Luís de Barreiros Tavares
I
“Sócrates –
Dizem, caro amigo, que os primeiros oráculos no templo de Zeus, em Dodona,
foram feitos por um carvalho! É evidente que os homens daquele tempo não
eram tão sábios como os da nossa geração e, como eram ingénuos, o que um
carvalho ou um rochedo dissessem tornava-se muito importante conquanto lhes
parecesse verídico! Mas para ti talvez interesse saber quem disse determinada
coisa e de que terra é natural, pois não te basta verificar se essa coisa é
verdadeira ou falsa!”
(Platão, Fedro, 275 c, trad. Pinharanda
Gomes, Lisboa, Guimarães, 1986)
Uma nota que me tem despertado alguma reflexão,
dizendo respeito às filosofias nacionais[1].
A filosofia pretende-se também universal ecoando a afirmação de Aristóteles na
Metafísica: “Só há ciência do universal (katholou).” Pois no contexto do
Estagirita a ciência foi enunciada num âmbito mais abrangente abarcando a
dimensão filosófica. Ora, mesmo que a filosofia tenha raízes na tradição
ocidental greco-europeia, ela universalizou-se acrescendo ao chamado global. Global, quer na vertente
anglo-saxónica, com a língua inglesa (estendendo-se aos EUA), quer na dita
europeia, "continental" (designação atribuída pelos filósofos
analíticos), curiosamente com a consolidação e expansão da língua inglesa para
ambas. Pois muitos dos filósofos na Europa recorrem frequentemente ao inglês
para alargarem o espectro do público e leitores, ou, como se diz hoje, para
adquirirem mais “visibilidade”.
É que esta questão das línguas também tem que se lhe
diga, embora eu não seja o mais competente para analisá-la. Mas a título
pontual leiamos um interessante passo de Fernando Belo: “[…] a língua inglesa,
que hoje presta excelentes serviços de língua internacional nas trocas
comerciais, tecnologias e turismos, justamente por, apesar da sua origem saxónica,
ser uma língua de muito pobre morfologia; mas também é essa característica que
parece justificar a tendência empirista e pragmática dos textos anglófonos, a
dificuldade dum intelectual inglês que uma vez me confessou não poder pensar
sem o recurso aos latinismos da sua língua”[2].
Curiosamente, apesar de se supor que a filosofia é
universalizante, permanece todavia qualquer coisa ao nível das línguas
marcando-se pelo interesse ou pretensão em afirmar a filosofia segundo esta ou
aquela língua. Com efeito, a filosofia tida geralmente como a mais divulgada e
representativa, por assim dizer, move-se em autores alemães, franceses,
ingleses, poderíamos continuar pelos italianos, etc., passando depois por
muitas outras nações e línguas incluindo Portugal, Brasil, etc. Mas a filosofia
vai mesmo desde há umas boas décadas até aos EUA. Reiterando, pode dizer-se,
mais do que nunca, que ela é universalizante e globalizou-se. Temos até um
Slavoj Zizek, esloveno, que praticamente só fala inglês, Pop Star,
Superstar da cultura com uma projecção mediática nunca vista até hoje,
de Tóquio a Nova York. Ele move massas à escala da “teoria” e da “crítica da
cultura”; veja-se o sucesso dos seus vídeos no Youtube.
Mas voltemos ao universalizante. É que, a bem dizer,
persiste a vontade de cada nação, principalmente – e
curiosamente – as mais relevantes no panorama mundial, digamos assim, em
reclamar para si, desta ou daquela maneira a preponderância do seu pensar, das
suas mensagens, neste caso filosóficas. Quer dizer, a vontade de fazer-se
representar, a vontade de representação da sua cultura em sentido
lato, incluindo a dimensão filosófica. Isto com todas as polémicas e
controvérsias que poderão suscitar hoje as formas de “fazer passar a mensagem”.
Pois, saber actualmente quem joga ou, pelo contrário, é jogado, nisto de fazer
passar a mensagem, ou quando ambas as instâncias parecem confundir-se de
maneira ainda por pensar, constitui um tema que já por si faria correr muita
tinta.
Por outro lado, é curioso que o inglês é o veículo
mais facilitador, como acima tentámos exemplificar com a passagem de Fernando
Belo. Seja-se francês (Alain Badiou, p.ex., vj. no Youtube o EGS - European
Graduate School, fundado na Suíça), espanhol, italiano (p.ex. Giorgio
Agamben[3]
recorre ao inglês no EGS), alemão (p. ex., Peter Sloterdijk[4]
e alguns outros que quase nunca prescindem da sua língua natal), etc. Mesmo
hoje, em Portugal, opta-se pelo inglês em certos Colóquios, Congressos e outros
eventos.
Mas retomando a questão central deste texto. Ora, não
é curioso como o nacional se insinua por vezes no internacional? Por exemplo,
Heidegger reclamava um eixo fundamental linguístico entre a língua alemã e a
grega antiga. Sabendo nós que, automaticamente, partindo desta tese, se
estabeleceria a ponte entre a origem, o chamado berço do pensamento filosófico
europeu-ocidental (Grécia) e a filosofia alemã, quer dizer, entre a
"filosofia grega" e a "filosofia alemã".
Dir-se-ia que Álvaro Ribeiro, em 1943, segue nesta
linha (“tradução directa, exacta e
inequívoca dos textos gregos e alemães”). Mas apenas como base de
sustentação para outras questões. Ele refere – advertindo, ao mesmo tempo – a
influência nos últimos séculos [na cultura portuguesa] do “intermediário
francês”: “O primeiro trabalho será o de
fixar a nomenclatura e de enriquecer o vocabulário, para que venha a ser
possível a tradução directa, exacta e inequívoca dos textos gregos e alemães
[filosofias grega e alemã, bem entendido]. Por demasiadamente se ter referido,
nos últimos séculos, ao intermediário francês [filosofia francesa, por assim
dizer], encontra-se o nosso vocabulário filosófico comprometido com postulados,
definições e classificações que não pertencem à linha directriz da nossa
espiritualidade; de tal facto resultam dois inconvenientes: o obstáculo à
inteligência directa de outros tipos de mentalidade e a mudez inevitável de
certas tendências latentes do pensamento nacional. Importa solver este problema
de autêntica filologia” (Ribeiro, A., O Problema da Filosofia Portuguesa[5],
1943, p. 67). “Filologia”, e acrescentaríamos com uma designação actual: “Lusofonia”;
em continuidade: “Filosofia lusófona” (vj. nota de
rodapé “6”).
Voltando ao eixo filosófico greco-alemão segundo
Heidegger. Não obstante admirar a obra deste grande pensador, pergunto-me: isto
não é nacionalismo filosófico puro dissimulando-se no/com o Universal e no/com
o Internacional (neste caso, e implicitamente, Alemanha e Grécia)? Para não
falar no seu fito, segundo consta – fase passageira, é certo –, de se tornar o
teórico ou um dos grandes teóricos e ideólogos, precisamente filosóficos do “Partido
Nacional Socialista” alemão de Hitler com o seu Sein und Zeit e
o Dasein[6].
E a filosofia da Grécia Antiga é universal,
internacional ou nacional? Voltemos a Zizek. Goste-se ou não, ele tem uma
projecção global (universal?) nos moldes dos nossos dias, sejam ou não os
melhores, garantam ou não o devido peso. Há filosofia eslovena? Há mais de duas
décadas Zizek candidatou-se à presidência da Eslovénia (1990), sem sucesso. Ele
quereria servir a sua nação, o seu país, a sua pátria, ou, com isso, mais ainda
a promoção da sua obra ganharia a força pretendida? O seu gesto pôde muito bem
ser meritório e digno. Mas que megalomania insuspeitada ou nascente poderá por
vezes estar subjacente a um filósofo seja ele produtor de uma grande obra
filosófica, seja ele ou não um grande pensador? Que ideias estão por vezes por
detrás? O exemplo que se deu acima de Heidegger poderá ilustrar isso.
Todavia, não esqueçamos que se faz aqui um levantamento de questões. Com
efeito, Heidegger e a sua obra nem pouco mais ou menos se limitam
àquele breve mas muito grave episódio. Mas adiante…
Se os “grandes” (autores e/ou nações) supostamente
universais se reclamam, lá no fundo, nacionais, sem que por vezes nos demos bem
conta ou peso disso, por que razão os pré-supostos “pequenos” não terão a
legitimidade de se atribuírem a seu modo o nacional? E «o nacional é bom», como
dizia um antigo anúncio publicitário. Mais, nestas questões quem define quem é
grande e quem é pequeno, quem é universal e quem não o é?
Retomando de um outro modo a questão controversa das
filosofias nacionais, afinal, mais universais, e vice-versa, do que é comum
pensar-se, como vamos tentando mostrar neste breve texto. Saber o que é uma
filosofia nacional, comporta, já de si, indagar das condições de possibilidade,
a questionar o que são filosofias nacionais. E isso vale para qualquer nação,
pátria, como alguns sublinham, para qualquer língua que pensa. E não é um facto
que permanentemente certas vertentes e tonalidades filosóficas nacionais se
dissimulam sob a aparência do universal, seja qual for a nacionalidade, como já
o tentámos mostrar?
Retomemos a questão, mostrou-se acima como por vezes
algo tido como pensamento de teor não nacional e não nacionalista,
pretensamente universal, poderá trazer, ou pretender trazer consigo indícios
linguísticos nacionais e nacionalistas. Duplo movimento complexo. Eis o que
importa também pensar nestes contextos. O que importa reflectir sobre estes
movimentos de pensamento, sejam propósitos dignos ou não.
A filosofia dita portuguesa – ou “lusófona”, como
pertinentemente é hoje ventilado[7]
– não tem qualquer prioridade sobre a perspectivação de outra filosofia
hipoteticamente nacional. Nem, pelo contrário, qualquer outra sobre ela. Quer
dizer, mais uma vez, importa a questão enquanto tal. Interrogação, questão da
questão, abrindo, por si mesma, espaço e tempo de pensamento.
José Marinho no seu texto “Filosofia Portuguesa e
Universalidade da Filosofia” na linha de Álvaro Ribeiro em O Problema
da Filosofia Portuguesa (ver
acima) ilustra muito bem a problemática implícita das
filosofias nacionais, focando a da filosofia portuguesa e a universalidade da
filosofia dando o seguinte exemplo: “Que o haver laranjas de Setúbal, assim
como nos permite e nos autoriza chamar-lhes laranjas portuguesas do mesmo passo
aos deliciosos frutos e seu conceito não retira à forma única e universal sabor
ou sentido”[8].
Curiosamente há três instâncias: "laranjas de Setúbal",
"laranjas portuguesas" e as laranjas, cujo sabor e sentido é
universal. Antes, na p.9 pode ler-se: “Alguns
dos homens mais inteligentes do País colocam-nos na urgência de examinar a
questão.” De examinar, de questionar a questão. Mas também questionar a
potência da indignação pelo facto de essa mesma questão ser
impossibilitada, a priori,
ou de considerar-se que não vale a pena, por pressupostos estabelecidos, dados
e adquiridos, ou por se supor à partida uma questão menor. A par disto, qual a
viabilidade de pensar “o que é isso, da filosofia”? Quer dizer, “ o que é isso,
da – a que se chama, quer dizer, que
dá pelo nome de – “filosofia”? Ou por
outra: o que é isso, aquilo (o que) a que se dá o nome de “filosofia”?
Pergunta fundamental, indagando sobre a própria pergunta sobre o nome ou
palavra “filosofia”. “Que é isso, da filosofia?” De outro modo, esta questão
talvez abra caminho à reformulação da questão “o que é”, reformulando-a sobre a
primeira: “o que é (isso, da - de a)
filosofia?”. E: “o que é isso, do ser?”. Para Aristóteles é a pergunta
fundamental da filosofia a par do que é a “substância” (Metafísica, 1028
b)[9].
É preciso também desmistificar a palavra
"filosofia". E de alguma maneira desmitificá-la. Por outro lado, a
Filosofia traz o Logos sobre o Muthos. No entanto,
quem nos assegura que este não se insurge naquele, só por os confundirmos de
tanto os distinguirmos? Poderemos ver então outra reformulação de como Muthos e Logos podem
encontrar um novo nexo ou um novo diálogo. Não é isto que nos podem trazer
felizmente certas leituras e vertentes constitutivas da chamada Filosofia
Portuguesa? Não é ela por alguns vista como tendendo exclusivamente para o
Mito?
Mas, por vezes os filósofos tendem a personificar a
Filosofia sem dar por isso. Tão-pouco ela é uma entidade. Pois a entificação da Filosofia poderá traduzir
um complexo de superioridade da mesma.
Quando Heidegger pergunta pelo sentido do ser no
início de Ser e Tempo – na esteira da diferença ontológica
fundamental do ser e do ente, e da sua crítica da onto-teo-logia metafísica do
Ser como ente[10]
– essa pergunta não se traduzirá também na potência da pergunta na sua
multiplicidade de perguntas possíveis sobre si mesma e sobre o ser como
sentido?
Voltando à questão filosofias nacionais/filosofias
internacionais. Esta questão não se constituirá, portanto, no questionamento
legítimo sobre, precisamente, o questionar acerca da possibilidade de eventuais
ou virtuais elementos nacionais, legítimos ou não e estruturais também, dos
mais variados, em qualquer filosofia? Foi o que se tentou mostrar nesta
primeira parte. Pode parecer redundante, repetitiva esta série de questões. Mas
questionar implica também um recuar re-forçado,
instalando, correlativamente, uma força de avanço, de balanço que constitui o
buscar, o pesquisar enquanto potência de repetição, abrindo-se como futuro. Em
nosso entender o levantamento destas questões é pois pertinente.
II
“Para
começar, agradeço o facto de me considerarem paradoxal. Como vejo sempre no
heterodoxo o ortodoxo do outro lado, creio que aquilo que realmente nos pode
unir é o paradoxal. O existir e não existir ao mesmo tempo é, do meu ponto de
vista, a união final das coisas, e isso é o paradoxal.”
Há paradoxos e paradoxos. E Agostinho da Silva
compreendeu bem isso. A indignação perante uma certa impossibilidade de pensar,
incutida, através de preconceitos (pré-conceitos) muitas vezes insuspeitáveis,
garante a indagação sobre a questão que, ao questionar e questionar-se por si/e
a si mesma, abre-se a outra, a outras questões que à partida eram tidas como
inquestionáveis e não pertinentes nesse contexto. Evocamos aqui a potência do
espanto (thaumazein; vj. Aristóteles, Metafísica. A2:
"as coisas serem como são"). Espanto, questionamento originário,
constituindo-se como interrogação (de certo modo negação latente) e exclamação
(de certo modo afirmação latente). Constatação já de um certo saber e não
saber.
Todavia, o espanto é motivo para os homens
filosofarem, segundo o estagirita (vj. também Platão Teeteto 155d)[12].
Para não falar no grande Sócrates.
Retomemos a primeira epígrafe da 1ª parte deste texto:
“Sócrates – Dizem, caro amigo, que os
primeiros oráculos no templo de Zeus, em Dodona, foram feitos por um carvalho!
É evidente que os homens daquele tempo não eram tão sábios como os da
nossa geração e, como eram ingénuos, o que um carvalho ou um rochedo dissessem
tornava-se muito importante conquanto lhes parecesse verídico! Mas para ti
talvez interesse saber quem disse determinada coisa e de que terra é natural,
pois não te basta verificar se essa coisa é verdadeira ou falsa!” (Platão, Fedro,
275 c).
Nada mais favorável. O dado adquirido e o nome sonante
- ou tornado sonante - vão de par. Mas o nome sonante pode tornar-se a qualquer
momento uma colagem. Porque ao nome pode colar-se a imagem e o texto. E pode
ocorrer que, às tantas, já não lemos o texto mas o nome; ou pior, um acréscimo
ocorre como pura imagem de marca, e de um certo mercado, como é óbvio! Às vezes
somos antecipados por colagens de nomes a significados. É o que mostra o passo
do Fedro acima citado: Mas
para ti talvez interesse saber quem disse determinada coisa e de que terra é
natural, pois não te basta verificar se essa coisa é verdadeira ou falsa!”[13].
O seguidismo daqueles que, raramente abrindo
excepções, seguem sempre nomes estrangeiros, ainda que nomes de várias origens,
países ou continentes, não estarão, no revés, a ser nacionalistas, portanto,
pela negativa? Estranhos nomes, e quanto mais estranhos melhor. Com dificuldade
mas deleite em pronunciá-los, com muito estilo. Noutro plano, o exemplo do
futebol é ilustrativo. Com os novos nomes esquisitos que vêm lá de fora no
início de cada época, etc., aparecendo nas manchetes dos jornais desportivos. Porquê?
Voltemos à filosofia. Porque no internacionalismo
universalizante das suas opções, ou, se quisermos, a qualquer área da cultura –
quando é numa certa tendência pretensamente estrangeirada – só dão relevância
ao que é exclusivamente, e a priori,
de outra nacionalidade que não a sua.
Não só são nacionalistas pela negativa. São, antes, um
estranho avesso. Um avesso ainda impensado. Portanto, não dão conta que recaem
de alguma maneira no desnível (as subestimações culturais em sentido lato) que pré-supõem, e de que pretensamente se
julgam excluir, incluindo-se. É nesse
deslize – nesse descair desfavorável, e que não é um assentar de impulso – que
a força daqueles mesmos que desfavorecem, se enfraquece e se auto-substima, ou
seja, a começar evidentemente por eles. Isto para aqueles que,
tendencialmente, têm por sistema dizerem e/ou pensarem mal do seu país, seja
ele qual for (de ‘X’ país, de ‘X’ nação, etc.). Alguma analogia poderemos
encontrar no seguinte passo de Fernando Pessoa abrindo um texto (“Contra a
‘Síndroma Provinciana’ – ‘O provincianismo português’”(1928)[14]):
“De igual doença enfermam muitos outros
países, que se consideram civilizantes com orgulho e erro.” Mas só lendo o
texto de Pessoa poderemos ter eventualmente uma noção do contexto e do seu
alcance como chamada de atenção (“Contra a…”).
Falamos daqueles que maldizem num regime de
argumentação banalizado, acrítico (e isto também atinge gente dita de cultura),
dizendo todos mais ou menos o mesmo acerca de um determinado conjunto (conjunto
de pessoas; poderemos pensar aqui na teoria dos conjuntos em matemática?), sem
darem conta disso, mas afinal pertencendo-lhe (a esse conjunto), cada um
supondo excluir-se dos outros. Esta expressão, tão frequente em Portugal, é
sintomática e esclarecedora: “É o país que somos.” Estranho paradoxo. Mas, até
a Europa, hoje, não anda a mirar-se muito bem ao espelho…
Por outras palavras, e reiterando, estarão a ser
nacionalistas do avesso. Uma vez que, no que respeita a vários campos do saber,
nomeadamente a filosofia, que é o que aqui está principalmente em causa, seguem
sempre, ou quase sempre, o que é estrangeiro como prioritário e, por
pré-conceito, de maior grandeza de pensamento. Quer dizer, algo que se traduz
como regra geral no modo de pensar por parte de certas camadas,
intelectualizadas ou não[15].
Por outro lado, é evidente que a autocrítica e o
espírito crítico são essenciais[16].
Mas não é interessante que alguns supostamente tidos
por “estrangeirados” acusem de provincianismo alguns supostamente tidos por
“não-estrangeirados”, e reciprocamente? Fernando Pessoa também falou do
provincianismo português. Evidentemente que estas questões dão que pensar. E
haverá com certeza que ter em conta argumentos possíveis de ambas as partes.
Mas não avancemos muito sobre isto. Indica-se apenas mais uma passagem, o
último parágrafo de “Contra a ‘Síndroma Provinciana’ – ‘O provincianismo
português’”, para se ler mais: “Para o
provincianismo há só uma terapêutica: é o saber que ele existe. O
provincianismo vive da inconsciência; de nos supormos civilizados quando o não
somos, de nos supormos civilizados precisamente pelas qualidades por que o não
somos. O princípio da cura está na
consciência da doença, o da verdade no conhecimento do erro. Quando um doido
sabe que está doido, já não está doido. Estamos perto de acordar, disse
Novalis, quando sonhamos que sonhamos.”
Todavia, de um certo modo, para fazer face a estas
questões é preciso saber pô-las, também, de lado, defendendo pontualmente que o
problema essencial não é esse. Convém mesmo guardar silêncio de vez em quando,
e não embarcar sempre nesse barco de discussões. A palavra também guarda
silêncio. Ou, por outras palavras, fazer suspensão, epochê, ou
‘redução’ do problema, para pensar na linguagem de Husserl. É que todo e
qualquer problema pode tornar-se circularmente fechado. A sua abertura permite
pensá-lo sob múltiplos ângulos.
A filosofia, desde a sua instalação na tradição
greco-europeia-ocidental caracteriza-se em grande parte pela abstracção (aphairesis)
definida por Aristóteles: “pensamento das
coisas que estão incorporadas na matéria como se não estivessem”
(Aristóteles, De anima, III, 431b). Mas a abstracção pode por vezes
incorrer em perdas de sentido das coisas. Não será ela um dos possíveis
problemas da metafísica? A filosofia corre esse risco. As abstracções dos
rótulos e das etiquetas, paradoxal e incompreendidamente coisificados,
concretizados. Seja na filosofia espanhola, chinesa, francesa, holandesa,
dinamarquesa, alemã, mexicana, portuguesa, filipina, angolana, belga,
austríaca, peruana, coreana, ou lá o que se queira, etc.
Este texto que aqui escrevemos também pode padecer de
abstracções a muitos olhos. Mas, há várias abstracções, que Pessoa, por
exemplo, faz questão de frisar. Veja-se o seu texto “Princípios do
Sensacionismo” no âmbito da reflexão sobre a arte, onde pode ler-se: “Assim, a arte tem por assunto, não a
realidade (de resto, não há realidade, mas apenas sensações artificialmente
coordenadas), não a emoção (de resto, não há propriamente emoção, mas apenas
sensações de emoção), mas abstracção. Não a abstracção pura, que gera a
metafísica, mas a abstracção criadora, a abstracção em movimento. Ao passo que
a filosofia é estática, a arte é dinâmica; é mesmo essa a única diferença entre a arte e a
filosofia” (Páginas Sobre
Literatura e Estética, ed. Europa-América, org. António Quadros, 1986)[17].
Mas, por vezes é preciso pensar: “já não é de certas
questões que se trata.” Ou melhor, a sê-lo, trata-se antes de questionar sobre
o modo como elas já diferentemente devem ser questionadas, quer dizer,
reformuladas. Uma vez que já não fazem sentido nem sequer existem segundo
certas perspectivas ou momentos. É que por vezes não é ocasião para certas
questões. Dar azo a que as questões possam sempre outrar-se, para
usar um termo de Pessoa. Pessoa que não saiu de Lisboa, excepto quando foi para
Durban viver a sua infância e primeira juventude, voltando depois. Pessoa, nos
nossos dias lido de Tóquio a Nova York. Pessoa que também escreveu sobre o
Quinto Império, correlativo, como se sabe, do Espírito e dos
Mares, que Agostinho da Silva tanto e tão bem pensou[18].
Pessoa poeta, cujo pensamento produz infindáveis leituras. Aliás, não haverá
pensamento e filosofia em Pessoa, mesmo na sua escrita poética, na sua arte de
escrita?
O filósofo francês Alain Badiou, na abertura do seu
texto “Uma Tarefa Filosófica: Ser Contemporâneo de Pessoa”, escreve: “Pessoa, falecido em 1935, só foi conhecido
em França, de forma um pouco mais vasta, cinquenta anos mais tarde. Eu
incluo-me nesta demora escandalosa. Porque se trata dum dos poetas decisivos
deste século e, particularmente, se se procurar pensá-lo como condição possível
da filosofia.” E na segunda página: “Impõe-se, assim concluir que a filosofia
não está, não está ainda, condicionada a Pessoa. Ela não pensa ainda à altura de Pessoa.” E: “Sustentaremos que a linha de pensamento
singular desenvolvida por Pessoa é tal, que nenhuma das figuras estabelecidas
da modernidade filosófica está apta a suportar a sua tensão” (Meditações
Filosóficas – Pequeno Manual de Inestética, Vol. II, trad. Joana Chaves, ed.
Inst. Piaget, 1999)[19].
Por outro lado, é curioso que José Gil, no seu livro Diferença e
Negação na Poesia de Fernando Pessoa, Relógio D’Água, 1999, p.133, escreva:
“”O pensamento” de Fernando Pessoa não
existe, se entendermos a expressão no sentido de um todo sistemático e fechado,
logicamente coerente e acabado.” E mais à frente acrescenta citando-o e
comentando: “Ele mesmo, reivindicou o
direito de ‘mudar de filosofia como quem muda de camisa’. Além do mais, a sua coerência e
sistematicidade são de uma outra natureza.“ (op. cit. p.133).
Aproveitando estas linhas sobre Pessoa, citamos um passo do livro de Renato
Epifânio (Via Aberta): “Quem
considera que Pessoa não é um filósofo por essa razão [“de que jamais forjou um
“sistema filosófico” propriamente dito”] tem, no entanto, que atender ao
seguinte: se, efectivamente, Pessoa jamais forjou um “sistema filosófico”
propriamente dito, isso, em si mesmo, no caso pessoano, é já uma posição
filosófica. Com efeito, se há alguma tese que Pessoa, em nome próprio ou
heteronimamente, sustenta, procura sustentar, ao longo de todas estas páginas [“Textos Filosóficos”], é, precisamente, a da impossibilidade –
filosófica, saliente-se – de forjar, de fundar, um “sistema filosófico””[20].
A questão da
filosofia portuguesa é uma entre as muitas questões da filosofia e do
pensamento em Portugal[21].
Estas questões carecem de discussão com outras que não portuguesas que não em
Portugal, não importa de onde. Deste modo, a questão sobre a questão da
‘filosofia’ talvez fizesse mais sentido. Como? Pondo-a, de vez em quando, a par
daquelas, as filosofias nacionais e as internacionais, colocando em diálogo muitas
questões imprevistas e novas, garantindo uma melhor compreensão do mundo na sua
espantosa interrogação. Mas por cá parece haver agora qualquer coisa como uma
lufada de ar fresco que nos faz pensar melhor e de outro modo estas e outras
questões como forças de pensamento e de filosofia.
______
Referências:
Aristóteles, Metafísica,
ed. trilingue [grego, latim, castelhano], trad.
Valentin García Yebra, Madrid,
ed. Gredos, 1990.
Aristote, De
l'Âme, trad. nouvelle et notes J. Tricot, Vrin, 1934.
Badiou, A., Petit Manuel
d’Inesthétique, Paris, Seuil, (1ª ed. 1998)); ed. portuguesa: Meditações Filosóficas – Pequeno
Manual de Inestética, Vol. II,
trad. Joana Chaves, Lisboa, ed. Inst. Piaget, 1999).
Badiou, A., Le siècle,
Paris, Seuil, 2005.
Epifânio, R., Via Aberta, de Marinho a Pessoa, da Finisterra ao
Oriente, Sintra, Zéfiro, 2009.
Gil, J., Diferença e Negação na Poesia de Fernando Pessoa, Lisboa, Relógio D’Água, 1999.
Heidegger, M., Être
et Temps, trad. François
Vezin, Ed. Gallimard, 1986.
Marinho, J.,
Estudos Sobre o Pensamento Português Contemporâneo, Biblioteca
Nacional.
Pessoa, F., Páginas
Sobre Literatura e Estética, Lisboa, Europa-América, org. António Quadros,
1986.
Pessoa, F., Textos de Intervenção Social e Cultural – a ficção dos
heterónimos, Lisboa, Europa-América, org. António Quadros, 1986.
Platon, Théétète, trad. E.Chambry, Paris, Flammarion, 1967.
Platão, Fedro,
275 c, trad. Pinharanda Gomes, Lisboa, Guimarães, 1986.
Ribeiro,
A., O Problema da Filosofia Portuguesa,
Lisboa, Inquérito, 1943.
Santo, Luís C. do E., Vivências, Cartas da
América, Lisboa, Ésquilo, 1998.
Silva, A. (Entrevista a Agostinho da Silva) in Revista Filosofia (Sociedade Portuguesa de Filosofia), nº2,
1986.
Tavares, L. B., «Homenagem a Luís
do Espírito Santo, Leitor de Leonardo Coimbra», in revista Nova Águia, nº11, 1º semestre, 2013, pp. 98-99, Zéfiro. http://escrita-fone.blogspot.pt/search?q=lu%C3%ADs+do+esp%C3%ADrito+santo
Tavares, L. B., «António Quadros, Leitor e Divulgador de
Fernando Pessoa», in revista Nova Águia, nº12, 2º semestre, 2013, pp. 57-58, Zéfiro. http://escrita-fone.blogspot.pt/search?q=ant%C3%B3nio+quadros
[1] Este ensaio foi publicado em duas partes (“I” e “II”)
em datas diferentes no blogue Milhafre, tendo entretanto sofrido uma revisão e acrescentos significativos
para a presente publicação.
[3] Agamben tendo já tecido alguns subtis comentários em relação
ao predomínio do inglês: Giorgio Agamben. Resistance in Art. 2014 (EGS – European Graduate
School) (https://www.youtube.com/watch?v=one7mE-8y9c&t=1814s). Traduzamos: “… gostava de vos lembrar algo que parece
óbvio; ou seja: que eu irei pronunciar-me em inglês”; “…mas como o inglês não é
a língua com que penso, certamente algo de relevante irá perder-se”; “hoje, geralmente há a dominância do inglês
em conferências, universidades e em lugares deste tipo”; “isto não deve ser
considerado de modo inocente…“; “ …o inglês é usado como uma espécie de língua
franca, tal como o latim foi usado na Europa nos séculos XV, XVI…”; “… mas o
latim não pertencia a nenhum país em particular…”...
[4] Embora Sloterdijk fale por vezes em francês e inglês.
[5] Fui amigo do Professor
Luís Carlos do Espírito Santo (1925-2000), que pertenceu ao Grupo da Filosofia Portuguesa, tendo
sido discípulo de Álvaro Ribeiro e de José Marinho, discípulos de Leonardo
Coimbra. Luís do Espírito Santo
participou no memorável Colóquio “O Ideal Português” (1961) que decorreu na
sequência da suspensão
da
célebre publicação do “Movimento 57” (Movimento da Cultura Portuguesa, 1957-62)
dirigido por António Quadros. Além deles, participaram Fernando Silvan,
Fernando Morgado, António Braz Teixeira, Francisco Sotto Mayor, Alexandre
Coelho e Francisco da Cunha Leão. Estes e muitos outros dados foram vivamente
recordados por quem assistiu ainda muito jovem àquele importante encontro, o
meu prezado amigo Pinharanda Gomes na sua interessante conferência no recente
Colóquio sobre António Quadros em Maio de 2013 e que tivemos o privilégio de
registar em vídeo: http://youtu.be/jIncQXq9IhQ. Veja-se também: Luís de Barreiros Tavares, «Homenagem a Luís
do Espírito Santo, Leitor de Leonardo Coimbra», in revista Nova Águia, nº11, 1º semestre, 2013, pp. 98-99. Zéfiro. http://escrita-fone.blogspot.pt/search?q=lu%C3%ADs+do+esp%C3%ADrito+santo . Luís de Barreiros Tavares, «António Quadros, Leitor e Divulgador de
Fernando Pessoa», in revista Nova Águia, nº12, 2º semestre, 2013, pp. 57-58, Zéfiro. http://escrita-fone.blogspot.pt/search?q=ant%C3%B3nio+quadros .
[6] A este propósito vj. o interessante documentário sobre Heidegger, com
depoimentos de George Steiner, Hans Georg Gadamer, Richard Rorty, entre
outros: https://www.youtube.com/watch?v=2Q3xy9TzY9E.
Os “cadernos negros” ou “diários privados”, recentemente publicados
(2013-2015), atestam-no vincadamente, quer queiramos ou não…
[7]
Renato Epifânio tem preconizado esta
designação; ela é mais abrangente, ao mesmo tempo linguística e
internacionalmente, bem como num alargamento no tempo e na história. Veja-se,
p. ex., um excerto do editorial do nº 16 da revista Nova Águia, intitulado “Quem TEM MEDO DA FILOSOFIA LUSÓFONA? NOS 100 ANOS DO
FALECIMENTO DE SAMPAIO BRUNO”: “Em 2015 assinalam-se os 100 anos do
falecimento de Sampaio Bruno e, naturalmente, a Nova Águia, ao contrário da generalidade das revistas
culturais, que insistem em ignorar o que mais importa, dá o devido destaque a
essa que foi, sem dúvida, uma das figuras mais marcantes da Filosofia
Lusófona…” http://www.zefiro.pt/livro_novaaguia016.htm . Vj. também “Pensamento lusófono”.
[9] “o problema fundamental da filosofia consiste na
pergunta pelo ser, que é, afinal, a pergunta pela ousia” (Met. 1028 b).
[10] Tentando explicitar brevemente diríamos que o
ser como/enquanto ente abriu caminho
para a tradição da metafísica ocidental que, segundo Heidegger, esqueceu o
'sentido do ser' (vj. Sein
und Zeit) na medida em que o ser era compreendido, em última análise,
precisamente como/enquanto ente. Ser era ente, de um modo geral. Ente
herdado, por exemplo, do ser da Ideia (Idea - indicativamente ontológica)
platónica e do ser teológico medieval, escolástico, com expressão máxima em
Aquino. Donde a crítica heideggeriana da onto-teo-logia. Vj.
http://blogoscomfbeloperguntaserespostas.blogspot.pt/search?q=onto-teo-logia
[11] Numa entrevista a Agostinho da Silva publicada em 1986 na Revista
Filosofia (Sociedade Portuguesa de Filosofia), nº2, pp 149-183.
Entrevista concedida pelo filósofo em sua casa a Joel Serrão, João Lopes Alves,
Nuno Nabais, António Braz Teixeira e José Pedro Serra. Vale a pena citar as
linhas seguintes: "Como no exemplo
da geometria analítica, que já referi, esse mundo de paradoxos no qual posso
pensar simultaneamente os registos da extensão espacial e da matemática pura.
Considerando-me paradoxal, dirigem-me o melhor elogio que eu poderia
esperar." E terminando a entrevista na página seguinte: "Importante é
instalarmo-nos no paradoxo. Medo tenho eu do ortodoxo e do heterodoxo, que me
coibiriam de fazer algo que muito me agrada: poder conversar com pessoas de
vários pensamentos, várias atitudes, com a capacidade de as entender em si
mesmas, sobretudo quando alguma me aparece com sinal inteiramente contrário ao
meu. Quem sabe se precisamente esse, que alguém diria ser enviado do diabo, não
é um dos disfarces do divino."
[12] Para thauma, v. Platão Teeteto 155d (além de Arist. Met. A2: o espanto é
"as coisas serem como são"). “Nos dois, o "espanto" parece
ser gerado pelo envolvimento do 'saber' com o 'não saber'” (comentário de José
Trindade Santos numa conversa que tivemos
em “questões por e-mail – com José Trindade Santos: http://escrita-fone.blogspot.pt/search?q=o+espanto+%2B+jos%C3%A9+trindade+santos).
[13] Foucault escreveu um texto interessante sobre o “nome de autor” (“O que é
um autor”). Mas certamente haverá ainda muito por escrever sobre este tema.
[14] Cf. Textos de Intervenção Social e Cultural…, ed. Europa-América,
org. António Quadros, 1986, p.115. Este texto poderá ler-se na seguinte
ligação: http://www.citador.pt/textos/o-provincianismo-portugues-i-fernando-pessoa.
[15] Diríamos, um tanto parodicamente, que um certo tipo de estrangeirado –
mais, ou menos – pensante, se deixa fascinar, enfeitiçar, por nomes que soem
estranhos (e, como sabemos, xenos, do grego, tanto pode significar
estranho como estrangeiro… nestes casos, uma certa xenofilia, digamos assim…
[16] Não será nessa perspectiva –
filosófica, entre outras – que Álvaro Ribeiro cita e comenta Sant’Anna
Dionísio? “Não acreditemos, pois, que
sobre nós pese uma invencível incapacidade. Fixemos, sim, os olhos na certeza
de que para nós está aberta a possibilidade de contribuirmos para a cultura
humana como a quaisquer outros núcleos ou gerações humanas” (Sant’Anna
Dionísio, A não-cooperação da
inteligência ibérica na criação das ciências, Lisboa, 1941, pp. 25 e 47,
citado em Álvaro Ribeiro, Op, cit.,
pp. 20 e 21). “Formular tal opinião é já
dar a oportunidade de a rectificar; por isso os três depoimentos citados [Sampaio
Bruno, Fidelino de Figueiredo e Sant’Anna Dionísio] valem também pela preocupação que denotam, e podem ser interpretados
como sinais negativos, mas precursores da era da novidade para a filosofia
nacional” (Idem, p. 21).
[17] Veja-se também, a propósito, o seu texto “Apontamentos para uma estética
não-aristotélica” (Textos de Intervenção Social e Cultural…, p. 230).
[18] "Agostinho da Silva - Ele Próprio" - Filmado
por António Escudeiro - Edição integral: https://youtu.be/UUDZ9GN-YlI.
[19] A título de exemplo, apresentemos um
dos vários argumentos de Badiou relativamente à Ode Marítima (“Um
dos maiores poemas de Campos (e de todo o século)”: “Encontramos no heterónimo
Campos, singularmente nas grandes odes, e é o que autoriza a hipótese de
Gil [José Gil], a aparência de um vitalismo desencadeado [déchaîné].
A exasperação da sensação parece ser o processo maior da pesquisa poética, e a
exposição do corpo ao seu desmembramento multiforme evoca a indentidade virtual
do desejo e da intuição. Uma ideia genial de Campos é também a de mostrar que a
oposição clássica do maquinismo e do élan vital [aqui numa alusão a Bergson] é muito relativa.
Campos é o poeta do maquinismo moderno e das grandes metrópoles, ou da
actividade comercial, bancária, fabril, concebidos como dispositivos de
criação, como analogias naturais. Ele pensa, bem antes de Deleuze, que há no
desejo uma espécie de univocidade maquínica, cujo poema deve captar a energia
sem a sublimar nem idealizar, sem tão-pouco a dispersar num esquivo equívoco,
mas nela alcançando os fluxos e os cortes, mesmo numa espécie de furor
do ser”. Traduzimos
partindo do original francês (Alain Badiou, Petit Manuel d’Inesthétique,
Paris, Seuil, (1ª ed. 1998)) e da versão portuguesa referida acima. Ver também
Alain Badiou, Le siècle, Ed. Seuil, 2005.
[20] No capítulo III, “Pessoa, o
filósofo do outro de nós mesmos, o filósofo da nossa finisterra”, in Via
Aberta, de Marinho a Pessoa, da Finisterra ao Oriente, Zéfiro,
2009, pp. 57-58.
[21] Evidentemente que estes problemas
têm implicações políticas; para não falar nas culturais, sociais, em sentido
lato, entre outras.
Sem comentários:
Enviar um comentário