Guilherme Pobre –
Santa-Rita Pintor
José-Augusto França
"São quatro quadro que emanam da alta sensibilidade moderna do meu amigo Santa Rita Pintor." (Álvaro de Campos, sobre os extra-textos na Orpheu 2)
"São quatro quadro que emanam da alta sensibilidade moderna do meu amigo Santa Rita Pintor." (Álvaro de Campos, sobre os extra-textos na Orpheu 2)
Nota: adicionámos imagens nesta versão online
Abertura[1]: Muito se tem
falado, escrito, e muito bem, como acabámos de ver ou de ouvir, sobre Fernando
Pessoa – a múltipla personalidade de Pessoa – sobre Sá-Carneiro, Almada
Negreiros, Amadeo de Souza-Cardoso, entre os de Orpheu. Mas o colaborador mais evidente do fatídico 2 de Orpheu foi Santa-Rita Pintor. Fernando Pessoa
e Mário de Sá-Carneiro dedicaram-lhe poemas na sua própria colaboração no nº 2,
onde ele tem os seus 4 extra-textos que revelam uma nova personalidade na
criação artística portuguesa. Também se deve a um dos colaboradores desse
número do Orpheu, Raul Leal, o
primeiro texto de interpretação de Santa-Rita Pintor daí a ano e meio na revista
Portugal Futurista. Assim tem sido e assim continuará a ser, naturalmente. O
génio dos outros quatro necessita de exegeses sucessivas, mas talvez também
Santa-Rita Pintor precise de mais alguma atenção. Alguma atenção lhe vou dar
neste texto chamado “Guilherme Pobre” que a si mesmo ele se anunciava.
Leitura do texto: Pouco
se sabe da vida breve de Santa-Rita, nascido em Lisboa em 1889 e falecido em
1918, em Abril. Foi como bolseiro a Paris em Abril de 1910 como escolar das
Belas Artes de Lisboa. Não ingressou na escola parisiense, tendo falhado nas
provas de admissão. Perdeu a bolsa em 1912, por conflito com o embaixador da
recente República Portuguesa, o jornalista militante João Chagas, quando ele –
Santa-Rita – se gabava de ser monárquico, admirador de D. Carlos (“artista”),
pronto a escrever sobre a obra dele. E que havia investido no desejo da
restauração que lhe daria poder e deveria ser acompanhado pelo regresso dos Jesuítas
que a república expulsara, e também a reinstauração da Inquisição. Sabemo-lo por
cartas de Sá-Carneiro a Fernando Pessoa, de 1915, já ele regressara a Lisboa em
Setembro do ano anterior por causa da Guerra [1ª Grande Guerra]. E aqui se
movia no âmbito da Orpheu, de uma maneira, veremos, sempre em referência a
Sá-Carneiro, que lhe dedicara os seus poemas sem suporte no nº 2 da revista,
etc.
Já vamos ver o que ele representa para Santa-Rita. Outra
via de informação sobre estes anos de vida do pintor vem de uma biografia que,
desde 1922, e sobretudo, o pintor Henrique de Vilhena consagrou ao seu primo, o
pintor Manuel Jardim, que cruzou amistosamente Santa-Rita em Paris e depois em
Portugal, mas à distância de Coimbra, e não sem um mal-entendido que ficou
registado em correspondência. E ainda de Vilhena há um artigo tardio que ficou
a meio no jornal “Acto” de 1950.
Mas
a informação vem também de outros contemporâneos de Paris e de Lisboa, dos anos
ditos futuristas, que também em Paris foram e almejaram ser os de Santa-Rita,
ali espectador da primeira exposição em 1912 que os pintores italianos
apresentaram e que Aquilino Ribeiro reportara para a ilustração portuguesa em
Lisboa.
O
famoso manifesto que em 1908 Marinetti publicara no Figaro antes da chegada de
Santa-Rita, portanto, teve tempo de por ele ser lido e endoutrinado, de modo a,
de volta a Lisboa, Santa-Rita se declarar encarregado pelo teórico italiano de
difundir a “Boa Nova” estética. Implicaria isso um contacto, mesmo de confiança
com Marinetti, a cuja conferência de 1911 assistiu, segundo o repórter Diogo de
Macedo, e os seus camaradas pintores, italianos quase todos, sobretudo
Severini, instalado em Paris. Mas não há provas disso, e pode suspeitar-se de
uma efabulação Santa-Rita. O que é na opinião vinculada pelas cartas de
Sá-Carneiro, já porém posteriores e com razões
de queixa. Mas não só porque o poeta tivera o seu período de fascinação pelo
pintor ao conhecê-lo, e de lhe ter dedicado os poemas no Orpheu, onde o pusera
em versos no poema Apoteose: “Marinetti + Picasso = Paris<Santa Rita Pintor
+ Fernando Pessoa / Alvaro de Campos !!!!”. Em 1914, já na narrativa Confissão de Lúcio, publicada nesse ano,
Santa-Rita está presente sob o nome de Gervásio Vila-Nova, “personagem,
escultor emigrado também com o seu corpo macerado e esguio de linhas quebradas
e a sua obra de torsos contorcidos, enclavinhados, monstruosos, dado a um
público que coitados, não podiam sentir a sua beleza e sobretudo, uma alma
diabólica” que domina o narrador até ao
rompimento dramático da narração.
Nas
cartas que escreve a Fernando Pessoa, Sá-Carneiro vai dizendo que “com ele todo
o cuidado é pouco, e descrevendo-o como um tipo fantástico”, cada vez mais
intolerável, insuportavelmente vaidoso, maçador e, mesmo, malandro. Até às
queixas finais, já de Setembro de 1915, após o Orpheu, quando o ouvia disposto
a captar-lhe a revista Orpheu, que
ele, Sá-Carneiro, já não podia pagar a tipografia; e “isso seria pior que a
morte da revista”. Assim escreve Sá-Carneiro a Fernando Pessoa. Nela, porém,
Sá-Carneiro dera abrigo a quatro hors-textes
de obras suas, numa nova orientação de colaboração artística que se inaugurava
no nº 2 e no nº 3 deveria ser satisfeita por Amadeo de Souza-Cardoso.
Já
vemos a importância destas quatro obras quando anteriormente Sá-Carneiro
duvidara da sua criação artística, ou dela mesma troçara, nomeando em carta de
1912 um quadro intitulado “WC” que, na opinião citada do autor, do pintor, “só
dez pessoas no mundo podiam não só compreender, como ver”. Duas outras obras
suas intituladas “Portugal” e “Ruído num quarto sem móveis” – seria esse quadro
objecto de uma paródia feita ao pintor numa crónica para a Revista Lisboeta de Teatro
no seu número de Março de 13, em texto sobre o “cubismo nacional”, de um tal
jornalista Eduardo de Freitas, que anunciava a sua exibição com escândalo no
Salão dos Independentes (Salon des Indépendants) em Paris e reproduzindo um
quadro realmente de Picabia. Blague ofensiva que o comportamento polémico,
antipático e intolerável de Santa-Rita dava razões e originava más relações com
os poucos emigrados da vida artística local.
Um
deles, Diogo de Macedo, haveria de descrevê-lo saborosamente em 1930, nas suas
memórias 14, Cité Falguière [memórias dos tempos de Paris]. Como já em 21, no
Diário de Lisboa: o Bento, o Semedo, o Bastos, Amadeo, ainda impressionista e
caricaturista, mas que “se a morte não o tivesse levado seria hoje o maior
pintor português”. E de Modigliani também fala, porque foi este que levou
Amadeo a ouvir a conferência de Marinetti. E foi ali, nessa conferência que
ele, Diogo de Macedo, pela única vez fala em Santa-Rita. Em 42, Macedo voltaria
a falar no Pintor, numa panorâmica ordenada, a primeira de todas, nos
primórdios do nosso modernismo, na revista Aventura. Em Lisboa, o caso Orpheu, levantou escândalo jornalístico,
politicamente assanhado por Pessoa, como sabemos[2], é verdade que logo arrependido, como todos os seus
amigos. Menos Santa-Rita que, como assegurou Raul Leal, era o mais sincero de
todos eles.
Mas foi o pintor o alvo preferido nas colunas do Século
Cómico, de 8 de Julho, num desenho de Stuart Carvalhais, e numa poesia trocista
de Belmiro Acácio de Paiva (pseudónimo de Acácio de Paiva), que punha “Em foco”,
imitando versos do Sá-Carneiro, de invenção tipográfica: “Santa Rita, Rita Santa, pó pó! / Ó guarda pó de setim Catedral / Ah!
ah! ah! Estou a polir as unhas! Al! Ri pó pó! Tiro liro! liro ló! […] … Le nez
dans le Cou!”… caricaturado por isso mesmo.
89 artigos ou alusões ao Orpheu
ficaram registados nas colagens de caderno recolhido no espólio de Fernando
Pessoa na Biblioteca Nacional. Mas Orpheu chegou ao teatro de revista também
ainda em 1915, no então Éden nos Restauradores, como “Satanás”, no “Diabo a
quatro”, a endoidecer por ter lido a revista. O Orpheu nº 3 não houve, só
provas tipográficas de algumas páginas recuperadas em edição de 1983.
Santa-Rita não levou avante o seu projecto que afligia Sá-Carneiro e Pessoa,
protelada e evasivamente, em suas correspondências, ele que também lhe dedicara
no Orpheu a sua “Ode Marítima”.
Mas o Pintor continuara a agir no minúsculo meio que era o do
Chiado e que anunciava a exposição de Amadeo, como futurista – embora de modo algum
o fosse em suas obras – a dois passos no Calhariz, na Liga Naval, agitara em
Dezembro de 16, então, com a benção baptismal de Almada Negreiros. Amadeo de
Souza-Cardoso deveria ter sido o artista destacado em hors-textes, correspondentes, no nº 3, da revista de Sá-Carneiro.
Mas não, certamente, no Orpheu que fosse, ou tivesse podido ser, de Santa Rita.
E uma grave altercação entre os dois pintores se registou então na Brasileira,
em vias de facto, de que o frágil Santa-Rita saiu agredido pelo Amadeo, robusto
e exasperado pelas suas provocações. Provocações habituais, ao que consta nas
anotações cronicadas nesta brevíssima época. Santa-Rita, em 1915, projectou
realizar três conferências futuristas uma da quais sobre a sua participação na Orpheu – o facto é
conhecido, passo adiante. Na verdade é que, em Abril de 16, a revista
monárquica extremista “A ideia nacional” dirigida por Homem Cristo Filho – um
polemista que viria a pretender ter carreira no Fascismo italiano, depois de
começar a tê-la com o Sidonismo em 18 – apesar da colaboração que recebia de
Almada, como de [António] Soares, [Jorge] Barradas de Stuart [Carvalhais] e da
direcção artística de [José] Pacheco. Ele (Homem Cristo Filho) atacara os
futuristas, “fautores da desordem e da revolução”, “novos arautos da Anarquia, sem
fé nem Pátria que mereciam ser corridos à gargalhada, senão a chicote, quando insolentes
e perigosos”. O que lhe valeu uma resposta prudente, de Santa-Rita, a
garantir-lhe o carácter absolutamente nacionalista da sua doutrina, e o seu
carácter absolutamente anti-anárquico. Ele que, “na sua vida de trabalho
artístico, de esforço constante e consciente, de há anos para cá, aderente do
futurismo”, declarava “Futurista declarado em Portugal, há um que sou eu”.
Mas logo depois, Almada Negreiros havia de publicar um texto,
o mais escandaloso de todo o processo do futurismo nacional, pela personalidade
oficiosa que punha em cena o dramaturgo, poeta e cronista Júlio Dantas, que
estreou em Outubro no D. Maria uma peça, “Soror Mariana”. No seu jeito e talento
tardo-romântico, “talento de coisinhas”, segundo Fialho
de Almeida acerca do autor. Vivamente aplaudida mas pateada por Almada na sala,
o que o fez ir prestar contas à esquadra Almada
que já aliás criticara o Dantas numa revista de teatro dois anos antes, o que anda esquecido. Depois
dessa consequência policial, chegado a casa, na mesma noite, Almada redigiu o
famigerado “Manifesto Anti-Dantas e por extenso”. Opúsculo que, por informação
de uma carta sua a Sonia Delaunay, só terá sido publicado em Maio de 16. Numa
edição logo comprada, em atacado, pelo visado, e circulando reduzidamente como uma espécie bibliográfica
raríssima, mas com larga e mitológica extensão. “Morra o Dantas, morra! Pim!”, ficou na memória literária pelos
anos fora e até hoje, quando se comemora o seu centenário, não do Dantas, mas
do Orpheu.
O seu autor interessava a Almada, porquanto, Dantas, que
produzira uma tese de formação em medicina com um estudo sobre pintores e
poetas internados no Hospital Psiquiátrico de Rilhafoles. Na sua especialização
se achava apto a classificar de paranóicos os poetas de Orpheu, e certamente também
Santa-Rita, seu parceiro [dos de
Orpheu], embora não o mencionasse. E cronicara nesse sentido, na
“Ilustração Portuguesa” (Magazine de toda a burguesia… da pequena burguesia
nacional), a que o diário “A Capital” dava eco.
Em 28 de Junho, poetas
de Rilhafoles eram eles todos, e já o famoso e popular comediógrafo André Brun
lá se divertira com opinião semelhante em Março. Assim ia o microscópio do
mundo cultural lisboeta nestes anos de 15 e 16, mais Orpheu 2, menos Orpheu 3,
com o malogrado Salão de Arte Moderna que José Pacheco congeminara e uma
galeria de artes que ele levou avante no espaço habitual do Salão Bobone, ali
ao Chiado, logo pelo vulgo apelidado, sem razão, de salão dos futuristas. E, é
claro, a exposição de Amadeo, no fim do ano, com o novo manifesto de Almada,
esse a favor do seu jovem amigo pintor.
Quando – tendo sido consagrado no Salão da Primavera nas
Belas Artes o Fado de Malhoa[3] – no fim de 17, saiu à rua o “Portugal Futurista”, logo
apreendido, diz-se, à porta da tipografia, pela censura do Governo Democrático
que estava nesse mesmo a ser despejado pela Revolução Militar de Sidónio Pais.
A revista era naturalmente alheia à movimentação política, se bem que ela se
gabasse de absolutamente nacionalista pela pena de Santa-Rita, e um prospecto
tivesse anunciado a publicação com três palavras: Monarquia, República,
Portugal. As duas primeiras barradas a vermelho. E, no seu interior, os “Ultimatuns” de Almada e de Pessoa (Álvaro
de Campos)[4]. Embora
manifestassem ideias, opções e críticas contra a política corrente que o
“Presidente Rei” Sidónio, assim glorificado por Pessoa, ia arredar
ditatorialmente.
Almada atribuiria a apreensão da revista a palavrões
escamados que empregara no seu admirável texto “Saltimbancos”. Mas outras
responsabilidades haveria que invocar para o acontecido no meio da grande
confusão daqueles dias tumultuosos que, aliás, e em sentido contrário e pior,
de mortos e feridos, respondia à Revolução do 14 de Maio de 1915, que inspirara
o poema “Canção do Ódio” a Almada, destinado, precisamente, ao Nº 3 de Orpheu,
e ficara inédito. Portugal Futurista vem dois anos e meio depois com a
exposição de Amadeo e o Manifesto Anti-Dantas do Almada pelo meio, mas,
sobretudo, numa tumultuosa “apresentação do futurismo ao povo português” –
palavras de Almada – na tarde de 4 de Abril de 17, no Teatro da República ou
São Luiz [em 1918], sob a designação de “A Primeira Conferência Futurista” da
responsabilidade de Almada, mas encenada, digamos, “maniganciada” por
Santa-Rita, presente na sala, numa frisa, e dali animando e ordenando,
“increpando” – escreve Diogo de Macedo – o espectáculo, sua éminence grise, que Almada, do palco,
apresentou e que terá sido recebido com uma ovação unânime. É Almada quem descreve,
já se descrevendo a si próprio, recebido por uma espontânea e tremenda pateada,
seguida de uma calorosíssima salva de palmas que ele cortou como gesto. Uma
fotografia dele mostra-o vestido com um fato de macaco de corte clownesco que passou à posteridade. As
coisas passaram-se mais ou menos assim, numa sala meio-cheia de curiosos dos
cafés do Chiado e da Baixa e alguns estudantes, e com uma popular e vistosa
mundana, negra, ao que parece, contratada para o efeito. O diário A Capital,
que já apreciara Orpheu nas suas colunas, dedicou uma prosa à sessão, uma crónica anónima, mas atenta a todas as
anedotas que se produziram no seu decurso, tal como os organizadores desejavam
para marcar o evento. E nesse sentido, Almada agradeceu à direcção, felicitando
também, e de uma só vez, o público de Lisboa, pela brilhante apoteose de que
ele tinha sido alvo. E também pelas “extraordinárias aptidões futuristas que
esse povo português manifestara, revelando ter entendido a intervenção”. E
Almada anunciava já uma nova sessão, espectáculo prático e positivo de
futurismo, em que se resolviam à vista do público as energias mais
assombrosamente cerebrais e as mais fisicamente record, e que contaria numa “segunda parte uma comédia futurista em
que participariam interseccionistamente
os maiores números de variedades que se encontravam em Lisboa e ainda outros
elementos espontaneamente civis”. A tal anúncio, a imprensa trocista
acrescentou uma tourada e um filme, ao mesmo tempo que a ilustração portuguesa
chamava “doidos varridos e desequilibrados cerebrais”, pela pena do tal Acácio
de Paiva que já troçara Santa-Rita dois anos antes. E Almada, com todo o grupo
deu um destaque muito especial e anónimo de uma paródia de uma conferência de
Almada no “Século Cómico”. Isso mesmo pretendia Almada Negreiros e, sobretudo,
no caso, Santa-Rita que preparava o seu futuro de guru do futurismo em Portugal
que a sua revista “Portugal Futurista” haveria de consagrar meses depois.
"Perspectiva dinâmica de um quarto ao acordar" reprodução no Portugal Futurista I
Tudo isto anda descrito e repetido por mim e por outros no quadro do Modernismo Português em Letras e Artes. Célebres de um lado, nas letras, mais tarde, de outro, nas artes, no círculo mais estrito da sua polémica, deu-se a Amadeo de Souza-Cardoso, mas só em meados dos anos 1950, por descuido da geração que lhe sucedeu, e António Ferro protegeu, o lugar cimeiro que lhe é historicamente devido. Mas deixou na penumbra, mais ou menos lendária, Santa-Rita Pintor, o herói do Portugal Futurista.
Tudo isto anda descrito e repetido por mim e por outros no quadro do Modernismo Português em Letras e Artes. Célebres de um lado, nas letras, mais tarde, de outro, nas artes, no círculo mais estrito da sua polémica, deu-se a Amadeo de Souza-Cardoso, mas só em meados dos anos 1950, por descuido da geração que lhe sucedeu, e António Ferro protegeu, o lugar cimeiro que lhe é historicamente devido. Mas deixou na penumbra, mais ou menos lendária, Santa-Rita Pintor, o herói do Portugal Futurista.
A revista vinha a seu tempo, ano e meio após a falência de
Orpheu e seguindo-se a outras duas, também efémeras em Lisboa, o Exílio e a
Centauro, de Abril e de Outubro, ficando ambas no nº 1. Alguns dos
colaboradores de Orpheu apareceram em ambas (Fernando Pessoa), e os outros eram
variados, em "Exílio", aliás dirigido por um irmão de Santa-Rita, o poeta pelo
menos decadentista e mundano Augusto de Santa-Rita, considerado aliás
modernista por António Ferro em 1929, e que viria a ter um nome justamente
conhecido na literatura infantil. A Centauro era dirigida por Luís de
Montalvor, do grupo do Orpheu, com Pessanha e Raul Leal. Mas em Faro, o jovem
pintor de 20 anos, com bens de fortuna, Carlos Felipe Porfírio, fez publicar,
desde 1917, nos seus princípios, um jornal (O Heraldo), poesias de intenção
futurista, algo provincianas, mas também transcrever o poema, o grande poema
“Litoral”, de Almada Negreiros, ao mesmo tempo que hesitava na pintura que ele
próprio queria fazer. Subindo a Lisboa, aí se ligou a Santa-Rita para o ter na
sua revista editada, pondo-o nominalmente na edição, “Portugal Futurista” bem
entendido. Porfírio seria pintor expressionista em 1922 numa pequena exposição,
depois pintor decorador em Paris até 1939. E ainda em 1945 e 1949, regressado a
Portugal, ele pôde realizar duas longas metragens, pretensiosas e inteiramente nulas,
“Sonho de amor” e um “Grito na noite” que só na Cinemateca se pode ver,
felizmente. No “Portugal Futurista” de Santa-Rita ele terá sido apenas uma
vítima inocente, como entendia Sá-Carneiro, entretanto suicidado em Paris,
vítima de si próprio. Santa-Rita, no seu meio familiar de boa burguesia, o pai
um funcionário e poeta amador, e o irmão também, como vimos, e avô materno e
padrinho, conselheiro e par do reino, chamado Cau da Costa, fizera bem
classificada pintura nas Belas Artes de Lisboa, fora e deixara de ser bolseiro
em Paris, como se viu. Mas de lá, logo em Janeiro de 1911, ele mandou como
prova de trabalho uma cópia da “Olympia” de Manet que não “deixou boa impressão”
no júri (segundo o júri diz). Ele que se formara, na sua tese em Lisboa, com o
Édipo e Antígona com boa aprovação académica. E foi José de Figueiredo, que ia
a seguir ser director do Museu de Arte Antiga, quem imediatamente lhe censurou
a má ideia que tivera em copiar tal quadro, na qual há quem entenda ter
começado a pintura moderna no Ocidente. A obra pode ver-se numa sala da
Academia nacional de Belas Artes, muito simplesmente, de que José de Figueiredo
seria em 1935 Presidente inaugural da sua restauração, mas só muito depois do
falecimento do pintor, entenda-se. Na camaradagem, nesta altura em Paris com
Manuel Jardim, como sabemos, ambos tinham sido influenciados pela criação
manetiana, que Jardim haveria de assumir como o melhor destino da sua própria
malograda pintura.
Mas aqui interessa avaliar o entendimento de Santa-Rita, logo
em fins de 1910, após Édipos e Antígonas escolares, numa nova situação da
pintura, antes de ele próprio mergulhar no labirinto parisiense que, em 1912
lhe seria almejadamente futurista. A cópia de Santa-Rita, realizada com
suficiência técnica e entendimento do problema pictural posto, no acordo tonal,
nos aplats,
para além do escândalo da imagem clássica colocada em termos de
evidência moderna, baudelairiana, como
se diria, mas não em Lisboa, é, como se sabe, das raras obas de Santa-Rita que
existem. Pois, ao morrer, em 18, pediu à família que tudo destruísse. E mesmo
antes, já antes, ao seu amigo Saavedra Machado, que o contou publicamente. De
antes de Olympia, porém, existe o “Orpheu no Inferno”, de cerca de 1907.
Espécie de brincadeira escolar, largamente broxado[5], com
caricaturas dos professores de Lisboa, que, cerca de 1917, ele ainda vendeu ao
seu amigo Alberto de Monsaraz, quando durante muito tempo o conservou e é hoje por
demais curiosidade valorizada.
Mas de 1912, resta outro quadro, no Museu do Chiado, que tem
especial importância na história da pintura moderna portuguesa. Não assinado, e
datado, no verso, de 1910, por mão que não será a do pintor, esta cabeça
cubo-futurista, tem sofrido justa discussão crítica por algumas similitudes com
pinturas de [Gino] Severini com quem Santa-Rita terá tido proximidade em Paris,
ficando como um ícone polémico da modernidade num país que não podia tê-la.
“Pintura primeira da sua espécie”, assim escrevi e repito, contando bem os
passos cronológicos de Amadeo de Souza-Cardoso que, em 1912 – data mais
provável da tela de Santa-Rita – ainda não assumira a posição criativa original,
cubista sim, e órfica, nunca definitivamente definida como futurista, que
admiravelmente explodiria na série das últimas pinturas de 1916-17.
Esta agressiva cabeça de ave, máscara africana nos seus
bicos, olhos encovados num movimento elíptico do desenho, uma espécie de vórtice
que só dois planos por similitude cubistas interrompem e um sinal de ouvido em
caixa de violino pontua. Fora do propósito formal ou antropomórfico, esta
pintura, no seu jogo de volumes e grafismos, é uma peça notável nos anos 10
europeus e uma peça única na pintura portuguesa. Não o esqueçamos. Peça
milagrosa, acrescento agora ao que escrevi, considerado o quadro moroso em que
ela pode desenrolar-se nos anos 10, que em 1918 se acabara com a morte de
Santa-Rita, e de Amadeo, a poucos meses de distância.
No Portugal Futurista foram reproduzidas quatro obras de
Santa-Rita, mas não esta, e perguntar-se-á porquê na sua estratégia de
carreira. Vemos lá o “Orfeu nos Infernos” com um comentário laudatório
inconsequente, em que se fala de “fisiognomia mefistofélica” que o pintor
certamente aprovou ou fez redigir; a “Perspectiva dinâmica de um quarto ao
acordar”, datado de 1912; “Cabeça = linha – força. Complementarismo orgânico”, de 1913, e “Abstracção congenita
intuitiva (Matéria-Força), de 15. Se o primeiro obedece a um sistema futurista
ortodoxo na dinamização espacial, em que as ondas de vibração dos objectos têm
um tratamento de ordem cubista (escrevi isto em 74), as outras inscrevem-se no
tempo entre ou depois das obras que tinham sido reproduzidas no Orpheu, e que
vamos ver. E numa situação que no Portugal Futurista tinha sido definitivamente
assumida. Para Santa-Rita, era no extremo limite das suas forças criativas e
físicas também que pouco mais ele duraria até Abril do ano seguinte, já em
“estado gravíssimo de saúde”, como Manuel Jardim escreveu, informado pelo
professor Vilhena.
Mas a vida de Santa-Rita no Portugal Futurista foi outra e
indirecta, quer pelo seu retracto fotográfico de página inteira, quase a abrir
a revista, convenientemente encenado, quer por dois textos que se lhe referiam
e que vamos ver, de Bettencourt-Rebello e de Raul Leal, que no Orpheu publicara
o alucinado texto “Atelier, (novela vertígica)” predisposto para o que da arte
de Santa-Rita havia de entender.
E fora no nº 2 da revista de Sá-Carneiro que o pintor tivera
a primeira entrada em cena, como anunciada “Colaboração especial do futurista
Santa-Rita Pintor, fotogravuras de 4 hors-textes
duplos”, na medida em que se dobravam na sua dimensão de papel couchet nos cadernos do volume. São
datados de Paris, anos de 1912, 1913, dois deles, e de 1914, desenhos a carvão
ou traço de guache branco com a técnica cubista dos papiers-collés. Os originais desapareceram. Incalculável perda do
património artístico português, porque se trata de quatro peças, senão
fundamentais – porque nada fundamentaram ou teriam podido fundamentar em
Portugal – de extrema originalidade no quadro europeu do futurismo, que delas
não tomou conhecimento historiográfico ou estético nas mais autorizadas e mesmo
mais recentes pesquisas sobre o grande movimento italiano. Ignorado para
sempre? Pergunto. De Santa-Rita Pintor eu terei sido o único historiador dos
anos 10 a assinalar-lhe a presença, em 87, numa História da Arte Ocidental,
tentada para além das grandes vias culturais em que ela tem sido estabelecida
na lei dos centros maiores de produção e de sua pesquisa universitária e da sua
indústria editorial.
Evoquemos primeiramente, como Santa-Rita evidentemente desejava em atitude provocatória, os títulos destes trabalhos que ultrapassam em proposição e formulação teórica, embora inspirados em teses de Boccioni, o quadro estético do futurismo italiano. “Decomposição dynamica de uma mesa + estylo do movimento (INTERSECCIONISMO PLASTICO)” e os restantes designam actuações ou reflexões plásticas em situações alegadas respectivamente de interseccionismo plástico, sensibilidade radiográfica ou litográfica ou mecânica que dificilmente poderemos distinguir no exame das próprias obras. Devendo, porém entender-se que, como já escrevi, que se trata de uma atitude conceptual, que ainda assim se não nomeava. A “Decomposição dynamica de uma mesa” [referida acima] declarada na peça de 12, é a de uma mesa adicionada com o sinal + em estilo de movimento. E a obra deixa aperceber, em planos geometricamente sobrepostos, a “mesa modelo” desfeita. Porque a fez Santa-Rita reproduzir após as outras três obras, quando a sua leitura formal e a sua datação se acentuam à cabeça do discurso histórico proposto[6]. Trata-se, na sua realidade, de uma proposta demonstrativa de interseccionismo plástico, enquanto, as outras três peças, dadas como demonstrações de sensibilidades provocadas gráfica ou mecanicamente, se referem a cabeças modelo.
E “Estojo scientifico de uma cabeça” marcado com insistência no factor “luz”, “+ aparelho ocular + sobreposição dynamica visual + reflexos de ambiente” que se multiplicam pela luz “x luz (SENSIBILIDADE MECHANICA) (Paris, 1914)”. E é a primeira reprodução da série dos hors-textes, no seu interior, compenetrado, identificado, idêntico, a reprodução com o seu “complementarismo congénito absoluto” (Compenetração estática interior de uma cabeça = complementarismo congénito absoluto (Sensibilidade Lithographica)) a que tem sido a mais reproduzida por facilidade de identificação formal.
Ou ainda “Syntese geometral de uma cabeça x infinito plastico de ambiente x transcendentalismo phisico” (SENSIBILIDADE RADIOGRAPHICA), de1913[7].
Não vou insistir na descrição destas peças, porque há que
vê-las, há que olhá-las, elas estão reproduzidas na revista Orpheu 2, e na
reedição da revista Orpheu, também e, portanto, estão ao alcance de todo o
nosso conhecimento. São as únicas provas que existem das referidas peças, mau
grado a sua enorme importância.
Mas, no Portugal Futurista, Santa-Rita Pintor, sobretudo
contava, depois do seu retrato que vimos, com um artigo de Bettencourt-Rebello,
aliás “Rebello de Bettencourt”, que sob a sua simples denominação assumida de
Santa-Rita Pintor, em seis notas [ou pontos, ver à frente] (de I a VI)
estabeleceu a sua hagiografia. Começava o artista por nos surpreender pela sua “sensibilidade
mediumnica”, “antena da sensibilidade universal”, passava a ser declarado “um
dominador”, na sua “emoção há serenidade”. E depois “Artista que o génio da
época produziu, o seu espírito de adivinhão
latino, como ele próprio se define, é como um búzio onde a intuição resôa”.
Depois ainda é dito “personalidade complexa”, “na sua arte nunca encontramos
uma copia servil dos objectos, mas a interpretação emocional e filosófica, mas
a configuração abstracta e harmoniosa que lhes é própria”. A seguir: “A sua
vida de pintor tem-se desenvolvido n’uma evolução continua”, como as
“metamorfoses do bicho da sêda”; e “As raças afirmam-se pelo génios que
conteem”. “Portugal é uma raça, deu também a esta época um representante: [Santa-Rita
Pintor]”.
Assim, ele traz consigo a coragem e o orgulho de uma “raça”,
em conclusão final da última nota, garantindo-nos, na terceira, em seu fim, que
“– N’ele o Futuro é já Presente…” Assim, de ponto em ponto, a imagem de
Santa-Rita se afina. Espírito renovador, genial temperamento, ele “faz-se
vertigem perante a vertigem, mas domina a vertigem” (ponto I). “É o iluminado
que se afirma, que electrisa, e atrai, e convulsiona a vida” (ponto II). “E tão
forte era o seu pensamento” e “o seu espírito Europeu de homem moderno” “que um
dia rompeu e inutilizou a Forma”
(ponto V). E seria, no ponto IV da prosa [Bettencourt-Rebello], “a sua arte de
um lirismo geométrico” em desejada definição.
O signatário destas duas páginas destacadas em tipografia,
era um jovem e sossegado poeta açoriano de odes e canções publicadas em
voluminhos e que viera à capital. Apresentado por Carlos Porfírio no café
Martinho – ou Martinho do Teatro Nacional, ao lado deste – a Santa-Rita. Logo
foi convidado para redactor em chefe da sua revista [Portugal Futurista], que
nos ia pôr em contacto com a Europa. Não foi redactor em chefe, nem editor
responsável, posto atribuído a um anónimo, se existente, S. Ferreira. E mais tarde,
em 1928, ele colaboraria num livro de crónicas e memórias o Mundo das Imagens[8]. O
fascínio sofrido, tal como, e principalmente, conta ele, o sofreu Almada
Negreiros. Depois ainda, em 1929, o Bettencourt lançaria um magazine medíocre
que ficaria no 1º volume, chamado Lisboa Galante, sem mais notícia até morrer,
em 69.
Publicado na Portugal Futurista I
Publicado na Portugal Futurista I
O autor de um outro texto consagrado da revista era Raul
Leal: “Divagation outrephilosophique-Vertige à propôs de l’oeuvre géniale de
Santa Rita Pintor, “Abstraction Congénitale Intuitive (Matière-Force)”.
Refere-se à obra mal reproduzida na revista (“la suprème réalisation du
Futurisme”). Era “l’abstraction futuriste” que o autor alcançava nesta obra. “Santa
Rita Pintor concebeu, em síntese, a realização integral de toda a teoria futurista
sobre a Vida!”. Raul Leal teria correspondência com o próprio Marinetti, a quem
ele queria converter às suas teorias, mais teosofistas a certa altura. Trinta e
nove vezes a palavra “Vertige” é avançada neste texto de duas páginas, redigida
em excelente francês. Que o vertiginismo está para além do que mais o Futurismo
pode dar. Concebendo então perfeitamente o “concret.en-abstrait –Vertige oú il
n’y a rien de phisique”… E “Santa Rita
est un futuriste outré, et son génie est la quintessence du génie futuriste”. Raul Leal, que ainda em 1924 se ocuparia também da
Luxuriosa Loucura de Deus em Mário Eloy[9],
falando do seu ultrafuturismo, e que já está historiada. Ainda nos anos 50 ele
se debruçaria sobre o realismo [o neo-realismo e o surrealismo] em convívio com
Mário Cesariny[10].
Raul Leal foi o único dos grandes de Orpheu a ter na altura
voz significativa a favor de Santa-Rita, numa admiração sincera e fascinada,
que ainda quarenta anos mais tarde se manifestará em artigos da revista Tempo Presente,
em 59, ao insistir na ética pessoal e dignificadora do seu grande amigo e
admirável artista. E pouco depois, na mesma publicação, Raul Leal revelará uma
Magna obra que Santa-Rita então sonhava: “O Papão”. Tratava-se, ou tratar-se-ia,
de “grandes pinturas a fresco no Mosteiro dos Jerónimos, desenhos coloridos
informes que dessem imediatamente a forte impressão alucinatória desse mundo
astral, apavorante, expresso em abstracto, que invocassem o mundo abismicamente
espectral de Portugal, exaltando as
imaginações delirantes dos nossos antigos navegadores”. Estamos antes de 18, em
dezasseis ou dezassete, na congeminação desta grande obra, de que Raul Leal
muito mais tarde teria guardado a lembrança. Um soberbo sonho pictural,
Santa-Rita levou-o consigo ao morrer, logo três meses depois do Portugal
Futurista.
“Serão febres de África Sr. Doutor?”. “Ah, o Senhor
Santa-Rita esteve em África?”, perguntou o médico desesperado com o complexo
quadro clínico do moribundo. “Não, nunca lá fui.” E foi a última anedota que
sobre Santa-Rita correu em Lisboa. No mês seguinte à sua desaparição, para ser publicado
em in memorian, de um só autor, logo
em 19, outro modesto publicista seu amigo, poeta, ficcionista, crítico e
cronista, meio simbolista – de “rézas d’espuma e de sarcasmo”, A Esmeralda de Nero[11] publicada
em 1915 – e funcionário colonial contrariado, Carlos Parreira, que Santa-Rita
dizia ser o único génio que ele conhecia, escreveu sentidas palavras da maior
admiração. O pintor era para ele lembrado como o “representante legítimo dessa
espécie de exilados, sempre referidos pelo gume das coisas circundantes,
sobrepassando uma atmosfera de abstracção e desdéns; figura gracilmente exangue
de fim de raça; voz de hemoptise, fronte de um palor de camélia, gestos
inquietos e estridentes; alguém que, nos domínios de emoção e pensamento, os
fados sagraram um grand seigneur. E
como tal, “figura negra de espectro, meio Hamlet, meio espantalho”, que ou
testemunha da época, um tal Rui Aragão, o viria a descrever mais tarde, na
revista Aventura (1914), onde Santa-Rita aparece num auto-retrato desenhado, da
cabeça afilada, duplamente traçada, cabeleira farta, porte de dandy. Todas estas provas circunstanciais
de santificação valem o que valem, de emoção de estilo e de época que não podia
ser futurista, num decadentismo que fora ponto de passagem do século IXX que se
terminava, sem se saber como, num Portugal feito de salvações não só políticas,
e governado numa guerra alheia para salvar as colónias mais ou menos próprias.
Uma guerra e higiene do mundo para manifestos sem consequências, a não ser
dramática e miseravelmente para os lapouços do corpo expedicionário, malta das
trincheiras, carne de canhão, “joões ratões” sacrificados. Poetas futuristas
que se manifestavam sem darem corpo ao manifesto, nem voluntariavam a
incorporação, fossem eles quais fossem, geniais, Pessoas, Almadas e Amadeos.
Não, porém, a fraca figura de Santa-Rita, numa anedota que também corria, que
não tinha corpo, era só fato [muitos risos da assistência]. E, para além dos
textos angeológicos publicados, e sem leitores – e que temos de achar
francamente medíocres na literatura, Raul Leal à parte, bem entendido – as
anedotas foi o que restou, do “Guilherme pobre”, cuja obra jamais exposta
individual ou colectivamente, a seu derradeiro pedido, foi destruída pela
família. Derradeira atitude também de autodestruição, mas também certamente de
insatisfação, senão de dúvida, quanto ao que pudera realizar. Em 1965, no
cinquentenário de Orpheu, Almada Negreiros escreveu “Memórias e comentários”. E
a ele coube lembrar, uma lembrança breve de Santa-Rita: “Um dos mais extraordinários
espíritos que conheci em toda a minha vida. Vendo nele ser só espírito, e
afinal a sua genial coerência”. E Almada acrescentou que cortou relações
pessoais com quem se bastava com a notoriedade de andar por aí a brilhar com
histórias do Santa-Rita, provocando gargalhadas, e ignorava quem com essas
mesmas histórias estropiadas ainda existia.
Tinha sido com ele (Santa-Rita) que Almada fizera juramento
de estudarem os Painéis de Nuno Gonçalves [os famosos Painéis de São Vicente de
Fora], rapando então à navalha os cabelos (“com o selo do nosso pacto). Assim
se esboçou, não se sabendo com que grau de consciência dos outros dois
comparsas [Santa-Rita e Amadeo de Souza-Cardoso], o que viria a ser o leitmotiv da criação almadina. Santa-Rita[12]… não
foi directamente de Santa-Rita que Almada teve que falar, ele que lhe dedicará,
e a Amadeo, a conferência sobre o modernismo realizada em 1926. Mas em seu nome
o fez quando em 1932, à vinda de Marinetti a Lisboa, académico do “facho”
italiano – “trazido por António Ferro, então a preparar-se para o secretariado
da propaganda nacional, que a sua proposta de política de espírito, em
habilidades dos seu programa pessoalíssimo”, palavras do Almada –veementemente
protestou, nas colunas do Diário de Lisboa. Palavras de Almada: “contra o ameno
Sarau mundano para deleite dos pompiers
nossos amigos, realizado ante os três mais categorizados inimigos do futurismo
em Portugal, e que eram, além de António Ferro (que trouxe Marinetti e que fora
editor “menor” [muito jovem] do Orpheu), Adães Bermudes (Presidente da Sociedade
nacional de belas Artes, um considerado arquitecto do edifício onde a sessão
teve lugar), e também, academicamente, Júlio Dantas (o fantasma de 1915). Em
nome dos nomes heróicos do futurismo português”, Almada Negreiros falou, então.
Estamos ainda em 1932. Vinte anos depois do cinquentenário do Orpheu, e
cinquenta anos depois do episódio Marinetti, alguém, um jovem José António
Sampaio, que não conheço, nas páginas da revista portuense Nova Renascença, em
83, chamou a atenção para Santa-Rita, num artigo bem informado, no seu
entusiasmo, com uma reacção imediata de João Gaspar Simões no Comércio do
Porto, de 3 de Março de 83. Achando “ser pecha dos portugueses exaltar o valor
dos que pouco ou nada fazem, para assim pôr em cheque o valor dos que muito
realizam”, recusou “a reabilitação dessa espécie de símbolo clownesco no modernismo órfico; que
representa um dos maiores vícios da mentalidade nacional, a inércia desse
Santa-Rita. Que nada legou, além de um fabulário anedótico, e cuja obra nada
representa, nada é”. Não será, com certeza, a última manifestação de um
desentendimento crítico fundamental que, na pena de quem se assumia na revista
Presença (“Nós, a Presença”, escreveu em 85), na altura a publicação de
referência crítica do modernismo da geração anterior, tem particular gravidade.
Num mesmo momento em que Fernando Pessoa, nas páginas do lado da revista Sudoeste,
de Almada Negreiros, assinava como: “Nós, os de Orpheu”. Entre os quais, para
ele, Santa Rita e a sua “a alta sensibilidade moderna”[13],
inteligentíssimo e muito pitoresco no convívio havido em 1915. O próprio
Fernando Pessoa escreveu a Santa-Rita em 21 de Setembro de 1915, escreveu o
seguinte: “Orpheu não acabou, Orpheu não pode acabar”. Tratava-se de surgir
outra vez, “à superfície… mais adiante”[14].
-
[1]
Transcrição, por Luís de
Barreiros Tavares, do registo áudio da Conferência de José-Augusto França,
no Congresso
Internacional 100 Orpheu, a 26/03/2015 na Fundação Calouste Gulbenkian. Pode
consultar-se o vídeo intitulado “José-Augusto França -
"Guilherme Pobre" (Santa-Rita Pintor) - 100 – ORPHEU”: https://www.youtube.com/watch?v=_lYr-NiiRhk
. Nesta gravação com debate poderá ouvir-se a intervenção do sobrinho-neto de
Santa-Rita Pintor. Colocaram-se algumas notas de rodapé para apoio de texto.
[2] O
célebre caso político de Álvaro de Campos (Fernando Pessoa) a propósito da
queda de Afonso Costa ao saltar de um eléctrico…
[3] De 1910,
foi
exposta pela primeira vez em Lisboa somente em 1917 na 14ª Exposição da
Sociedade Nacional de Belas Artes. José Malhoa pintou duas versões do quadro a
de 1909 e a de 1910. Foram expostas pela primeira vez juntas, lado a lado, na
exposição O Fado de 1910, na Sociedade Nacional de Belas Artes, em Lisboa em 2010. https://pt.wikipedia.org/wiki/O_Fado
[4] Ultimatum de Álvaro de Campos e Ultimatum Futurista às gerações
portuguesas do século XX de
Almada Negreiros.
[5] Feito com pinceladas fortes com
uma broxa: espécie de pincel largo.
[6] Ela é
apresentada em último lugar na série dos 4 extra-textos; mas a sua datação
(1912) é anterior a outras (1913 e 1914).
[7] Podem ver-se algumas
destas reproduções no nº 16 da Nova Águia: Luís de Barreiros Tavares, "Ecos de Santa-Rita e
Malévitch: O Quadrado e o Círculo", Revista Nova Águia, nº16,
2º semestre, 2015, pp. 116-122, Zéfiro.
[8] Encontra-se como documento electrónico (Casa Fernando
Pessoa): http://casafernandopessoa.cm-lisboa.pt/bdigital/8-594LMR
[9] Manifesto “A Visão de Dois Artistas e a Luxuriosa
Loucura de Deus”, sobre Mário Eloy e Alfredo Cardoso.
[10] Para um
maior aprofundamento, veja-se: Pedro Vistas "Raul Leal ou da inclassificável vertigem: a propósito da tentadora
atribuição do título de “surrealista” à obra lealina”, Revista Nova
Águia, nº17, 1º semestre, 2016, pp. 126-136, Zéfiro; Raul Leal, “Um
extraordinário pintor, Mário Cesariny de Vasconcelos (nota introdutória de
António Cândido Franco, Revista Nova Águia, nº18, 2º semestre,
2016, pp. 251-253, Zéfiro.
[11]
Encontra-se como documento electrónico (Casa Fernando Pessoa): http://casafernandopessoa.cm-lisboa.pt/bdigital/8-412
[12]
José-Augusto França interrompe a leitura e dirige-se ao público: “é a última
folha, eu próprio fiquei admirado de já ser a última folha” [muitos risos]…
[13] “No 2.º número do Orpheu virá
colaboração realmente futurista, é certo. Então se poderá ver a diferença, se
bem que seja, não literária, mas pictural essa colaboração. São quatro quadros
que emanam da alta sensibilidade moderna do meu amigo Santa Rita Pintor.” (Álvaro de Campos em carta ao Diário de Notícias, 4 de
Junho de 1915); http://arquivopessoa.net/textos/573
[14] «De
resto, Orpheu não acabou. Orpheu não pode acabar. Na mitologia dos antigos, que
o meu espírito radicalmente pagão se não cansa nunca de recordar, numa
reminiscência constelada, há a história de um rio, de cujo nome apenas me
entrelembro, que, a certa altura do seu curso, se sumia na areia. Aparentemente
morto, ele, porém, mais adiante -- milhas para além de onde se sumira -- surgia
outra vez à superfície, e continuava, com aquático escrúpulo, o seu leve
caminho para o mar. Assim quero crer que seja -- na pior das contingências -- a
revista sensacionista Orpheu» (carta de Fernando Pessoa a Santa-Rita em 21 de
Setembro de 1915, in correspondência
1905-1922, edição Manuela Parreira da Silva, Lisboa: Assírio & Alvim, 1998,
pp. 172-173.
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