Fernando
Echevarría: I. Luz, sombra e movimento II. Excursos
Luís de
Barreiros Tavares
*
Luís de Barreiros Tavares, "Fernando Echevarría: I. Luz, sombra e movimento II. Excursos", Revista Nova Águia, nº17, 1º semestre, 2016, pp. 62-68, Zéfiro.
Luís de Barreiros Tavares, "Fernando Echevarría: I. Luz, sombra e movimento II. Excursos", Revista Nova Águia, nº17, 1º semestre, 2016, pp. 62-68, Zéfiro.
I
Luz, sombra e
movimento
Esperamos a sombra.
A clara sombra e o lugar devido
às tuas mãos alçando-nos a taça
e o doce vinho.
Depois o sério movimento alarga
estar-se ouvindo,
por trás de ti extraviada,
a sombra que esperamos longa e larga
como pensar beber o último vinho.
Fernando
Echevarría, A Base e o Timbre
A)A sombra, enquanto tema frequente na
poesia de Fernando Echevarría, no seu sentido amplo e claro em relação à luz, é
descrita num excelente ensaio do grande poeta António Ramos Rosa (1924-2013)
citando alguns passos de um outro poema: “No
poema Essa Sombra [do livro Sobre as Horas], o movimento parte do interior da
sombra (do corpo) e espraia-se numa vasta felicidade cósmica («se nos abrir por
dentro longas ruas // de respirar, enfim, grandes, abertas / - água de folhas,
indefinível lua, / somente expostas, quase nem concretas»). Estes versos
dão-nos a dimensão física da plenitude, uma sensação de presença, uma frescura
total.” (“Fernando Echevarría – Entre movimento e imobilidade”, Incisões Oblíquas, p.108). Há uma
relação entre a respiração, a luz e a sombra, movimento lento que abre para
espaços amplos.
B) Movimento, sombra e luz da «clara
sombra» sugerem como que uma brisa suave que se ouve ou se escuta: “Depois o
sério movimento alarga / estar-se ouvindo, / por trás de ti extraviada, / a
sombra que esperamos longa e larga”. Mais uma vez o movimento amplo e sereno
apela a um espaço-tempo poético, o qual por sua vez transmite serenidade. “ (…)
a sombra e a luz comunicam entre si numa complexa trama espácio-temporal” (R.
Rosa, op.cit, p.110). Assim, o
movimento do corpo feminino como que se ouve no seu gesto, na deslocação de ar
que este inscreve no espaço. Também o movimento físico em relação com a sua
sombra sugere a lentidão de um movimento em câmara lenta. A lentidão calma do
movimento no poema revela-se numa espera suave que o percorre, um sentido
espácio-temporal; um mover devagar e de um vagar… dando lugar: “Esperamos a
sombra”, “a sombra que esperamos longa e larga.”
Ainda um passo de Ramos Rosa a propósito dessa duração
e vagar em Echevarría: “ … o presente do poema, mais que um instante, é um
processo temporal em que a duração é sinuosa e enroladamente sucessiva. Num
ritmo vagaroso, em que a substância de cada palavra é extremamente valorizada,
o poema vai instaurando o lugar da presença ou de uma correspondência actual de
diversos planos da realidade” (Idem,
p.110).
Nesta brandura do esperar (“Esperamos a sombra”), o
pensar, por seu turno, enquanto suspensão calma, estrutura o sentido do poema
como génese de um espaço-tempo de serenidade e meditação.
C) A sugestão da sombra, do ar e do
corpo feminino em movimento apelam a uma respiração plena numa atmosfera ampla
mediterrânica. Assim, os efeitos da luz e da sombra, do sol e da claridade
ampla em muitos outros poemas marcam-se certamente com a influência do Mar
Mediterrâneo banhando a costa da Argélia e de Argel, a sua capital, onde
Fernando Echevarría viveu alguns anos – Argel apelidada Alger la Blanche (ver Parte II: Excurso pictural).
A transparência, entre outros efeitos a
ela análogos, releva deste jogo luz-sombra. O poeta e ensaísta Fernando Guimarães,
no seguimento de uma interessante análise ao livro de Echevarría A Base e o Timbre, encontra alguns
termos relacionados com a luz e a sombra: “A simples leitura desses poemas
mostra que há neles duas palavras que, de certo modo, os saturam: luz (à qual associaríamos o adjectivo luminoso e as formas do verbo iluminar) e sombra. Acrescente-se ainda que – pelas suas incidências
significativas – nos é dado aproximar de luz
outros termos que ocorrem frequentemente, como, por exemplo, manhã (ou madrugada, madrugar, amanhecente, matutino), cristalino, transparência
(ou transparente), cintilar (ou cintilante), etc., e, por sua vez, de sombra o verbo nublar”
(“Os «conceitos puros» em Fernando Echevarría”, A Poesia Contemporânea Portuguesa, p.28).
D) O elemento “vinho” alia poeticamente
as atmosferas criadas e os cinco sentidos: 1) o paladar (“ e o doce vinho”); 2)
o olfacto associado ao paladar; 3) o ouvido (“estar-se ouvindo”); 4) a visão (a
sombra-luz de “A clara sombra”); 5) o tacto (“… o lugar devido / às tuas
mãos…”). E os movimentos dos corpos (“…o
lugar devido às tuas mãos alçando-nos a
taça”).
O vinho encontra-se igualmente investido de erotismo,
pois serve o amor entre homem e mulher: “às tuas mãos alçando-nos a taça” / (…)
por trás de ti extraviada, / a sombra que esperamos longa e larga / como pensar
beber o último vinho.”
E) Noutro plano, o ritmo e a cadência
do poema produzem um efeito curioso em que o trabalho de leitura do leitor não
faz esquecer o trabalho de escrita do escritor, sem que ambos se confundam numa
identificação acrítica. O poema sugere múltiplas possibilidades nos planos do
sonho e do imaginário sem a eles se limitar, na condição, precisamente, de que
estes também emergem da força do sentido da palavra no trabalho de escrever.
Uma certa frieza e mera abstracção que possam
eventualmente ser atribuídas, sem mais, à sua obra, só revelam uma perspectiva
redutora na forma como se entende a poesia. Precisamente essa dimensão
abstractiva em Echevarría retira um certo facilitismo declamatório, imprimindo,
pelo contrário, uma leitura mais impactante e pensante. Dimensão aliada ao
ritmo pausado (“vagaroso”, vj. R. Rosa) e a muitos outros aspectos, como as
dimensões filosófica e de pensamento constituindo o seu poetar.
Com efeito, no prefácio à Obra Incompleta de Echevarría, Maria João Reynaud não só se refere
aos temas da sombra e da luz, como também a uma certa abstracção: “Daí que em Uso da Penumbra, o leitor experimente a sensação de estar
perante um livro total: um livro onde a tensão intrínseca entre a luz e a
sombra, ou o excesso e a carência, se resolve numa espécie de transparência
enigmática, em imagens analógicas de potencial abstracto” (p.23).
F) Lembremos que Echevarría escreveu
livros de poesia cujos títulos são Introdução
à Filosofia (1981), Fenomenologia
(1984), ou ainda o último publicado até à data: Categorias e outras Paisagens (2013).
Ainda sobre A
Base e o Timbre encontramos este passo de Fernando Guimarães: “O desenvolvimento da poesia ao longo de um
espaço como este acaba por confinar, como já disse, com um sentido muito
especial de abstracção e depuração. É o que particularmente ocorre em Introdução
à Filosofia (1981) e Fenomenologia
(1984). Não se recusa à poesia o que
poderíamos, com maior ou menor rigor, designar por um conjunto de filosofemas,
muitos deles provenientes da tradição filosófica tomista ou daquele «regresso
às coisas» em que os fenomenologistas, na linha dos ensinamentos de um Husserl,
tanto se empenharam.”
“Em Fernando
Echevarría a referência à Fenomenologia supõe uma condição prévia de leitura”
(Op. cit., p. 29).
G) Por outro lado, em Fernando
Echevarría as imagens, emergindo da escrita, como que nela se rebatem,
convertendo-a, num duplo movimento, enquanto outra e nova condição de
imaginário, mas também de presença (“sensação
de presença”, “presente do poema”,
“lugar da presença”, Ramos Rosa).
Como é possível? Leia-se, por exemplo, este belíssimo passo de Echevarría no seu livro Figuras: “Escrevemos docemente. Se a figura / sobe de estar tão funda a essa mesa
/ é que escrever se lembra. E só da altura / de se lembrar percorre a linha
acesa // a ponta de escrever, que traça a pura forma de rosto (…)”
Aqui podemos escutar alguns ecos e ressonâncias com a
poesia interseccionista de Fernando Pessoa ortónimo no seu poema “Chuva
Oblíqua” (1914): “A grande Esfinge do
Egipto sonha por este papel dentro / Escrevo – e ela aparece-me através da
minha mão transparente. / E ao canto do papel erguem-se as pirâmides…// Escrevo – perturbo-me de ver o bico da minha pena / Ser o perfil do rei
Quéops… / De repente paro … (…)”.
Por assim dizer, naquele duplo movimento produz-se uma
nova impressão e experiência do que é a escrita. Como se produz? Precisamente
quando a escrita assenta, digamos
assim, sobre si mesma, numa ins-crição,
entrecruzando-se a materialidade e o sentido, despontando outra compreensão do
espaço poético.
Com efeito, cria-se também nesta espécie de assentamento da escrita como que uma
ressonância (no plano da voz e da escuta) e uma reverberação (no plano da
luz-sombra, do reflexo e da visão).
H) Daqui decorre simultaneamente um
processo de abstracção poética transfigurando-se tanto as imagens, numa
estranha transparência e esquematismo em movimento, quanto o próprio sentido do
que se entende por inscrição que
constitui o trabalho de escrever.
Trabalho de escrever, quer no seu plano semântico, quer
na plena acepção de matéria da escrita (traços, espaços brancos-papel, tinta,
bico da caneta, caneta, letras, palavras, frases, textos, punho, corpo, mesa,
realidade envolvente ao leitor e ao escritor, etc.).
O sentido do concreto ganha uma nova e outra força com
o carácter material e físico da escrita que tentámos analisar. Digamos até que
também se altera a compreensão da realidade e do humano.
I)Talvez valha aqui lembrar o antigo e
belíssimo passo de Píndaro (séc.VI a.C.) numa das suas Odes Píticas (VIII –
“Para Aristómenes de Egina, Vencedor na Luta”; 446ª.C.): “Tu que existes exposto ao que os dias te trazem, o que é ser Alguém? O
que é não ser Ninguém? O humano é o sonho de uma sombra.
Mas quando
chega o esplendor dispensado por um deus, há uma luz brilhante entre os homens
e a vida torna-se doce.”
II
Excursos
Nota: O excurso é um
desvio do tema, do assunto. Estes excursos, talvez também extrapolações, são
pertinentes em nosso entender. Pois partindo dos temas centrais deste estudo
sobre a poesia de Echevarría (Parte I, “Luz, sombra e movimento”), ventilam-se
possíveis horizontes de pensamento, revelando o poder da poesia ou, por
exemplo, do “pensamento-poema” (na expressão de Alain Badiou num estudo sobre
Pessoa). Por outras palavras, a experiência da poesia e da arte no seu trabalho
de pensamento abre novos caminhos trazendo-nos outras experiências não
imediatamente esperadas. Novos modos de compreensão, coabitação, conhecimento e
agir no mundo. Assim, durante a realização deste ensaio, não perdendo a ponte
do movimento-poema, ocorreram e amadureceram um pouco algumas questões,
principalmente no 3º excurso.
A propósito de obras mais extensas, como
um tratado, Walter Benjamin (1892-1940) assinala a importância dos excursos:
“na densidade ornamental […] desaparece a diferença entre desenvolvimentos
temáticos e excursos “. Este passo de Benjamin (“Arquitectura de interiores”, in Imagens
do Pensamento, Assírio & Alvim) foi recolhido do livro de Maria
Filomena Molder O Químico e o Alquimista
– Benjamin, Leitor de Baudelaire. Nele (cerca de 270 p.) a autora apresenta
uma secção de 49 excursos em cerca de quarenta páginas. Diga-se que foi neste
seu livro que encontrámos a feliz designação para esta espécie de apêndices, se
assim se pode dizer. Tomámos a liberdade de o fazer neste breve artigo com três excursos.
Excurso pictural
Tópico: “Assim, os efeitos da luz e da sombra, do sol
e da claridade ampla em muitos outros poemas marcam-se certamente com a
influência do Mar Mediterrâneo banhando a costa da Argélia e de Argel, a sua
capital, onde Fernando Echevarría viveu alguns anos – Argel apelidada Alger la Blanche” (ver acima Parte I, C))
Seguindo o tópico e dando de passagem um exemplo
pictural a propósito da luminosidade do poema em epígrafe de Echevarría (Parte
I), ocorre lembrar a extraordinária luz mediterrânica captada nas belíssimas
micro-pinturas a óleo sobre madeira que o grande pintor Henrique Pousão
(1859-1884) realizou na ilha italiana de Capri.
Precisamente, estas imagens pictóricas ilustram o que em termos de
luminosidade, sombra e claridade analisámos na poesia de Echevarría:
**
Sobre esta pintura citamos um interessante passo de
Carlos Silveira: “Com um olhar
analítico e quase fotográfico, o pintor selecciona detalhes que lhe servem como
pretexto para uma pesquisa formal sobre a luz. Pode ser um motivo tão trivial
como um lance de escadas de uma habitação, onde o pintor regista a presença
corpórea da luz nos degraus e muros da habitação caiada, criando uma notável
filigrana de manchas lilases e de azul cinza [diríamos sombras claras] que dialogam com o azul profundo do céu
meridional.”
Ou ainda a respeito de uma outra pintura
do mesmo ano (“Rua de Capri”, 1882), aludindo à frescura e claridade das
sombras e suas relações com a luz: “Interessa-lhe
traduzir os efeitos de uma luz aberta e mediterrânica sobre as superfícies
estáveis da arquitectura de Capri: num dos melhores estudos da série, um jorro
de luz em primeiro plano introduz a presença concreta de um portão verde, que
fecha o ponto de fuga do nosso olhar, enquanto de cima uma luz filtrada faz-se
sombra [diríamos de novo “sombra clara”] nos alçados laterais das habitações, densificados em tons de ocre”.[1]
***
Excurso fenomenológico
“No poema Essa
Sombra [do livro Sobre as Horas], o movimento parte do interior da sombra (do
corpo) e espraia-se numa vasta felicidade cósmica («se nos abrir por dentro
longas ruas // de respirar, enfim, grandes, abertas / - água de folhas,
indefinível lua, / somente expostas, quase nem concretas»). Estes versos
dão-nos a dimensão física da plenitude, uma sensação de presença, uma frescura
total.” (“Fernando Echevarría – Entre movimento e imobilidade”, Incisões Oblíquas, p.108) (Parte I, A))
Dir-se-ia que a sombra, «a clara sombra» em Fernando
Echevarría, tem alguns ecos com a «sombra branca» de que fala José Gil. A par
da citação acima de Ramos Rosa (abrindo a Parte I, A)), a seguinte passagem do
livro A Imagem-Nua e as Pequenas Percepções
- Estética e Metafenomenologia (p.
224) de Gil abre possibilidades de leitura do poema em epígrafe (Parte I): “A sombra branca estende-se por toda a
paisagem, acompanha a imagem-nua. Funda a sua unidade, que é a unidade da coisa
percebida. É o «elemento» do espaço da imagem, a sua matéria-imagem, o tecido
«de que são feitos os sonhos». O espaço interno do corpo não é percebido nem
perceptível; nem pensado nem, em si próprio, pensável. Não é tematizável uma
vez que não tem determinações positivas. Faz todavia a imaginação mover-se:
quando percebemos uma coisa e a sua percepção «remete para», esse movimento
parte para um núcleo obscuro mas branco, de um interior impenetrado mas para
sempre invisível da própria coisa. Assim, em toda a parte do campo perceptivo
(espaço de reenvio), a sombra branca habita o visível.
Porque o
corpo de outrem se dobra de um alhures, lança uma sombra sobre o mundo”.
Algumas linhas à frente José Gil prossegue com uma
referência ao “Aberto” de Rainer Maria Rilke (1875-1926), estabelecendo
analogias com a “sombra branca”: “Devemos
entender o Aberto de Rilke como uma primeira divisão entre a luz e as trevas: e
a visão permanece no limiar do Aberto, partilhando a partilha que o Aberto
inaugurou. Cada coisa se oferece doravante à luz conservando para si,
entretanto, a sua parte de obscuridade invisível” (p.225).
Excurso contemporâneo
“Tal como o fogo violento incendeia uma
enorme floresta
no cume da montanha
e de longe se avistam as labaredas –
assim do bronze
incontável daqueles que marchavam
subia pelo ar o
fulgor resplandecente até ao céu.”
(Homero,
Ilíada, Canto II, 455-458)
“O progresso e a
catástrofe são o anverso e o reverso de uma mesma medalha.”
Hannah
Arendt
Peguemos no
carácter pausado, “no ritmo vagaroso” (Ramos Rosa, Parte I, B)) de certa
poesia, no seu movimento, como a de Fernando Echevarría, apelando ao pensar.
António Ramos Rosa, citando Echevarría, estabelece uma relação entre movimento
e imobilidade, tal como o título do seu ensaio indica: “A chave do segredo cósmico, como diz Hans Urs von Balthasar[2]
na sua Liturgia Cósmica, é o movimento ou mais exactamente, a relação entre a
imobilidade e o movimento, cujo equilíbrio constitui a essência do ser criado.
A poesia de Fernando Echevarría é percorrida por movimentos que tendem à
identificação com um espaço originário (que pode ser o espaço mais familiar
recuperado pela experiência poética). Por vezes, os
movimentos interpenetram-se («atravessarmos o vento
de uma rua / sentindo-nos ser
atravessados») ou tendem a fundir o olhar e a distância («Que braço a inventar
fica mais perto / de sermos a pupila e a distância»), mas quase sempre esses
movimentos conduzem à imobilidade, ao vazio, ao silêncio, ao sono, ou seja, a
algo anterior, originário, que é o alvo pré-reflexivo desta poesia que procura
o fundo inicial («sentindo-nos abertos / fundos de casa», «em direcção a um
campo de fundura / a que talvez alguém chamará rasto»)”(op. cit., “Fernando Echevarría – Entre
movimento e imobilidade” p.
108).
De facto, nesta
perspectiva, não há assim uma tão acentuada dicotomia ou bipolarização entre
movimento e imobilidade (movimento e estado de repouso). Por vezes,
limitamo-nos a um mero registo terminológico, que é necessário, mas deverá no
entanto apelar à própria reflexão do que é referido e significado pelos termos
na sua articulação. Ora, repousar, é um “tornar (re) a pousar” (re-parar,
estacionar). E o repouso será um voltar, um tornar ao pouso (poiso). Aliás, sem
nos alongarmos muito em etimologias, “pousar” releva do latim “pausar”,
“pausa”, donde o carácter “pausado” e pensado que referimos no poema. Por outro
lado, o “re-parar” não é senão um re-movimento, como o atesta, por exemplo, a
expressão “sono reparador”, renovando a energia física e psíquica, com todas as
implicações biológicas que isso acarreta, etc., reenviando para o sentido de
“restauro”…
Por isso também,
num regime de liberdade com a poesia, na imobilidade há movimento, e
reciprocamente. Não será o “movimento”, o “mover”, um “parar”, por seu turno, a
imobilidade? Sem dúvida que importa manter a distinção entre os dois termos e
noções de “movimento” e “imobilidade”, daí a pertinência de cada um na
linguagem. Mas perceber que na complexidade
da sua distinção - empregando a
terminologia de Edgar Morin -, há uma articulação, uma outra-dupla articulação,
digamos, reformulando os seus sentidos. Edgar Morin, na sua proposta
epistemológica da complexidade (abarcando as ciências, físicas, naturais e
humanas), assinala – a par das relações “complementares, concorrentes e
antagónicos” – a importância da diferença entre “distinção” e “disjunção”
(oposição). Enfim, trata-se também, segundo Morin, de requestionar as oposições
“binárias” de várias noções reformulando um outro olhar sobre elas. Noções como
as de “unidade” e “diversidade”, ou as de “ordem” e “desordem”, já que também
estas últimas apelam a um amplo leque de questões nos nossos dias, como, por
exemplo, a de nos interrogarmos sobre o que é a Ordem ou a Nova Ordem Mundia[3]l.
Mas leia-se a
seguinte passagem de Morin sobre a relação ordem / desordem no pensamento da complexidade no seu livro Ciência com Consciência: “A necessidade
de pensar conjuntamente, na sua
complementaridade, na sua concorrência e no seu antagonismo, as noções de ordem e desordem, põe-nos muito
exactamente o problema de pensar a
complexidade da realidade física, biológica e humana. Mas, a meu ver, para
isso é necessário conceber um quarto
olhar, um novo olhar, isto é, um olhar dirigido para o nosso olhar, como
muito bem disse Heinz von Foerster[4]. Temos de olhar para o modo como concebemos a
ordem, e de olhar para nós mesmos
olhando para o mundo, isto é, de incluir-nos na nossa visão do mundo”(itálicos
nossos)[5].
É que na
bi-polarização ou oposição extremada, os dois pólos confundem-se (ou fundem-se)
porque não são compreensivamente articulados. Mas, deste modo, ao mesmo tempo
separaram-se (ou cindem-se), e vice-versa.
Não será a
relevância do movimento, da aceleração e da ultrapassagem, aliados a um
conceito monolítico de progresso nos nossos dias, precisamente o esquecimento
do sentido pleno e genuíno de “repouso” e de “parar”? Não é isso que dá sentido
às expressões correlativas: “parar para pensar”, “é tempo de pensar”? Não será
o ímpeto actual da vida nas nossas sociedades (que supostamente não param) o
que efectivamente provoca panes, paragens efeitos de bloqueio, acidentes, imprimindo
imperceptivelmente um revés no ambicionado progresso dito civilizacional,
progresso (pro-gressus) que mais não
é do que um regresso (re-gressus) sem
se dar conta? Sem dúvida, um dos problemas que vivemos na “era da técnica”.
Daí as
catástrofes ecológicas, industriais e naturais[6],
as alterações climáticas (EUA e China principais implicados), os efeitos
terroristas aliados a perversos mecanismos – ilocalizados ou deslocalizados –
de “Rede” na era digital; as altas corrupções que alastram por todo o Globo, a desordem europeia com os fluxos de
refugiados, as guerras dispersas no Globo, “Fragmentos da
Terceira Guerra Mundial”, segundo o Papa
Francisco, após os atentados de Paris 13/11/2015; o triunfo voraz do
capitalismo liberal, ou capitalismo puro e simples enquanto religião do
trabalho e do dinheiro (Walter Benjamin)[7].
Esta aparência de presente imediato e de actualização permanente deixa-nos
paradoxalmente ultrapassados pelos
acontecimentos[8]…
A tradição do
Ocidente, partindo do Logos grego,
relevou o “movimento” desde Heraclito (Panta
rei – tudo flui), Aristóteles (Física), Galileu, Iluminismo (Aufklärung),
Positivismo, etc… resultando na grande civilização planetária, global,
científica e tecnológica que, não obstante os seus aspectos cruciais e
extraordinários no caminho do humano, parece descambar no que é a ultrapassagem
pela ultrapassagem, o que, se não redunda paradoxalmente na paragem ou no recuo, retumba
paroxisticamente na catástrofe do Grande
Acidente[9]. Importa pois, um certo contrapeso da poesia… e,
diríamos mesmo, de um certo Oriente.
Post scriptum:
E ver vinha de ver, e se movia
por um agora de alma
onde acender-se a língua
iluminava
a base que pensarmos mais ainda
nos pensava.
Fernando
Echevarría, A Base e o Timbre,
1974.
Imagens:
*Desenho -
Retrato de Fernando Echevarría, por Flor Campino.
**Pintura de
Henrique Pousão, "Muro e escadas", óleo sobre madeira, 36,5 x16 cm -
Capri 1882 (Museu Nacional de Soares dos Reis – Porto).
***Pintura
de Henrique Pousão, "Rua de Capri", óleo sobre madeira, 36,5 x16 cm -
Capri 1882 (Museu Nacional de Soares dos Reis – Porto).
Referências:
1.
Echevarría,
F., Sobre as Horas, Lisboa, Livraria
Morais Editora, 1963.
Echevarría,
F., A Base e o Timbre, Moraes
Editores, Fevereiro 1974.
Echevarría,
F., Media Vita, Porto, Brasília
Editora, 1979.
Echevarría,
F., Introdução à Filosofia, Nova
Renascença, 1981.
Echevarría,
F., Figuras, Porto, Afrontamento,
1987.
Echevarría,
F., Obra Inacabada, Pref. Maria João
Reynaud, Porto, Afrontamento, 2006.
2.
Badiou,
A., Petit Manuel d’Inesthétique,
Paris, Seuil, 1998.
Ferreira,
A. Gomes, Dicionário de Latim-Português,
Porto Editora.
Gil, J., A Imagem-nua e as pequenas percepções -
estética e metafenomenologia, trad. M. S. Pereira, Lisboa, Rel. D’Água,
1996.
Guimarães,
F., A Poesia Contemporânea Portuguesa,
3ª edição, Vila Nova de Famalicão, ed. Quasi, 2008.
Homero, Ilíada, trad. Frederico Lourenço,
Lisboa, Biblioteca Editores Independentes / Cotovia, 2007.
Kirk, G.S.,
& Raven, J.E., The Presocratic
Philosophers, Cambridge, University Press, 1975.
Molder,
M. F., O Químico e o Alquimista –
Benjamin, leitor de Baudelaire, Lisboa, Relógio D’Água, 2011.
Morin, E., Ciência
com Consciência,
trad.
Maria Gabriela de Bragança, Lisboa, Europa-América, 1984.
Nancy, J.-L., A Equivalência das Catástrofes – Após Fukushima,
trad. J. Leandro Rosa, Ed. Nada, 2014.
Pessoa, F., Obra Poética, Poesia-I 1902-1929, Intr.
e Org. António Quadros, Lisboa, Ed. Europa-América, 1985.
Píndaro, Odes Píticas para os Vencedores, trad.
do grego e notas António de Castro Caeiro, Lisboa, Prime Books, 2006.
Rosa, A.
Ramos, Incisões Oblíquas, Estudos sobre
poesia portuguesa contemporânea, Lisboa, Caminho, 1987.
Rilke, R.
Maria., Poemas, As Elegias de Duino e
Sonetos a Orfeu, Prefácio, selecção e tradução de Paulo Quintela, Porto,
Ed. O Oiro do Dia, 1983.
Rodrigues,
A., Henrique Pousão, Lisboa, Inapa,
1998.
Silveira,
C., Liberto da Academia e
perseguindo a luz: o percurso fulgurante de Henrique Pousão: http://www.dezenovevinte.net/artistas/pousao_cs.htm#_edn6
Virilio, P.,
L’accident originel, Paris, Galillée,
2005.
[1] Carlos Silveira, “Liberto da
Academia e perseguindo a luz: o percurso fulgurante de Henrique Pousão”
[3] Ou “A
desordem mundial” (Adriano Moreira, DN, 09/03/2016).
[4] Heinz
von Foerster (Austríaco-Americano - 1911-2002), um dos arquitectos da
cibernética, foi influenciado pelo Círculo de Viena e por Wittgenstein,
relacionando a Física e a Filosofia. “Detestava ser categorizado como
pertencendo a uma determinada disciplina académica”: https://en.wikiquote.org/wiki/Heinz_von_Foerster
[5] Edgar
Morin, Ciência com Consciência, p.
72.
[6] vj. o
muito interessante livro de Jean-Luc Nancy, A
Equivalência das Catástrofes – Após
Fukushima:”Não se julgue que a conjunção produzida em Fukushima é
excepcional. Não o é certamente no Japão, como também não o é à escala mundial.
É certo que um abalo sísmico e uma central nuclear frágil não se encontram
frequentemente, mas em todo o lado onde se manipula a energia nuclear estão
presentes riscos com dimensões pouco ou nada calculáveis” (p. 44).
Ver também a entrevista a Giorgio Agamben (“Deus não
morreu. Ele tornou-se dinheiro”): "O capitalismo é uma religião, e a mais
feroz, implacável e irracional religião que jamais existiu, porque não conhece
nem redenção nem trégua. Ela celebra um culto ininterrupto cuja liturgia é o trabalho
e cujo objecto é o dinheiro": http://www.ihu.unisinos.br/noticias/512966-giorgio-agamben
[8] P. ex.,
quanto à crise que hoje se vive no Brasil a todos os títulos: “Os humoristas
sentem-se ultrapassados pela realidade, acham que ela é ainda mais absurda dos
que as suas caricaturas” (“Brasil para rir, pensar, desinquietar” - Jornal
Público, 27/12/2015).
[9] Um livro
a ter em conta: Paul Virilio, L’accident originel; autor conhecido
pelo seu tom alarmista:”Além da ética, a bio-ética inquieta-se hoje, parece,
com os riscos maiores que as descobertas «revolucionárias» das biotecnologias
fazem correr a espécie humana, conduzindo amanhã à ameaça de uma espécie de
HIROSHIMA CELULAR, onde a bomba genética devastará
desta vez a própria forma do Homem, como a bomba
atómica tinha, em seu tempo, devastado o horizonte do seu meio envolvente.”
“A este título, as ameaças sobre a vida não faltam,
entre a procriação medicamente assistida, a clonagem, ou ainda o direito à
morte assistida e a eutanásia, sem falar das armas biológicas. Tudo está a
postos para o Grande Acidente do
Livro da Vida” (p. 79).
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