terça-feira, 19 de junho de 2012

Um artigo de Fernando Belo no jornal Público, 6 de Junho de 2012, seguido de um texto na sequência da sua leitura.






Desemprego: flagelo ou promessa?

1. O espanto dos economistas com o aumento do desemprego que não cabe nos seus modelos alargados até 20 anos, faz pensar que será pouco tempo, que deveria ser de 200 anos, isto é, deveriam repensar a economia em termos de história da civilização. O que está a ser vivido como flagelo intolerável poderá então aparecer como promessa, nessa perspectiva positiva ser possível encontrar outras medidas.

2. Dois textos estarão na base do pensamento ocidental sobre a sociedade: o livro bíblico do Deuteronómio e a República de Platão, bem diferentes entre si mas ambos reformadores por motivos de justiça social e com base numa ética de solidariedade exigente; o primeiro com uma ‘promessa’ de abundância como resposta a essa solidariedade, as utopias do segundo só nos dois últimos séculos ecoaram e fracassaram, como o povo israelita também tinha sido incapaz do que lhe fora proposto pelos seus profetas.

3. No entanto, por outras vias históricas, o século XVIII reformulou este motivo da promessa, ao inventar a máquina como abundância social e ligeireza de vida, como possibilidades imensas de produção de coisas ‘impossíveis’ até aí e como substituição da pena que o trabalho sempre representou para os humanos por uma energia inédita, não mais biológica dos músculos humanos e dos animais domésticos, reelaborada da que a terra e o céu nos fornecem. [Ora, esta promessa da ligeireza de vida destinava-se apenas aos que até aí se sujeitavam, como escravos e criados, ao ‘servil’ de que os nobres se abstinham: foi a burguesia, nem aristocrata nem popular, quem esteve em condições (únicas na Europa, nem na China nem na Índia nem no Islão havendo classe equivalente) dessa invenção por razões filosóficas que agora não vêm ao caso].

4. O que é que espanta os economistas? É difícil escapar à ideia de que o desemprego que grassa desde os anos 70, na Europa pelo menos, é o fruto do enorme progresso da automatização electrónica, das economias de traba­lho humano trazidas pelos robôs e pelos computadores. Enquanto que no após guerra a produção de bens bara­tos, automóveis, electro­domésticos, apartamentos em betão armado, se dirigia à população que os produzia e recebia também a sua parte, os seus salá­rios de produtores sendo o seu orçamento de consumidores. E foi isso que permitiu a expansão das classes mé­dias, como se diz, os trabalhadores de escritório e de outros servi­ços, toda a gente lucrou com isso. Ora bem, a vaga electrónica ac­tual atingiu sobre­tudo o trabalho humano, o dos operários e dos escritórios. E eis o es­cândalo: este cumprimento parcial mas fulgu­rante da promessa da máquina – não em recessão, mas com au­mento dos bens produzidos, dos PIB – foi feito não como liberta­ção, como redução substancial do tempo de trabalho, quantas ve­zes tão monótono e embrutecedor, mas como catástrofe social, como exclusão de partes significativas da população activa desses frutos tão esperados. O que me espanta a mim é que não apareça nas discussões que andam em torno deste flagelo a parte de promessa que nele se esconde; quantificar não apenas os números das dívidas e do crescimento dos lucros, mas também o modelo da diminuição das horas de trabalho, que dê para repartir salários para todos: há matéria em França desde 1995 para se perceber as possibilidades e dificuldades dessa via. Economistas, ao trabalho!

Artigo no Público, 6 de Junho 2012, excepto [ ]

http://filosofiamaisciencias2.blogspot.pt/2012/06/desemprego-flagelo-ou-promessa.html

Fernando Belo


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Texto talvez um pouco utópico na sequência da leitura deste artigo.

“Quantificar não apenas os números das dívidas e do crescimento dos lucros, mas também o modelo da diminuição das horas de trabalho, que dê para repartir salários para todos (F.Belo, ver artigo).” Concordo plenamente mas proporia mais uns elementos que reforçariam uma lógica de mercado não exclusivamente lucrativista e de crescimento, conforme é referido nesta citação, próprios do capitalismo neoliberal voraz em que vivemos. Apesar da seguinte articulação que vou tentar apresentar parecer utópica, e tendo em conta a minha pouca competência nestas matérias, trata-se, do meu ponto de vista, de dispor de estruturas paralelas aonde, ao modo de escalas mas sem hierarquias rígidas, os fluxos possam comunicar. Que quero dizer com isto? Seriam então necessárias zonas de ocupação laboral sem fins lucrativos. Quer dizer, dispor de zonas e de tempos de actividades onde várias camadas populacionais estivessem activas, por exemplo, na agricultura no artesanato, na pesca, e mesmo nas várias indústrias, etc. É que as pessoas são todas diferentes. E está provado que as nossas sociedades já não se sustentam segundo este paradigma exclusivamente capitalista e neoliberal de voragem, repito. Demonstram-no as manifestações por todo o globo desde Madrid até Wall Street (os “ocupa”, os “indignados”, etc.). Conheço várias pessoas que já adoptaram outros tipos de vida, e lá se vão amanhando como podem. Eu próprio o faço há alguns anos. Mas esta mudança terá de obedecer a iniciativas fortes da comunidade. Há manifestações destas que começam a vislumbrar-se, mas não passam de iniciativas pontuais, embora indicativas de qualquer coisa que pode vir diferente. Estou a lembrar-me, por exemplo,de certas empresas em Portugal que, justamente, para superar uma certa carga stressante do horário laboral, promovem pequenas ocupações agrícolas por parte de funcionários nos intervalos ou horas vagas. Eis um exemplo saudável de como articular as duas esferas.

Se com Marx se falava das forças de trabalho, das forças produtivas, dos meios de produção, da mão-de-obra, etc., sob a égide do proletariado e da luta de classes até à ausência destas, hoje, com os “computadores e os robots”,conforme se chama a atenção no artigo, pode-se também falar, digamos, de forças, de energias anímicas a larga escala, se bem que ao tempo de Marx também estas se verificassem mas noutras escalas e noutras formas de manifestação. É curioso que a noção de "mão-de-obra" persiste ainda na sua utilização para todos os casos de profissão, desde as mais práticas e "braçais" (da dita força braçal) até às de teor mais intelectual ou teórico, como foi o caso no outro dia num meio de comunicação ao falar-se da procura de arquitectos portugueses no estrangeiro como boa mão-de-obra a emigrar. Todavia, acontece que nos nossos dias os critérios de forças anímicas por força da inutilização do cidadão como mero figurante sem acção, com o subsídio de desemprego ou rendimento mínimo, etc., para não ir mais longe, são totalmente diferentes acarretando porventura consequências imprevisíveis de toda a ordem, pois a força de trabalho e toda uma série de energias também lá estão latentes.

As novas estruturas paralelas que indiquei acima obedeceriam não à formação de "bolhas", "globos" ou “esferas” isoladas, para usar expressões de Sloterdijk. Aquelas seriam vasos comunicantes que se poderiam articular segundo várias formas entre si num jogo de escalas superando oposições radicais, e portanto também sem diferenças de classes rígidas. Ao ponto de se proporcionar - a par do aumento de assalariados ou do “trabalho para todos” por virtude da diminuição dos horários de trabalho, como foi referido no artigo acima – uma circulação segundo um regime regulado das pessoas de umas esferas ou, por outras palavras, de umas estruturas para outras.

Os governantes da Europa e do Mundo estão mais ou menos cientes de que se caminha para uma sociedade do ócio perigosa (que ócio será esse cujas energias anímicas não escoam?). Mas digamos que se fazem um pouco desapercebidos. E o desemprego vai crescendo, a indignação vai aumentando. Pelo andar da carruagem será que não poderemos perspectivar, não sei bem para que futuro, qualquer coisa como um cenário de tipo “ficção científica” aonde haverá zonas assépticas de suposto alto nível civilizacional - bolhas isoladas - ao mesmo tempo que vastas áreas desoladas, contaminadas, desprotegidas, povoadas de uma espécie de zombies e de humanos em condições sub-humanas? O problema talvez se resuma numa obsessão humana de “crescimento” (noção que os economistas não largam, como algures alude F.Belo) aliada a um estranho fantasma de "progresso" que implica um “cada vez mais”. Não pretendemos trazer a solução. É mais uma proposta não generalista, de entre muitas outras possíveis a partilhar e a reflectir como ponto de partida. A seguinte frase de Nelson Mandela vinha no jornal Público do dia 09/06/2012: “Depois de termos conseguido subir a uma grande montanha, só descobrimos que existem ainda maiores montanhas para subir.”

Luís de Barreiros Tavares

15/06/2012


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