Arqueologias
I
«A arte não reproduz o visível, ela torna visível»
Paul Klee
1. O formato-suporte de todas as obras aqui
expostas é o quadrado. Trata-se, em grande parte, de uma homenagem ao
“Quadrado” de Kasimir Malevitch (1878-1935), mais propriamente ao “Quadrado (Quadrângulo)
negro sobre fundo branco” (“… o ícone do nosso tempo” segundo o artista). Obra
capital da célebre exposição de 1915 (“0.10”) do pintor da vanguarda russa nascido
na Ucrânia[2].
Também a tela-suporte desta obra tinha forma quadrada. Passaram precisamente
cem anos desde que aquela pintura foi exposta pela primeira vez. Não só
abordamos nesta exposição o quadrado, a figura do quadrado, mas também o
círculo, bem como outras figuras geométricas que despontaram o Suprematismo.
Por isso, realizámos neste ano de 2015, e com o objectivo de os expor agora, alguns
trabalhos concluindo a série que se iniciou com um outro em 2008 (“Portal”).
Grande parte da série foi realizada em Setembro e Outubro de 2012. Uma das
obras que fizemos recentemente intitula-se “Nada” (2015). Este será o trabalho
que culmina a experiência plástica que fizemos nesse período. Ele é o resultado
paradoxalmente quase nulo e absoluto do que encontrámos no tempo que dispusemos
para tal: os elementos decisivos do célebre “Quadrângulo” de Malevitch. São
eles, entre outros o que Malevitch designa “Nada libertado”, “deserto…branco
abissal”, “infinito”…
De facto, a experiência plástico-pictural sobre o
quadrado teve eco na arte do séc. XX a vários títulos. Por exemplo, Josef
Albers (1888-1976), pintor e teórico da famosa Bauhaus, cujo percurso incidiu em grande parte sobre a
forma-quadrado, realizando diversas obras intituladas, precisamente, “Homenagem
ao quadrado”, nas décadas de 50-60 do século passado. Se bem que Kandinsky não
fosse adepto da linguagem construcionista nem do neoplasticismo de Mondrian -
achando mesmo este último demasiado “puritano” -, não deixou de inscrever nas
suas obras de teor mais geométrico e ao mesmo tempo orgânico (meados da década
de 20 e década de 30) a experiência do quadrado, entre outras formas. Inclusive,
poderemos observar uma espécie de quadrículas coloridas que lembram, de alguma
maneira, as que se encontraram mais tarde nas pinturas rupestres de Lascaux. Veremos
mais à frente esta questão da arte do Paleolítico Superior. Mas muitos outros
retomaram e desenvolveram estas experiências.
A par daquela obra fulcral de Malevitch no
desenrolar da arte e mais propriamente da pintura do séc. XX, estão também o “Quadrado
branco sobre fundo branco” (1915), o “Quadrado vermelho” (“Realismo pictórico
de uma camponesa em duas dimensões”, 1915), bem como o “Círculo Negro”
(primeira versão de 1915). Como se sabe, o Suprematismo partiu daí, destes ensaios
elementares. Sem podermos, no entanto, desenvolver aqui esta questão, digamos
que a génese do quadrado monta a algumas experiências pictóricas de Malevich em
1913, segundo as palavras do próprio artista.
2. Mas, porquê o título da exposição: “Arqueologias
I”? Se bem que em nosso entender o Suprematismo seja, no fundo, uma corrente
inspiradora, abrindo um espaço plástico amplo na arte moderna e contemporânea,
ele é ao mesmo tempo um trabalho arqueológico. Porquê um trabalho arqueológico?
Ele indaga o espaço plástico (com a componente do tempo) com o trabalho sobre a
superfície da tela enquanto suporte da génese potencial de um outro espaço de pensamento
plásticos, quer dizer, como experiência artística.
De facto, se
remontarmos ao pré-histórico, quer dizer, mais propriamente, à arte rupestre do
Paleolítico-Superior, todo um processo genesíaco se inscreve na reflexão, se
assim se pode dizer, perante o fascínio da materialidade das paredes e das
rochas, quer nas cavernas, quer ao ar livre (gravuras no imenso espaço de Foz
Côa, p. ex.), emergindo uma dimensão espiritual. Poderemos assim encontrar
conexões entre a remota arte pré-histórica e a pintura contemporânea através da
reflexão ou pensamento do espaço na materialidade das superfícies como génese
espiritual enquanto tal. Tudo isto precedendo mas abrindo caminho ao longo
percurso histórico da arte passando, por exemplo, pela “perspectiva” (It. prospectiva) renascentista.
Os efeitos de luz e sombra foram, entre outros, um
estímulo para a criação parietal paleolítica. Daí o fascínio pelas rugosidades,
texturas, anfractuosidades das superfícies rochosas e argilosas nas suas
colorações, manchas e linhas naturais, geológicas. Consoante os efeitos de luz
natural (do sol, do luar das tochas nocturnas, etc.), as formas parietais adquiriam
aspectos diversificados, génese de imaginário, e mesmo efeitos de ilusão de
óptica. Foi isso, precisamente, que inspirou os artistas-feiticeiros, esses xamãs
ancestrais, no trabalho pictórico e de gravação, num jogo com aquelas
superfícies naturais. Sabe-se hoje que a topologia de certos espaços pictóricos
nas cavernas obedecia a determinadas condições acústicas. Estas permitiam a
articulação entre certas sonoridades, as imagens e o espaço.
3. Por essa razão, pelas “Arqueologias I” (primeira
série agora exposta), também constará uma outra obra. Não fará parte da série
na sua coerência a preto e branco, encontrando-se, todavia, em articulação e
estabelecendo pontes possíveis com os restantes trabalhos. É igualmente uma
pintura em formato de quatro lados iguais (um quadrado), cromaticamente
diferente da série a preto e branco. Intitula-se “Imemorial”, tendo como
subtítulo: "Falarão também os confins dos tempos do nosso tempo?" (técnica
mista e colagem (pedra) sobre tela, 150cmx150cm, 2000). Portanto, é um trabalho
realizado 15 anos antes dos mais recentes quatros expostos nesta mostra. Os
seus tons são basicamente barrento-avermelhados, com algumas figuras e motivos
rupestres. Uns em decalque partindo de certas figuras de sítios arqueológicos rupestres
(gruta de Rouffignac,em França, p.ex.), outros de inspiração nossa. Nesta
pintura pode encontrar-se já um gesto nascente de matéria quebrada ou estalada na
parte central. Esta irá ser experimentada quase na totalidade da série de 2012 (com
um dos pontos de partida num trabalho de 2008, modificado em 2010: “Portal”) que,
como dissemos, culmina em 2015. Nesta matéria estalada, quebrada, poderemos ainda
encontrar analogias e proximidades com as anfractuosidades das rochas antigas
de que falámos.
Por outro lado, esta experiência matérica terá afinidades
estéticas com o tempo, a duração temporal de milénios, mas igualmente com o
efeito temporal indefinido resultante de um processo criativo de poucos anos,
meses, dias e, mesmo, horas (a matéria usada começa a gretar em uma duas horas).
Faz-se assim
a ponte do tempo entre o presente e o passado remoto imemorial. Por outra
parte, os cacos, estes fragmentos matéricos, evocam de alguma maneira as
camadas arqueológicas de terrenos e “sítios” onde se encontram ossos, crânios
estalados (restos de alimentação, etc.), cacos de cerâmica, de utensílios,
vestígios de habitação… Em suma, qualquer coisa com familiaridade às ruínas,
aos traços do tempo e do espaço.
Despertou-nos este aspecto quando há pouco tempo
revimos uns documentários arqueológicos. Um sobre o trabalho de André-Leroi
Gourhan e outro sobre as explorações no parque arqueológico de Foz Côa.
4. Note-se, no entanto, que o estalado produzido
nestes trabalhos não é o chamado craquelé.
É importante assinalar este ponto, pois não se trata aqui de imitar este efeito pictórico, ao
contrário do que muitos possam pensar como base destes trabalhos. É um estalado
de matéria, mais profunda e espessa do que a tinta. O craquelé é tinta estalada
com o tempo, embora actualmente haja meios técnicos para o simular e produzir.
Será neste caso um craquelé imediato,
simulando um efeito antigo, imitando o que acontece nas pinturas com décadas e
séculos, enfim, simulando as marcas do tempo. Contrariamente, no caso dos
trabalhos desta série, trata-se antes de matéria estalada, mas matéria que não
é a tinta tradicional, quer dizer, nem tinta de óleo nem acrílico. É cal viva
(óxido de cálcio), sem um certo preparo final para caiar… É geralmente vertida
a quente sobre a tela. Por vezes misturada com tinta preta de água para as
tonalidades cinzas e cinzentos (vj. o trecho final sobre os elementos de
trabalho). Portanto, não há qualquer enfoque a priori no dito craquelé…
Há, porém, outros materiais com que se pode produzir o estalado; foi o que
aconteceu em “Imemorial”…
Mas podemos supor um trabalho de escalas, como que
ampliando significativamente o efeito visual do dito craquelé… Com efeito, e retomando aqui Malevitch, é curioso que as
camadas de óleo na mancha negra de uma das versões (cremos que a primeira) do
“Quadrado negro sobre fundo branco”, sofreram um interessante processo de craquelé. O que permite uma leitura de
escalas da textura gretada, aspecto que algumas das obras aqui expostas
experienciar (p. ex.: Hylê (no grego: matéria) - técnica mista sobre
tela, 50cmx50cm, 31/08/2012). Assim, a produção
da matéria estalada nestas pinturas que agora expomos seria uma experiência de
adentramento na matéria, fazendo, ao mesmo tempo, emergir dela, num olhar como
que vendo o dentro de (a partir de) fora…
Não se tratando de tinta nem de qualquer método de
simulação de craquelé, não há, por
assim dizer, qualquer processo mimético ou representacional. Tanto mais que as
configurações e formações do estalado e gretado são totalmente aleatórias. Por
outro lado, a matéria fragmentada constitui o trabalho pictural, ao passo que o
craquelé vem, por acréscimo,
sobrepor-se à pintura. Por outra parte, este efeito irregular e aleatório das
reconfigurações da matéria fragmentada, quebra, corta, precisamenente, o rigor,
a rigidez, a depuração das formas quadradas dos próprios suportes (telas
quadradas) e das formas quadradas inscritas pictoricamente. Mantendo-se assim
uma tensão entre o extra-pictural e o intra-pictural, conferindo-se assim um
novo questionamento da pintura como objecto…
5. Este momento estético-plástico das superfícies e
texturizações é fulcral. E retomamos este ponto porque não queríamos deixar de
lembrar o que Leonardo de Vinci (1452-1519) encontrava de fascinante ao
contemplar os muros velhos. Leonardo incitava a olhar as manchas e as texturas
dos muros velhos como fontes da imaginação. Quase cinco
séculos mais tarde, o catalão Antoni Tàpies trabalha na sua obra
pictórica - com um fulgor extraordinário - todo o motivo deste estímulo
material, matérico e, ao mesmo tempo, “espiritual”, como o próprio artista faz
questão de assinalar. Como se o muro-porta-selada - expressão que criamos aqui
para caracterizar uma das linguagens de Tàpies, ou um dos “talismãs” do artista
(aqui, expressão dele próprio), fosse, digamos assim, uma barreira e, ao mesmo
tempo, um portal em abertura espácio-temporal. Talismã, precisamente, pois, segundo
Tàpies, o fim ou um dos fins últimos da obra plástico-pictórica seria a
possibilidade ou a potência do seu efeito curativo, terapêutico mediante o
toque, o contacto com a matéria.
O muro e a sua superfície como matéria de
contemplação e meditação encontram-se também na tradição oriental do budismo
Zen (cf. pintura: As pestanas, o muro e Bodhidharma (eyelashes, wall
and bodhidharma).
Ainda a
propósito da superfície, a relação figura-fundo na pintura moderna e
contemporânea ganha outra complexidade chegando mesmo a produzir-se um efeito
de indistinção ou de jogo de permuta. É o que se pode chamar como carácter
biplano na pintura moderna abstracta no século XX[3].
Encontram-se exemplos significativos em, p. ex., Mark Rothko (a nebulosidade e
as pinceladas esfiadas) e Clyfford Still. Neste último, lembramo-nos das
pequenas manchas-rasgos-cromáticos, digamos, onde se divisam alternadamente, quando
nos detemos algum tempo frente à obra, efeitos de relevo (saliência) e de
reentrância…
6. O quadrado é sem dúvida um tema-ponto de partida
para o carácter abstracto desde o pré-histórico. Recordem-se os signos abstracto-geométricos
em Lascaux. Enigmáticos signos…
talvez tenham a ver com armadilhas, projecções de territorializações e
desterritorializações, para empregar conceitos de Deleuze (vj. Gilles Deleuze e
Félix Guattari em Mille Plateaux),
uma vez que aquelas demarcações são moventes, consoante os movimentos das
presas de caça (e também na contemplação dos animais no mundo; tema que não
iremos tratar aqui). Signos também de apropriação mágica, de captura, estranhas
grelhas, ou cercas, configurando formas quadrangulares (quadrados e rectângulos…).
7. Por outro lado, em Foz Côa, as placas quebradas,
talvez com o passar do tempo, produzem um efeito surpreendente em jogo com as
sinuosidades das múltiplas linhas emaranhadas expressando animais (p. ex.: Rocha
1 - das escavações de 2007: http://www.arte-coa.pt/index.php?Language=pt&Page=Gravuras&SubPage=ArteRupestre&Sitio=29).
Mas, sem dúvida que as fracturas na pedra já existiam no tempo dos homens do
Paleolítico-Superior. Portanto, como dissemos mais acima, elas foram um dos
muitos elementos motivadores da génese espiritual do humano na sua dimensão
artística. É o jogo de reentrâncias e saliências, do vazio e da matéria.
8. Apesar, de um dos elementos centrais ser o
quadrado, a forma quadrangular, tanto assim que todas as pinturas são
realizadas em suportes quadrados (muitas delas inscrevendo formas
quadrangulares), e sendo que a obra de Malevitch é central nesta série e mesmo
no conjunto com o extra-quadro (“Imemorial”), vários outros artistas são
evocados. Não só pelas vertentes geométricas que alguns abordam (Mondrian…),
mas também pelo campo matérico de alguns (Tàpies, Bram Bogardt, David de Almeida). No caso de David
de Almeida há um propósito acentuado e provocatório na incoerência entre título
e obra: a homenagem a este artista português intitula-se “Máquina”, quando a
obra de David de Almeida, nada tem a ver, ao que supomos, com tecnologia e maquinaria….
Todos os trabalhos comportam uma dimensão material
expressiva (as texturas…). Alguns dos autores evocados nesta série não
trabalham com técnicas mistas, ou, pelo menos, pouco. Outros mesmo nada. Mas
nesta série não pretendemos fechar o processo criativo simplesmente em formas
geométricas. Tratou-se também de conferir, a partir da dimensão material, uma
expressão alargada a outros signos e linguagens, pondo em diálogo várias
possibilidades. Até porque vários trabalhos desta série são ainda preliminares.
Trata-se da primeira série, porventura preparatória para uma outra fase…. Todavia,
certos trabalhos são já uma conclusão do processo, como é o caso de “Nada” (2015).
Assim, articulam-se nalguns trabalhos transitórios
elementos com base num determinado material, sempre no suporte quadrado e
explorando um ou outro elemento sígnico de um artista: Miró: formas aleatórias esboçando
seres sígnicos a partir do trabalho dos materiais em causa; Klee: a seta na sua
geometria e enquanto “vector”…; Joan Hernández Pijuan, a) o próprio utiliza espessura
e densidade acrílica, b) os seus trabalhos são meditativos, componente que
tentamos manter transversal ao conjunto da série; David de Almeida, artista que
usa técnicas mistas e texturas, idem
relativamente à dimensão meditativa; Tàpies com as suas geometrias de portas e
marcas espaciais, acontecendo o mesmo elemento meditativo; Bram Bogart com suas
as suas massas meio panificadas, digamos,
ou como que de plasticina, ricamente cromáticas (aspecto que escapa à nossa
série que se resume ao preto e branco), etc.
9. Por outro lado, como se a pintura, entendida
normalmente como película pictural no suporte bidimensional ganhasse aqui uma
dimensão textural, uma espessura conferindo um carácter tridimensional, objectal.
Como se alguns destes trabalhos, uns mais expressivamente, apelassem a objectos
tridimensionais enquanto extractos retirados de um local de origem, como
acontece com certas placas arqueológicas (artísticas) extraídas de um local ou
paisagem. Para não falar da relação do próprio caixilho ou armação como
constituindo objecto com a pintura. Não é isso, por exemplo, o que sugere Miró
quando inverte uma tela expõe o bastidor?
Este elemento objectal talvez faça ponte com o
ready-made de Duchamp, apesar do grande gesto deste artista ser de outro campo
que não cabe, de momento, aqui tratar. Note-se no entanto que há quem aproxime o ready-made de Duchamp à
pintura e não à escultura. Porquê? Precisamente, porque Duchamp se afastou da
pintura através do processo ready-made, é legítimo e há mesmo quem sustente que
o ready-made, apesar da sua tridimensionalidade, terá mais a ver com a pintura
do que com a escultura. Não há dúvida que o ready-made era uma resposta há
pintura, uma negação dela. Mas não só pura negação; por isso ele se manteve na
história da arte enquanto uma questão da pintura: “Se Duchamp tivesse renunciado a toda a ambição artística renunciando à
pintura, não se falava mais dele hoje. Com toda a evidência o readymade é,
entre outras coisas, a certificação do seu abandono da pintura [“Marcel, não
mais pintura, procura trabalho”, em 1912], a maneira pela qual este último se
encontrava implicado nesta confirmação e, por isso mesmo, tornado significativo. Ele
significa para a pintura que ela morreu e faz-lhe significar que não é mais
pintura. Não foi senão por esta razão, que os readymades pertencem
paradoxalmente à história da pintura e não, por exemplo, apesar da sua
aparência e qualidades tridimensionais, à da escultura. ainda será necessário
mostrar que não é somente negativamente e que o readymade “fala” de facto de
pintura, mesmo e sobretudo se não se trata disso. Pode e deve ser interpretado,
hoje, como qualquer coisa que estabelece um laço paradoxal com a história e a
tradição da pintura”[tradução a rever][4]. Qual
o alcance deste problema?
Mas tentemos deixar aqui algumas notas deixando no
ar a questão. De facto, a multiplicidade e multiplicação do quadrado espraia-se
a um campo tridimensional, para o cubo, tal como o círculo para a esfera. A
experiência de Duchamp foi um outro modo de extrapolar para a
tridimensionalidade (para não falar da quadridimensionalidade temporal). O
arrancamento de um objecto ao seu espaço (des-contextualizando-o), inscrevendo-o
em seguida num outro - o espaço da exposição – (re-contextualizando-o), apelando
a um público e inscrevendo por seu turno um título (um nome casual), é uma
maneira de repensar o sentido do espaço…
10. A arte contemporânea funciona hoje muito graças
ao espaço envolvente (sala, ambiência, paisagem…). Mesmo a pintura, com a
reprodutibilidade técnica (W. Benjamin), já desde os princípios do séc. XX, conta
hoje muito com a fotografia. A fotografia de um quadro, de uma instalação, inscreve
as obras, reenquadrando-as, num espaço desdobrado (o espaço branco da página do
catálogo, da sala onde se encontram tanto a pintura como a instalação ou a escultura,
etc). A bidimensionalidade da fotografia ilude o espectador numa
tridimensionalidade, ajudada pelo próprio espaço museológico contemporâneo. Por
exemplo, a fotografia de uma obra num espaço de exposição; a fotografia de uma
fotografia num espaço de exposição, etc. Enfim: obra+espaço envolvente… como se
este constituísse também já a obra…
Veja-se como os museus construídos hoje,
principalmente quando projectados por arquitectos de renome, se articulam, ou
são condição de possibilidade de articulação espacial com as obras expostas. Pode
ser - não é obrigatório que o seja - um
dos riscos que se correm no fascínio exteriorizante de uma certa estetização off (questão a tratar noutro lugar), digamos,
de um certo de fora quando somos
gratuitamente cativados pela pura reprodutibilidade dos catálogos, das
monografias, acrescentando a isto o pouco tempo e disposição em nos determos em
torno das obras nos espaços de exposição. Em vez de um certo fora, esse a ter em conta, recai-se numa
clausura, por assim dizer, um fora
que adentra sem jogo: um sair que mais não é do que um entrar precisamente no
circuito fechado de um certo mero entretenimento
embalado por esse espaço que afinal se reconfigurou, o da facilidade e de uma
certa estética do que é simplesmente um “trabalhar para a fotografia”. Tudo
levando a crer, numa certa ilusão de óptica - muito sob um efeito, de alguma
maneira, dos simulacros de hoje -, de que se trata de exterioridade no pleno
sentido da palavra. É evidente que não se pretende aqui subestimar a questão da
fotografia nas potencialidades da sua força expressiva e artística.
11. Mas o quadrado e o cubo na sua problemática
abordando o tridimensional ou possibilidade aberta para o visionamento do
objecto representado segundo várias posições (trás, frente, lado) recuam a
Picasso (Cubismo) e ainda a Cézanne, o germinador desta arte da “planeidade” e
da “tal-qualidade pictural”[5].
Cézanne despontou decisivamente, como condição de possibilidade do cubismo, com
as célebres paisagens do Mont de Saint Victoire.
Por isso, há uma objectalidade ou, diríamos, uma
concreção no “Quadrado” de Malevitch pelas “sensações e massas picturais” de
que ele fala. Portanto, digamos que não se trata só do abstracto, não só do “não-figurativo”,
para usar uma expressão preferida pelo artista. Daí também o desdobramento
suprematista no que se chama o “abismo branco”, o “nada libertado”, o “infinito”…
12. Para terminar, não queríamos deixar de referir
um trabalho que se inclui na série. É uma homenagem a Santa-Rita Pintor (1889-1918;
11 anos mais novo do que Malevitch!) que - do muitíssimo pouco que se salvou
(Santa-Rita, à beira da morte, exigiu que todas as suas obras fossem
destruídas) - teve uma atenção muito especial relativamente à linguagem
geométrica e especialmente aos esboços quadrangulares e ao próprio quadrado. Santa-Rita
reclamava-se cubofuturista; Malevitch respeitou e seguiu atentamente durante
algum tempo esta corrente. Contamos
publicar no próximo número da revista Nova Águia (nº16), a sair em Outubro de
2015, um estudo sobre estes elementos[6].
Por volta de 1913-1915, eles são extraordinariamente enfocados e ensaiados na
obra do pintor português, justamente em eco ao “Quadrado” de Malevitch.
Luís de Barreiros Tavares
Alguns componentes e elementos intervenientes na acção: Cal viva
(óxido de cálcio), sol, sombra, vento, ar, tempo, acaso, espaço, pequenos
acidentes, água, corpo, galhos, ferramentas, tinta de água (para obras de
construção civil - branca e preta), cimento branco, pó de pedra, areia de
rotilo (areia negra de origem vulcânica), peneira para areia fina, resina
acrílica não tóxica (cola Vénus), pincéis Goya - pêlo-de-boi e outros,
espátulas, escápulas, pregos, esquadria a régua, esquadro e a olho nu (à
chamada "vista desarmada"), mão esquerda e mão direita, filamentos de
vassora de piaçava (o piaçava é uma palmeira nativa, por exemplo, da Bahia e do
Amazonas; o nome 'piaçava' (planta fibrosa) é de origem indígena (tupi), etc.,
etc..
Link do currículo: http://texturizacoes.blogspot.pt/
Link com algumas obras desta série no blogue escrita-fone:
Ver também nosso texto sobre Malevitch: http://escrita-fone.blogspot.pt/search?q=malevitch
[1] Carece de alguns acrescentos, etc. Texto
para a exposição na Fábrica de Braço de Prata – Sala Kandinsky – de
12/06/2015-30/07/2015. Foi-me também solicitada realização de um texto para uma
determinada revista. Mas parece ter havido um malentendido e um um problema de
encaminhamento da coisa por parte de terceiros… Também chegou a estar patente
na exposição. Assim, é agora numa primeira versão trazido à luz on line. Como se indicou acima nesta nota, este
texto poderá ainda sofrer alguns desenvolvimentos, para além de precisar de
eventuais revisões e reparos.
[2]
Assistimos a interessantes aulas de José Gil sobre Malevitch na UNL.Vj. no
Youtube, na nossa página: José Gil – “Questões de Arte Moderna”.
[3] Devemos
a chamada de atenção para este conceito a Teresa Cruz nas aulas da UNL.
[4] Cf. Thierry de Duve, Résonances du readymade, Duchamp entre avan-garde et tradition,
Paris, Hachette, p. 125-127.
[5]
Veja-se a este propósito as análises de Malevitch; nelas refere também a “uniplaneidade"
nalgumas paisagens de Braque.
[6]
Entretanto o artigo foi publicado na revista e consta on line: http://escrita-fone.blogspot.pt/search?q=+%22Ecos+de+Santa-Rita+e+Mal%C3%A9vitch:+O+Quadrado+e+o+C%C3%ADrculo%22+-+Publicado+na+revista+NOVA+%C3%81GUIA+16+-+Lu%C3%ADs+de+Barreiros+Tavares
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