a meio caminho entre os protocolos das observações e os conceitos explicativos?» «como conciliar a exigência de objectividade com o arbitrário da interpretação?»; «a fronteira entre descrição e interpretação, seguindo a terminologia consagrada, é impossível de traçar»; «os contornos movediços da descrição parecem interdizer de imediato qualquer categorização» (p.196).
Mas há também o aspecto delineador, no sentido de algo que se constrói à medida que é traçado de maneira não pré-definida: «Descrever uma curva é construí-la, os astros descrevem os seus movimentos efectuando-os» (p.196). O lugar da descrição será um lugar de trânsito, mas um lugar, ele mesmo, transitório. A partir de vários termos - «preenchimento» (v. vollschreiben, por exemplo implere paginam, Grimm), que constituem outros significados de descrever.» - podemos concluir que o movimento próprio do «preenchimento» sugere um processo que se vai fazendo, cujos limites - «contornos movediços» - nunca são completamente determináveis («representação indeterminada»). Há um jogo, digamos, de excesso e de defeito. E estas duas instâncias operam um processo complexo de câmbio mútuo: «A descrição evoca então a figura destacando-se do fundo e o bordo que traça uma fronteira. Ela demarca o objecto que quer apreender na sua concretude, o seu modelo é a percepção.» (p.195). Figura, fundo e bordo sugerem uma relação vazio-cheio e as suas implicações no «preenchimento».
«A descrição é, por conseguinte, cópia e construção, representação indeterminada e apresentação «em carne e osso». É uma operação paradoxal» (p.196). Torna-se manifesta uma espécie de instância intermitente. Talvez uma fina zona espectral que remeta nesse jogo para uma delimitação vibrante, pulsante e prenhe de sentido. Algo que releva a partir do seu próprio jogo de relevos. Tendo em conta as várias referências ao «representar», «pintar» e «traçar» citamos Henri Focillon a propósito do desenho no papel, exemplo que nos pode ajudar sem nos desviarmos do contexto: «Num desenho, o papel é elemento vital, está no centro. Uma forma não o é sem o suporte e o suporte já é forma» (A Vida das Formas).
Dizer oscilante não significa inconsistente. Damos o exemplo da metáfora da ponte ou de um edifício construídos de maneira a resistirem a sismos. Eles são, por um lado, oscilantes em potência e, por outro, oscilantes em acto quando sujeitos a esses fenómenos naturais. Digamos que são virtual e realmente oscilantes. Todavia, é precisamente essa estrutura oscilante que os ressalva da derrocada quando esta, evidentemente, não é inevitável. As suas estruturas comportam uma determinada flexibilidade de modo tal que, esta, sob o efeito de um abalo sísmico não colapsa tão facilmente como aconteceria se se tratassem de estruturas mais rígidas, aparentemente mais fortes, mas mais quebráveis, mais derrubáveis, etc.
Joga-se aqui a solidez e flexibilidade. Paradoxalmente a força da derrocada como que se harmoniza com a força de sustentação, transformando a própria concepção de contrários. Como que uma instabilidade, numa espécie de suspensão jogando-se com o imprevisível do colapsar, sem se fixar na rigidez de um equilíbrio à primeira impressão mais duradouro e preventivo. Assim, essas estruturas oscilam duplamente com a própria oscilação do solo (2). A ideia de oscilação não tem que sugerir obrigatoriamente fragilidade ou um sentido negativo de aporia, como em geral se tende a pensar. Mas antes reenvia para um sentido positivo de aporia: «Estas hesitações lexicais estão subjacentes e alimentam a filosofia e a epistemologia da descrição no modo de problemas e aporias.» (p.196). Assim, os «problemas e aporias» abrem caminho para a «boa descrição».
A oscilação pode supor um movimento pendular - tal como a sua etimologia indica e se viu acima - remetendo para um sentido de reactivação.
Há aqui um aparente binómio: 1. «representação indeterminada» e 2. «presentação em «carne e osso» [determinada, entenda-se].» No entanto verifica-se uma nuance. O «indeterminado» está em jogo com o «determinado». Se o determinado e o indeterminado estão em jogo, podem permutar-se um no outro numa tensão criadora e pro-dutora que constitui a descrição, a «boa descrição», nas palavras de F. Gil. A descrição é determinada e indeterminada: «A descrição é, por conseguinte, cópia e construção indeterminada e apresentação em «carne e osso» (p.196).
O mesmo se pode dizer quanto à relação da descrição com o abstracto e o concreto. O que mostra como a oscilação desempenha um papel decisivo na descrição, no abstracto e no concreto: «… a descrição oscila entre o abstracto e o concreto …»; «a descrição prende-se com o abstracto […] a descrição prende-se com o concreto» (p.195). Trata-se de dois planos: o concreto e o abstracto. No entanto não nos detenhamos no «prende-se», mas antes no movimento oscilante que se des-prende , se desloca de um plano para o outro partindo, no entanto, como F. Gil aponta, de «um movimento em direcção ao concreto»: «a descrição prende-se com o concreto ou com um movimento em direcção ao concreto.» Deste modo, focalizamos o carácter dinâmico a par do oscilatório, ambos investidos de movimento e potenciadores de sentido na «descrição». Porquê potenciadores de sentidos? Porque a descrição reenvia para a «interpretação», «teoria» e «expectativas»: «A fronteira entre descrição e interpretação, seguindo a terminologia consagrada, é impossível de traçar. Toda a descrição está «carregada», se não de teoria, pelo menos de expectativas que predeterminam a sua orientação» (p.196).
Qualquer uma das instâncias («a representação indeterminada e a presentação em « carne e osso»») pode ser a zona de indeterminabilidade, por um lado, e de determinabilidade, por outro, da outra. A aparente dualidade em questão desdobra-se em várias dualidades que, nessa perspectiva, fazem com que o vulgar critério dual perca a sua pertinência.
Mas o problema não se reduz a evitar ou não um critério dual, o binómio, sob pena de não se sair de uma dialéctica com um terceiro termo. Tanto o «determinado» como o «indeterminado» poderiam ser linhas divisórias entre dois pólos. E cada um desses pólos seria por sua vez indeterminado ou determinado consoante os pontos de vista, desde que fossem perspectivados ora a partir de um, ora a partir de outro, tendo em conta aquelas linhas divisórias, por seu turno, determinadas ou indeterminadas. Todavia, não se pondo de parte a possibilidade de qualquer outro ponto de vista a partir de fora dos dois pólos.
O que daqui decorre é não só um novo sentido de múltiplo, mas também, precisamente, um novo sentido de descrição, saindo-se de uma certa rigidez de «categorização». Por isso, repetimos, «os contornos movediços [oscilantes também] da descrição parecem impedir à partida qualquer categorização» (p.196). No entanto, «dizer que a descrição oscila entre o abstracto e o concreto leva a procurar categorias que lhe sejam próprias».
Por assim dizer, a descrição, do ponto de vista de F. Gil, apela à definição categorial. Neste sentido, digamos que a descrição, a «boa descrição», reenvia para um requestionamento da de-limitação, da de-terminação, da de-nominação, mas também para uma nova perspectiva da de-finição. Contudo, é a oscilação na descrição, o carácter oscilatório e dinâmico da descrição enquanto «boa descrição» que traz um novo e outro fôlego a este requestionamento. Eis algumas possibilidades do que significa a «boa descrição» segundo Fernando Gil.
Luís de Barreiros Tavares
3/12/2011
* Isto não é uma recensão.
(1) Ver também este artigo de Fernando Gil (1998), «La bonne description», Enquête, 6, pp. 129-152.
(2) Lembramos aqui Heraclito: «Eles não compreendem como, separando-se, podem harmonizar-se: harmonia de forças contrárias, como o arco e a lira» (Heraclito, frg. 51). Se na separação há harmonia, quer dizer, se «separando-se podem harmonizar-se», como diz o fragmento, então, na harmonia, ou melhor, na harmonização, há sempre-já outro modo de separação (tendo por suposto que, numa primeira análise se opõem harmonia e separação). Mas, por outro lado, se, como se disse agora, na harmonia, na harmonização, há separação (de outro modo, já numa segunda análise), então, na separação sempre-já há outro modo de harmonia, de harmonização (em condições análogas de primeira e segunda análise). Projectiva e retrojectivamente. Isto apela a uma reflexão sobre o tempo. Porém, essa reflexão exigiria mais dados de que não dispomos de momento, para além do que não é este o lugar para reflectir sobre esta questão.
Bibliografia:
Gil, Fernando, Modos de Evidência, Lisboa, INCM, 1986.
Gil, Fernando (1998), «La bonne description», Enquête, 6, pp. 129-152.
Gil, Fernando, La Logique du Nom, Paris, L’Herne, 1971.
Ferreira, A. Gomes, Dicionário Latim-Português, Porto Editora.
Focillon, H., A Vida das Formas, Lisboa, Ed.70.
Lallande, André, Vocabulaire Technique et Critique de la Philosophie, Paris, PUF, 1985.
Bornheim, Gerd. A., (org. e trad.) Os Filósofos Pré-Socráticos, S.Paulo, Cultrix, 1977.
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