Luís de Barreiros Tavares, "Ponte, aceleração e velocidade em Mário de Sá-Carneiro", in Revista Nova Águia, nº15,
1º semestre, 2015, pp. 54-60, Zéfiro.
I - “Ponte”:
poema “7”[1]
“Por exemplo… Revíamos nós, Sá-Carneiro e eu, as
provas da primeira folha [Orpheu], quando surgiu, no prefácio de Luís de
Montalvor, a frase «maneiras ou formas» transtornada em «maneiras de formas».
Ia a emendar quando o Sá-Carneiro me suspendeu. «Deixe ir assim, deixe ir
assim: assim ainda se entende menos.»”
(Fernando Pessoa, “Como nasceu «Orpheu»”, Textos
de Intervenção Social e Cultural. A ficção dos heterónimos)
Eu não sou eu nem sou o outro,
Sou qualquer coisa de intermédio:
Pilar da
ponte de tédio
Que vai de
mim para o Outro.
(Mário de Sá-Carneiro, Poema “7”, Lisboa, Fevereiro de 1914)
1. A
este poema (“7”), em epígrafe, do livro Indícios
de Oiro publicado postumamente pelas edições da revista Presença (1937),
daremos aqui o nome “Ponte”. Magnífico passo-poema
de Mário de Sá-Carneiro que não se traduz num “intermédio” e “tédio” banais. Tentaremos
mostrá-lo mais adiante. Mas Sá-Carneiro viveu também a dispersão, tanto assim que esta palavra deu nome a um poema escrito
em 1913 e a um livro que o incluía (Dispersão,
único livro de poemas publicado em vida do poeta, em 1914). O poema “Dispersão”
foi muito apreciado por Fernando Pessoa, seu amigo e admirador. Escutemos
Pessoa: “Mas para Sá-Carneiro, génio
não só da arte mas da inovação nela, juntou-se, à indiferença que circunda os
génios, o escárnio que persegue os inovadores, profetas, como Cassandra, de
verdades que todos têm por mentiras” (Páginas
sobre Literatura e Estética). Pessoa publicava por essa altura os
poemas “Pauis” - com o título “Impressões do crepúsculo” (1913) – e “Ó sino da
minha aldeia” (1913) no número único da revista “A Renascença” (1914), esta na linha do movimento Nova
Renascença (início em 1912) cujo órgão foi a revista “A Águia” (1910-1932, com
seu auge 1912-1916), tendo Teixeira de Pascoaes como director durante o maior
período de tempo (até 1926). Sá-Carneiro também colaborou em “A Águia” com
alguns contos (“O Homem dos Sonhos”, “O Fixador de Instantes” e “Mistério”). E
naquele número único de “A Renascença”, o poeta e ficcionista apresenta a
tradução do poema “Além” de um tal Petrus Ivanovich Zagoriansky, um suposto seu
heterónimo ou pseudónimo. Com estas publicações e outras iniciativas,
Sá-Carneiro e Pessoa, juntamente com Almada, Amadeo de Souza-Cardozo e Santa
Rita Pintor, entre outros, deram um forte impulso ao Futurismo e ao Modernismo
em Portugal originando em 1915 a revista “Orpheu” fazendo ponte com o Brasil
(Luís de Montalvor – Lisboa / Ronald Carvalho – Rio de Janeiro). Para além
destas revistas houve várias outras de importância neste contexto[2].
2.
Respeitando estes e outros dados que porventura desconhecemos, voltamos ao
poema que é o propósito deste estudo. Tenta-se ir ao encontro do poema enquanto poema na sua força
poética. Daremos alguns exemplos gramaticais, nomeadamente morfológicos, sem
entrar em grandes detalhes[3]. Trata-se
antes de pensar com o poema, através do jogo de alguns dos seus elementos, movimentos e seus sentidos,
partindo da metáfora e do símbolo da “ponte”. O poeta inscreve, no gesto de
escrever, qualquer coisa-outra em trânsito. O “eu” não é o “eu” (o oximoro
“Eu não sou eu”) e não é o “outro” (“nem sou o outro”), no primeiro verso. Por
outro lado, o “eu”, (pronome pessoal) no início do poema, não é que o vai “para
o Outro” (pronome indefinido) no final. O que vai para o Outro é aquele “…
qualquer coisa (locução pronominal indefinida) de intermédio (substantivo
abstracto…): / Pilar da ponte de tédio”. O “eu” inicial desdobra-se no
intermédio. O “mim”, por seu turno, é um desdobramento do eu, e, por assim
dizer, também um intermédio. Operam-se portanto redesdobramentos onde deixa de
haver um “eu”, ou melhor, um “Eu” propriamente dito. Faz todo o sentido ler
aqui a belíssima última estrofe do poema “Ângulo” de Indícios de Oiro:
- Por sobre o que Eu não sou há grandes pontes
Que um outro, só metade, quer passar
Em miragens de falsos horizontes -
Um Outro que eu não posso acorrentar…
(Barcelona – Setembro 1914)
Retomando o
poema “7” (a “Ponte”), o “Outro” do final do último verso abre indefinidamente
para os outros que somos todos nós. O “Outro” supondo também os outros na
perdição e fascínio das multidões e das metrópoles começando em Lisboa e
terminando no suicídio - aos 25 anos! - em Paris, 1916[4].
3. O
“mim”, sendo mais um outro intermédio,
como dissemos, articula-se no seu movimento oscilante com o intermédio “Pilar
da ponte ”. Compreende-se deste modo a complexidade do “mim” e do “intermédio”,
indicando ambos no seu jogo um sentido dinâmico de intervalo. “ (…) Que pesadelo tão bom… /……… / Pressinto um
grande intervalo (…)”, escreve Sá-Carneiro no poema “Inter-sonho” no seu
livro já mencionado Dispersão. A
propósito, citemos um passo de Bernardo Soares no Livro do Desassossego (I, 21, [2 – 76, dact.]): “Quantos sou? Quem é eu? O que é este
intervallo que ha entre mim e mim?”. O que importa aqui é compreender um
novo sentido, uma nova dinâmica de “intermédio”, intervalar, desdobrando-se e
abrindo um espaço-tempo poético. Com esta série de elementos transitórios, de
jogos de deslocações parciais – “Que um outro, só metade,
quer passar” -, cria-se uma
impressão de movimento.
4. Mas
voltemos à questão do “tédio”. O tédio (substantivo abstracto), já por si
conota neutralidade, apatia, indiferença, desinteresse e um certo sentido de
abstracção. Quem não passou por ele? Por vezes diz-se que uma pessoa está
abstracta, apartada, separada do real, das coisas concretas da vida, está
entediada, enfim, deprimida, como se diz nos nossos dias. O drama de Mário de
Sá-Carneiro foi precisamente o de sentir, na sua fina sensibilidade - no seu
excesso, é certo - e mais do que muitos, o que geral e paradoxalmente se sente
não se sentindo: tédio. Sentia um tédio a dobrar, quando a maioria dos outros
não dava por isso, podendo estar todavia cheios de tédio e, por essa razão,
ainda mais entediados do que ele. O tédio evocado no poema é uma primeira
abstracção que vai desdobrar-se numa segunda abstracção que constitui o poema
paradoxalmente no seu corpus. Aliás,
Sá-Carneiro não escreve “do tédio”,
mas “de tédio.” Quer dizer, não faz a
contracção da proposição “de” com o artigo definido “o”. O “de” indica um
sentido mais abstracto. É fundamentalmente a partir do poema que essa dupla
abstracção é possível. Como é possível? Através do “sou” - primeira pessoa do
singular do presente do indicativo do verbo “Ser” - surgindo três vezes nos
dois primeiros versos. A não imediata identificação do “sou” com o “eu”, o “mim”,
o “outro”’, o “intermédio” e o “Outro”, mas havendo de alguma maneira um
movimento passando por eles, transmuda, com o trabalho de escrita, o poema como
sendo objecto concreto e reenviando
também para algo de abstracto. Por outro lado, como se a dado momento o poema falasse
enquanto hipotético “eu”, um sujeito, permitindo-se, contudo, uma libertação em
relação a ele.
Por assim
dizer, o movimento poético - não propriamente o do sujeito ou do eu - não se identifica nem ao eu nem ao outro (“Eu não sou eu nem sou o outro”). O “Eu”
inicial no primeiro verso reenvia para o movimento e para o movimento do poema.
É interessante ver aqui uma dessubjectivação[5].
Fernando Cabral Martins (O Modernismo em
Mário de Sá-Carneiro, p.147) fala-nos da “cisão do Eu” bem como da
“dissociação do Eu”, do “sujeito” e da “despersonalização”. Citando a ensaísta
brasileira Nelly Novaes Coelho: “[“despersonalização”]uma das mais flagrantes de modernidade que
vai distinguir a poesia tradicional da poesia contemporânea”, é um “denominador
comum de Orpheu”.
5. E,
por outro lado, esse tal “eu” inicial, que “não” é (”sou”) “eu”, quer dizer,
esse intermédio, não vai para além do “Outro” final e não fica aquém de “mim”.
Pois é o que somente vai de mim para o
Outro, ficando entre estes dois.
Quando se diz “pilar da ponte” visa-se o
desdobramento que constitui a própria ponte. O “pilar” divide ao meio a “ponte”
e ao mesmo tempo une e é mediação. Pois o pilar é parte da ponte estruturando-a
com o que se designa em engenharia civil por tabuleiro que nele assenta. Tabuleiro ou “… arco da ponte (…) não
saber se a curva da ponte é a curva do horizonte…”, nas palavras de Fernando
Pessoa ortónimo no poema “Além-Deus”[6].
Voltando ao pilar da ponte de “7”. Como se com o
pilar a ponte se estabilizasse enquanto tal. Se o pilar lá está, o tabuleiro só
o é com ele e vice-versa, estabelecendo a ponte. Os dois veiculando o trânsito
da/que é a ponte.
6. A
ponte é poema. E como a ponte é veiculada e veiculadora, ela abre para a força
deste poema fazendo com que o aparente lado sombrio do “tédio”, tido como banal
“intermédio”, não passe, já transmudado, de mais uma entre muitas outras peças da “ponte” abrindo ainda para outra coisa qualquer, para fora do
poema, cumprindo-se o papel deste que é o de conferir liberdade a escritor e a
leitor. Artifícios de linguagem nesta leitura? Mário de Sá-Carneiro
magnificamente os fez. Tentou-se somente analisar alguns pontos no feliz labirinto de linguagem que é este poema
“7”.
*
II - Aceleração e
velocidade (versão revista e aumentada para intervenção no Curso de Filosofia Luso-Brasileira)
“ De
inofensiva, a poesia converte-se na mais suspeita das manifestações humanas, na
mais perigosa de todas as criações. […]
Às
vezes é uma cidade e as suas «forças vivas» quem se antecipa aos poderes para
pedir coletes de força para a poesia. Isto não é metafórico. Aconteceu em
muitos lugares e muitas épocas. Aconteceu em Lisboa, no ano de muita desgraça
de 1915. A poesia na rua chamava-se nesse tempo «Orpheu» e os loucos de ontem eram, entre outros, Sá-Carneiro e Fernando
Pessoa.”
(Eduardo Lourenço,
«Orpheu» ou a Poesia como Realidade, in Tempo
e Poesia)[1]
“ e quando a coisa estava a ir a mais
tzzt… uma porção de estricnina
deu-lhe
a moleza foi dormir”
(Mário
Cesariny, Discurso sobre a Reabilitação
do Real Quotidiano, 1952 [a propósito de Mário de Sá-Carneiro])
1.Vale a pena citar uma longa passagem
de Paul Virilio em La machine de vision
(A máquina de visão), referindo o
futurismo de Mário de Sá-Carneiro e citando vários versos do seu célebre poema Manucure:
“Organizador das festividade nazis do
Zeppelin-Feld e teórico do valor das ruínas, o arquitecto de Hitler, Albert
Speer, utiliza para o congresso do Partido em Nuremberga, em 1935, cento e
cinquenta projectores de DCA cujos feixes, dirigidos verticalmente para o céu,
formavam na noite um rectângulo de luz… Ele escreve a este propósito: «É no
interior destes muros luminosos, os primeiros do género, que se desenrola o
congresso com todo o seu ritual… Experimento agora uma curiosa impressão na
ideia de que a criação arquitectural mais bem conseguida na minha vida foi uma
fantasmagoria, uma miragem irreal (nota de rodapé: “Albert Speer, Au coeur du Troisième Reich, Paris, Fayard, et Le
jornal de Spandau, Paris, Robert Lafont [livro publicado depois de 1966,
quando Speer saiu da prisão de Spandau]).»
Este «castelo de cristal» destinado a dissipar-se nas primeiras claridades da
madrugada, sem deixar outros traços materiais senão os dos filmes e de algumas
fotografias, era especialmente destinado a estes militantes nazis que segundo
Goebbels, obedecem a uma lei que não conhecem mas que poderão recitar em
sonho.
A partir de uma análise
«científica» da velocidade estenográfica dos seus diversos discursos, o mestre
da propaganda hitleriana [Goebbels] tinha, sempre segundo ele [Speer],
inventado uma nova
linguagem de massa que «não tinha mais
nada a ver com as formas de expressão arcaicas e chamadas populares; isto,
acrescenta ele, é o início de um estilo artístico inédito, de uma forma de expressão animada e
galvanizante».
(…) as suas
declarações fazem imediatamente pensar nas dos futuristas como o Português
Mário de Sá-Carneiro ([1890] – 1916), celebrando a Assunção das ondas acústicas :
Eia! Eia!
Singra o tropel
das vibrações
(…)
Eu próprio
sinto-me ir transmitido pelo ar, aos novelos!
Ou
em Marinetti, correspondente de guerra na Líbia, inspirando-se na transmissão
telegráfica, como aliás em toda uma outra técnica de amnésia topográfica,
explosivos, projécteis, aviões, veículos rápidos… para redigir os seus poemas.”
Façamos uma breve interrupção
desta passagem do livro de Paul Virilio assinalando que se poderia inferir
daqui que o futurismo e o modernismo, aliados, de um certo modo à velocidade e
aos efeitos emergentes de certas técnicas, tinham alguma correspondência com o
fascismo e o nazismo. Não havia, no entanto, uma ligação essencial, se bem que inicialmente
se encontrassem alguns vasos comunicantes, logo
depois suprimidos:
“Os movimentos futuristas europeus não têm
duração, desapareceram em poucos anos, com a ajuda da repressão. Em Itália,
tinham sido os inspiradores dos movimentos anarquista e fascista e Marinetti
era um amigo pessoal do Duce; no entanto, todos foram rapidamente eliminados da
cena política.”
Com alguma
ressonância ao que escreve Virilio leia-se esta passagem de Fernando Cabral
Martins: “Sabe-se que o aparecimento de
Dada em Zurique consiste em parte num conjunto de manifestações públicas. E o
Futurismo parte de uma atitude que é definida por Marinetti, em Le
Futurisme (1911), como a abolição das
barreiras entre o mundo da arte e o da acção pública: «A la conception de
l’impérissable et de l’immortel, nous opposons, en art, celle du devenir, du
périssable, du transitoire et de l’éphémère». E há momentos em que esse ponto
utópico de fusão da literatura e da política se formula com clareza: «Voici
notre première conclusion
futuriste!... Vive la guerre!». É a
absorção das acções humanas num universo de formas e símbolos, ou vice-versa. É
a criação de uma «poesia-azione» (Guglielmo [Sansoni, artista futurista]).
Assim, a série dos manifestos futuristas tem a função de repertório de peças
para espectáculos ou de partituras para actos de elocução. Os textos desses
manifestos, tais como hoje os lemos, são resíduos ou testemunhos de uma
execução vocal cénica e de um acto histórico (O Modernismo em Mário de Sá-Carneiro, p.175).” Ou
ainda Eduardo Lourenço (vj. nota 5 do apontamento I), de 1960 republicado em Tempo e Poesia (1974): “ (…) num ponto, o essencial, o mundo de «Orpheu»
merece como nenhum outro o nome de moderno: não só há um acordo íntimo entre a
convulsão espácio-temporal operada por «Orpheu» e a perturbação operada pela
técnica moderna e o viver moderno,
como a imagística sobre a qual opera a fantasia de Sá-Carneiro, Pessoa, Almada,
é de uma quotidianidade, de uma banalidade, de uma actualidade que a poesia anterior, mesmo a de Cesário, o Mestre, não
conhecera.
Com
imagens triviais e mesmo grosseiras realizam a mais insólita das alquimias e instituem uma profundidade
metafísica que não se concebia senão ligada a elementos «nobres» ou a um «tom»
igualmente «nobre» como é o caso de Antero ou de Teixeira de Pascoaes.”
(«Presença» ou a Contra-Revolução do
Modernismo Português?»).”
Mas voltando a Virilio:
“Sem dúvida eles [os futuristas] expunham com alguma acentuada pertinência
esta convergência das técnicas de comunicação e do totalitarismo em curso
diante de «estes olhos ungidos de Novo [Virilio volta a citar Sá-Carneiro] / Sim! –
meus olhos futuristas, meus olhos cubistas, meus olhos interseccionistas, / Não
param de fremir, de sorver e faiscar / Toda a beleza espectral, transferida,
sucedânea, / Toda essa Beleza-sem-Suporte, / Desconjuntada, emersa… “ (Aqui,
Virilio coloca a seguinte nota de rodapé:
“Action poétique [revista fundada em 1950, cessando em 2012], 110, Hiver 1987. «Pessoa et le futurisme
portugais.»”).[2]
2. Ora, Paul Virilio, arquitecto e
urbanista de formação, é um dos grandes teóricos contemporâneos da “velocidade”,
da “aceleração” e seus efeitos nas sociedades contemporâneas. Um dos seus temas
principais é a “dromologia” (de dromos,
que significa em grego “corrida”; e logos
que se pode traduzir aqui por “estudo”, p.ex.). Entre outros livros, publicou Vitesse et Politque, Esthétique de la disparition e La vitesse de libération, este último
traduzido em português. Abrindo aqui um parêntesis, diríamos que apesar de ser
um autor com uma obra interessante, Virilio parece por vezes, como muitos
outros hoje em dia, alimentar demais o seu trabalho crítico com aquilo que
crítica. Daí que se tenha a impressão de que os próprios textos, de Virilio e
outros, provoquem uma leitura, ela mesma, acelerada. Por outro lado, o tema e o objecto subsumem-se no sujeito, quando este é suposto ausente por
via, por sua vez, da suposta ausência de objecto (circularidade a que pode
chegar por vezes certa crítica da cultura
e certo pensamento crítico nos nossos
dias). Eis um dos perigos da teoria e da retórica! É por isso que alguns
autores de hoje, não deixando de ter o seu lado interessante e interventivo –
por exemplo, Zizek - são muito críticos, mas não têm respostas ou soluções,
como eles próprios fazem muitas vezes questão de sublinhar e defender. Talvez
não seja necessário ter sempre respostas e soluções. Mas isso basta? Agamben,
numa excelente entrevista, perante uma questão num contexto político-social
sobre a “crise permanente”, “estratégias de poder” e “o estado de excepção”,
chega a responder que não “tem receitas”[3]. Claro
que é na problematização, no questionamento e na crítica que os novos caminhos
germinam e se activam. Mas há qualquer passo na acção que falha quando não
devia sempre falhar… E quais são as respostas que temos para estas questões?
Neste caso trata-se de manter o fio condutor que nos leva a Mário de
Sá-Carneiro, indicando possíveis pontes entre o que escreveu no seu tempo e a contemporaneidade
dos nossos dias.
3. Voltemos então a Sá-Carneiro, no
início do séc. XX, cujo fascínio pela velocidade, movimento e frenesim das
metrópoles era mais propriamente inaugural. É verdade que Goethe, cerca de 90
anos antes, em 1827, escreve numa carta ao seu amigo Zetler: “Riqueza e
velocidade, eis aquilo que o mundo admira e a qua todos aspiram. Caminhos-de-ferro,
correios rápidos, barcos a vapor e todas as facilidades possíveis da
comunicação, eis para o que tende o mundo civilizado, de modo a
sobrecivilizar-se, persistindo assim na mediocridade… Na verdade, estamos num
século de cérebros capazes, de homens práticos que compreendem com rapidez e
que, dotados de uma certa agilidade, sentem toda a sua superioridade sobre a
massa, mesmo que os seus dons não se elevem ao nível supremo. Mantenhamo-nos,
tanto quanto possível, no estado de espírito dentro do qual nos formámos; é
possível que sejamos, com mais alguns, talvez, os últimos de uma época que não
regressará tão cedo.”[4] No
entanto, os contextos são outros, e podemos avaliar as diferenças e o acentuar
de muitos dos fenómenos assinalados por Goethe quando pensamos na época de
Sá-Carneiro. Quanto mais nos nossos tempos.
Recomecemos
por este ponto. Na poética de Sá-Carneiro encontramos o “quase” (nem “aquém”
nem “além”) como tópico assinalável:
Um pouco mais de sol – eu era
brasa,
Um pouco mais de azul – eu era
além.
Para atingir, faltou-me um golpe
d’ asa…
Se ao menos eu permanecesse
aquém…
(primeira
estrofe do poema “Quási”, Paris, Maio, 1913)
O
“intermédio” (entre “mim” e o “outro”) é, a par do “quase”, correlativo de
movimentos não excedentes o intermédio é ao mesmo tempo um quase e vice-versa):
Eu não sou eu nem sou o outro,
Sou qualquer coisa de intermédio:
Pilar da ponte de tédio
Que vai de mim para o Outro.
(Poema
“7”, Lisboa, Fevereiro de 1914)
Poderíamos
encontrar muitos outros exemplos: “Falta-me
egoísmo pra ascender ao céu, / Falta-me unção pra me afundar no lodo”
(“Como eu não possuo”). Aqui, numa intersecção da intensidade e inquietação com
o “intermédio”, mostrando que ambos se podem cruzar: “Esta inconstância de mim em vibração / É que me há-de transpor às zonas
intermédias / E seguirei entre cristais de inquietação” (“16”, Indícios de Oiro). E também a dimensão
intervalar, por exemplo: “Pressinto um
grande intervalo” (“Inter-Sonho”). Ou Bernardo Soares, no livro do
Desassossego: “Quantos sou? Quem é eu? O
que é este intervallo que ha entre mim e mim?” (I, 21, [2 – 76, dact.]; ver
acima no texto I).
Por
outro lado, os movimentos poéticos de Sá-Carneiro não deixam de ser de
velocidade e aceleração, num para além
em muitos outros passos. Eis alguns, de Dispersão:
“É subir, é subir além dos céus”
(“Partida”); “A vida corre sobre mim em guerra / E nem sequer um arrepio de medo!”
(“Estátua falsa”); “Numa ânsia de
ter alguma coisa” (“Escavação”); “Minha
dispersão total” (“Dispersão”); “Os
instantes me esvoam dia a dia / Cada vez mais velozes, mais esguios”
(Além-Tédio); “Volteiam dentro de mim, /
Em rodopio, em novelos, / Milagres, uivos, castelos” (“Rodopio”); “E eu que sou o rei de toda esta incoerência,
/ Eu próprio turbilhão, anseio por fixá-la / E giro até partir… (“A Queda”).
E do poema “Manucure”: “Que hélices atrás dum voo vertical!”; “Ávido, em sucessão da nova Beleza
atmosférica, / O meu olhar coleia sempre em frenesis de absorvê-la / À minha
volta. E a que mágicas, em verdade, tudo baldeado / Pelo grande fluido
insidioso, Se volve, de grotesco – célere”…
Ainda
este poema:
A minh’Alma fugiu pela Torre
Eiffel acima,
- A verdade é esta, não nos
criemos mais ilusões –
Fugiu, mas foi apanhada pela
antena da T.S.F.
Que a transmitiu pelo infinito em
ondas hertzianas…
(Em todo o caso que belo fim para
a minha Alma!...)
(Paris,
agosto 1915)
Sá-Carneiro, para além da velocidade e do movimento das grandes
cidades, estava fascinado pelas luzes (as “Luzes da cidade”) daquela
modernidade que irrompia nessa altura. Aliás, como se sabe, luz e velocidade
estão relacionadas. Basta ler os seus textos, poemas e cartas, sempre atentos
às luzes (“anúncios eléctricos pelos
telhados” numa carta de Paris a Fernando Pessoa), ao “oiro” (p. ex. o livro
Indícios de Oiro) e às cores (roxos,
azuis, vermelhos, verdes…), o que caracterizava também uma estética cromática e
a importância do sentido da visão no seu imaginário. “Pinturas a «ripolin», / Anúncios pelos telhados – “ (Sete canções
de Declínio”, in Indícios de Oiro. E ainda, nas palavras de Fernando Cabral
Martins um “sensacionismo avant la
lettre” (op. cit., p.220), ou “As sensações da alma – que talvez possam ser
chamadas ultra-sensações – têm assim, efeitos que são marcas de uma intensidade
desreguladora” (idem, p.230). Bem
como o cruzamento dos sentidos: “A cor já
não é cor – é som e aroma!” (“Partida”, Dispersão).
Sobre estes aspectos leia-se extraordinária novela A Confissão de Lúcio[5].
4. Empregando a linguagem de Hegel,
digamos que em Sá-Carneiro se dá uma espécie de Aufhebung (superação-conservação), mas por via de um excesso da
sensibilidade e de uma poética das intensidades. Portanto, num outro regime de
linguagem. A superação no poeta é
esse além, esse mais além resultante
do “desregulamento” e da auto-ultrapassagem das experiências poéticas e das
sensações (“sensacionismo avant la lettre”;
“ultra-sensações”, ver nota 11) enquanto movimentos de acelerações de
velocidade. A conservação é o “intermédio”, o “quási” (quase), o intervalo.
Estes inscrevem-se enquanto novo “aquém”, como movimentos medianos ou naqueles
outros movimentos extremos de “rodopio”. Mas tudo isto num registo não
hegeliano, portanto não dialéctico, não conceptual e não especulativo.
Ainda
num plano filosófico, e em contraponto, seria interessante ler o que escreve
nestas linhas Jean-Luc Nancy: “Pode-se
muito bem partir, do vazio a colmatar, […], mas vai-se, […], para o
transbordamento. Na cumulação arvora-se a lógica do cúmulo: a extremidade que
ultrapassa, enquanto ultrapassa. A desmesura da medida cumula. A questão não é
mais a de uma falta a colmatar, mas a de um transbordamento a desejar, ou então
a de um desejo que transborda. É no fim de contas a essência do desejo, do
prazer que o desejo tem consigo mesmo, com o seu infinito repor em jogo” (in
A Adoração (Desconstrução do
Cristianismo, 2).
5. Não é verdade que a velocidade e
a aceleração preenchem toda uma série de espaços e tempos nos nossos dias?
Basta pensar na forma como são estruturadas as imagens na TV. De facto, é muito
difícil hoje escapar - rapidamente? - a esta profusão de acontecimentos e
micro-acontecimentos à nossa volta. Repare-se no próprio modo como as imagens e
as informações se sobrepõem, se substituem umas às outras nos ecrãs da televisão
e quando navegamos na Net clicando muitas vezes compulsivamente sem nos darmos
conta. Planos virtuais de não-inscrição?
Ilusão das notícias de impacto e da publicidade sucedendo-se ininterruptamente
umas às outras, consumindo-se, prescrevendo-se automaticamente. Prescrevendo-se
no duplo sentido, precisamente no de fim de prazo, ou seja, no que prescreve
desactualizando-se judicialmente, p.ex.: a perda do direito de acção, ou
seja, de reivindicar esse direito por meio da acção judicial cabível por ter
transcorrido certo lapso temporal. E por outro lado no sentido, de prescrição remetendo para algo a
seguir, como por exemplo, uma receita farmacológica: “O médico
prescreveu os remédios para tratar a minha gripe”. Este duplo efeito não será
simultâneo no que acontece na voragem dos acontecimentos e notícias nos nossos
dias? Criando-se, por assim dizer um lapso, um hiato, um vazio num presente em aparência
plenamente preenchido?
Notícias
envolvendo estranhos arquivamentos - deixando passar o tempo, passando ao
esquecimento, produzindo um regime de amnésia do presente – numa pretensa
actualidade, pela ultrapassagem
constante dos usos dos dispositivos e dos acessos consecutivos, em aceleração,
às redes sociais, aos motores de busca na Net, ao facilitismo desses recursos
que os torna e mais ainda nos torna, nessas condições, servis[6]. Os
acontecimentos terríveis dos últimos dias, a par da vertigem de notícias que os
acompanham ilustram de algum modo o que aqui queremos dizer.
Não
vivemos nós, hoje, num mundo de velocidades e acelerações variadas, sejam elas
mais ou menos perceptíveis, ou, mesmo, imperceptíveis?
Não
sabemos se Sá-Carneiro estaria avançado ou, afinal, atrasado, em relação ao seu
tempo. Mas talvez qualquer coisa na sua obra nos fale do nosso tempo.
Referências:
Agamben, Giorgio, Qu’est-ce que le contemporain?, trad. Maxime
Rovere, Rivages, 2008.
D’Hondt, Jacques, Hegel, trad. Emília Piedade, Lisboa, Ed.
70, 1981.
Dias, Marina
Tavares, Mário de Sá-Carneiro:
Fotobiografia, Lisboa, Quimera editores, 1988.
Lourenço, Eduardo,
Tempo e Poesia, Ed. Inova Porto,
Colecção Civilização Portuguesa, 1974.
Martins, Fernando
Cabral, O Modernismo em Mário de
Sá-Carneiro, Lisboa, Ed. Estampa, 1997.
Miranda José Bragança de, Queda
sem fim, seguido de Descida ao Maelström, de Edgar Allan Poe, Lisboa, Vega,
col. Passagens, 2006
Nietzsche,
Friedrich, Ecce Homo – como se chega
a ser o que se é, trad. e pref. José Marinho, Lisboa, Guimarães ed., 1984.
Nancy, Jean-Luc, A Adoração (Desconstrução do Cristianismo,
2), trad. Fernanda Bernardo, Coimbra, Terra Ocre edições, 2014.
Noro, Maria
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Virilio, Paul, La machine de vision, Paris, Galillée,
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Zenith, Richard, Fernando Pessoa: Fotobiografia, Lisboa,
Círculo de Leitores, 2008.
[1]
Primeira publicação: “Orpheu ou a poesia como realidade”, AAVV (Org.
de José Augusto FRANÇA), Tetracórnio. Antologia de Inéditos de Autores
Portugueses Contemporâneos, Lisboa, Fevereiro de 1955, pp. 27-39.
[2] Paul
Virilio, La machine de vision, pp.
34-36.
Optámos por transcrever
literalmente a partir da versão original em português todos estes versos do
poema Manucure de Sá-Carneiro citados
em francês por Virilio. Vj. também a expressão “doente-de-Novo”, no poema
“Além-Tédio”(Paris, 1913), em Dispersão.
[3]
Se bem que Agamben não deixe de proceder a uma análise e de sugerir algumas
vias. Deixa-se à curiosidade do leitor: https://www.youtube.com/watch?v=skJueZ52948
[4] Citação
recolhida do livro de José Bragança de Miranda, Queda sem fim, seguido de Descida ao Maelström, de Edgar Allan Poe,
Lisboa, Vega, col. Passagens, 2006, p.22.
[5] Para não
falar da sensualidade, da “luxúria e do apetite sexual”; vj. a este propósito
Maria Estela Guedes: http://triplov.com/sa_carneiro/meg/zonas_02.html.
[6]
Esta pretensa actualidade não é senão inactual. Mas este “inactual” nada tem a
ver com o “intempestivo” (Unzeitgemässe), o
“inactual” na acepção de Nietzsche enquanto “desfasagem”, “verdadeiro
contemporâneo” na sua “não coincidência perfeita com o seu tempo” segundo as
palavras de Agamben referindo-se à 2ª consideração (Nietzsche, Considerações intempestivas; Unzeitgemässe Betrachtungen) em O que é o contemporâneo. A 2ª
consideração pode ler-se em: http://fr.wikisource.org/wiki/De_l%E2%80%99utilit%C3%A9_et_de_l%E2%80%99inconv%C3%A9nient_des_%C3%A9tudes_historiques_pour_la_vie.
A propósito desta questão do “contemporâneo” veja-se o nosso estudo publicado
nº 14 desta revista: Luís Tavares,
“Escrever, descrever e sensações em Álvaro de Campos”, in Revista Nova Águia,
nº14, 2º semestre, 2014, pp. 152-159, Zéfiro.
II -
Aceleração e velocidade (versão publicada na Nova Águia 15)
“ De inofensiva, a
poesia converte-se na mais suspeita das manifestações humanas, na mais perigosa
de todas as criações. […]
Às vezes é uma cidade e as suas «forças vivas» quem se
antecipa aos poderes para pedir coletes de força para a poesia. Isto não é
metafórico. Aconteceu em muitos lugares e muitas épocas. Aconteceu em Lisboa,
no ano de muita desgraça de 1915. A poesia na rua chamava-se nesse tempo «Orpheu» e os loucos de ontem eram, entre outros, Sá-Carneiro e Fernando
Pessoa.”
(Eduardo Lourenço,
«Orpheu» ou a Poesia como Realidade, in Tempo
e Poesia)[7]
“ e quando a coisa estava a ir a mais
tzzt… uma porção de
estricnina
deu-lhe a moleza foi dormir”
(Mário Cesariny, Discurso
sobre a Reabilitação do Real Quotidiano, 1952 [a propósito de Mário de
Sá-Carneiro])
1.Vale a
pena citar uma longa passagem de Paul Virilio em La machine de vision (A
máquina de visão), referindo o futurismo de Mário de Sá-Carneiro e citando
vários versos do seu célebre poema Manucure:
“Organizador
das festividade nazis do Zeppelin-Feld e teórico do valor das ruínas, o
arquitecto de Hitler, Albert Speer, utiliza para o congresso do Partido em
Nuremberga, em 1935, cento e cinquenta projectores de DCA cujos feixes,
dirigidos verticalmente para o céu, formavam na noite um rectângulo de luz… Ele
escreve a este propósito: «É no interior destes muros luminosos, os primeiros
do género, que se desenrola o congresso com todo o seu ritual… Experimento
agora uma curiosa impressão na ideia de que a criação arquitectural mais bem
conseguida na minha vida foi uma fantasmagoria, uma miragem irreal (nota de
rodapé: “Albert Speer, Au coeur du
Troisième Reich, Paris, Fayard, et Le jornal de Spandau, Paris, Robert Lafont [livro
publicado depois de 1966, quando Speer saiu da prisão de Spandau]).» Este «castelo de cristal» destinado a
dissipar-se nas primeiras claridades da madrugada, sem deixar outros traços
materiais senão os dos filmes e de algumas fotografias, era especialmente
destinado a estes militantes nazis que segundo Goebbels, obedecem a uma lei
que não conhecem mas que poderão recitar em sonho.
A partir de
uma análise «científica» da velocidade estenográfica dos seus diversos
discursos, o mestre da propaganda hitleriana [Goebbels] tinha, sempre segundo
ele, inventado uma nova linguagem de massa que «não tinha mais nada a ver com as formas de expressão arcaicas e
chamadas populares; isto, acrescenta ele, é o início de um estilo artístico
inédito, de uma forma de expressão
animada e galvanizante».
(…) as suas declarações fazem imediatamente pensar nas dos futuristas
como o Português Mário de Sá-Carneiro ([1890] – 1916), celebrando a Assunção
das ondas acústicas :
Eia! Eia!
Singra o tropel das vibrações
(…)
Eu próprio sinto-me ir transmitido pelo ar, aos novelos!
Ou em Marinetti, correspondente de guerra na
Líbia, inspirando-se na transmissão telegráfica, como aliás em toda uma outra técnica
de amnésia topográfica, explosivos, projécteis, aviões, veículos rápidos… para
redigir os seus poemas.”
Façamos uma
breve interrupção desta passagem do livro de Paul Virilio assinalando que se
poderia inferir daqui que o futurismo e o modernismo, aliados, de um certo modo
à velocidade e aos efeitos emergentes de certas técnicas, tinham alguma
correspondência com o fascismo e o nazismo. Não havia, no entanto, uma ligação
essencial, se bem que inicialmente se encontrassem alguns
vasos comunicantes, logo depois suprimidos:
“Os
movimentos futuristas europeus não têm duração, desapareceram em poucos anos,
com a ajuda da repressão. Em Itália, tinham sido os inspiradores dos movimentos
anarquista e fascista e Marinetti era um amigo pessoal do Duce; no entanto,
todos foram rapidamente eliminados da cena política.”
Com alguma ressonância ao que escreve Virilio leia-se
esta passagem de Fernando Cabral Martins: “Sabe-se
que o aparecimento de Dada em Zurique consiste em parte num conjunto de
manifestações públicas. E o Futurismo parte de uma atitude que é definida por
Marinetti, em Le Futurisme (1911),
como a abolição das barreiras entre o mundo da arte e o da acção pública: «A la
conception de l’impérissable et de l’immortel, nous opposons, en art, celle du
devenir, du périssable, du transitoire et de l’éphémère». E há momentos em que
esse ponto utópico de fusão da literatura e da política se formula com clareza:
«Voici notre première conclusion
futuriste!... Vive la guerre!». É a
absorção das acções humanas num universo de formas e símbolos, ou vice-versa. É
a criação de uma «poesia-azione» (Guglielmi). Assim, a série dos manifestos
futuristas tem a função de repertório de peças para espectáculos ou de
partituras para actos de elocução. Os textos desses manifestos, tais como hoje
os lemos, são resíduos ou testemunhos de uma execução vocal cénica e de um acto
histórico (O Modernismo em Mário de
Sá-Carneiro, p.175).”[8]
Voltando a Virilio: “Sem dúvida eles expunham com alguma acentuada pertinência esta
convergência das técnicas de comunicação e do totalitarismo em curso diante de «estes
olhos ungidos de Novo [Virilio volta a citar Sá-Carneiro] / Sim! –
meus olhos futuristas, meus olhos cubistas, meus olhos interseccionistas, / Não
param de fremir, de sorver e faiscar / Toda a beleza espectral, transferida,
sucedânea, / Toda essa Beleza-sem-Suporte, / Desconjuntada, emersa… “ (Aqui,
Virilio coloca a seguinte nota de rodapé:
“Action poétique [revista fundada em 1950, cessando em 2012], 110, Hiver 1987. «Pessoa et le futurisme
portugais.»”).[9]
2. Ora,
Paul Virilio, arquitecto e urbanista de formação, é um dos grandes teóricos contemporâneos
da “velocidade”, da “aceleração” e seus efeitos nas sociedades contemporâneas. Um
dos seus temas principais é a “dromologia” (de dromos, que significa em grego “velocidade”; e logos que se pode traduzir aqui por “estudo”, p.ex.). Entre outros
livros, publicou Vitesse et Politque,
Esthétique de la disparition e La vitesse de libération, este último
traduzido em português. Abrindo aqui um parêntesis, diríamos que apesar de ser
um autor com uma obra interessante, Virilio parece por vezes, como muitos
outros hoje em dia, alimentar demais o seu trabalho crítico com aquilo que
crítica. Daí que se tenha a impressão de que os próprios textos, de Virilio e
outros, provoquem uma leitura, ela mesma, acelerada. Por outro lado, o tema e o objecto subsumem-se no sujeito, quando este é suposto ausente por
via, por sua vez, da suposta ausência de objecto (circularidade a que pode
chegar por vezes certa crítica da cultura
e certo pensamento crítico nos nossos
dias). Eis um dos perigos da teoria e da retórica! É por isso que alguns
autores de hoje, não deixando de ter o seu lado interessante e interventivo –
por exemplo, Zizek - são muito críticos,
mas não têm respostas ou soluções, como eles próprios fazem muitas vezes
questão de sublinhar e defender. Talvez não seja necessário ter sempre
respostas e soluções. Mas isso basta? Agamben, numa excelente entrevista,
perante uma questão num contexto político-social sobre a “crise permanente”,
“estratégias de poder” e “o estado de excepção”, chega a responder que não “tem
receitas”[10]. Claro
que é na problematização, no questionamento e na crítica que os novos caminhos
germinam e se activam. Mas há qualquer passo na acção que falha quando não
devia sempre falhar… E quais são as respostas que temos para estas questões?
Neste caso trata-se de manter o fio condutor que nos leva a Mário de
Sá-Carneiro, indicando possíveis pontes entre o que escreveu no seu tempo e a contemporaneidade
dos nossos dias.
3. Voltemos
então a Sá-Carneiro, no início do séc. XX, cujo fascínio pela velocidade,
movimento e frenesim das metrópoles era mais propriamente inaugural[11].
Com efeito, na poética de Sá-Carneiro encontramos o “quase” (nem “aquém” nem “além”)
como tópico assinalável:
Um pouco mais
de sol – eu era brasa,
Um pouco mais
de azul – eu era além.
Para atingir,
faltou-me um golpe d’ asa…
Se ao menos
eu permanecesse aquém…
(primeira estrofe do poema “Quási”, Paris, Maio, 1913)
O “intermédio” (entre “mim” e o “outro”) é, a par
do “quase”, correlativo de movimentos não excedentes o intermédio é ao mesmo
tempo um quase e vice-versa):
Eu não sou eu
nem sou o outro,
Sou qualquer
coisa de intermédio:
Pilar da ponte de tédio
Que vai de mim para o Outro.
(Poema “7”,
Lisboa, Fevereiro de 1914)
Poderíamos encontrar muitos outros exemplos: “Falta-me egoísmo pra ascender ao céu, /
Falta-me unção pra me afundar no lodo” (“Como eu não possuo”). Aqui, numa
intersecção da intensidade e inquietação com o “intermédio”, mostrando que
ambos se podem cruzar: “Esta inconstância
de mim em vibração / É que me há-de transpor às zonas intermédias / E seguirei
entre cristais de inquietação” (“16”, Indícios
de Oiro). E também a dimensão intervalar (que Pessoa também poetou - ver
apontamento 1), por exemplo: “Pressinto um
grande intervalo” (“Inter-Sonho”).
Por outro lado, os movimentos poéticos de
Sá-Carneiro não deixam de ser de velocidade e aceleração, num para além em muitos outros passos. Eis
alguns, de Dispersão: “É subir, é subir além dos céus”
(“Partida”); “A vida corre sobre mim em guerra / E nem sequer um arrepio de medo!”
(“Estátua falsa”); “Numa ânsia de
ter alguma coisa” (“Escavação”); “Minha
dispersão total” (“Dispersão”); “Os
instantes me esvoam dia a dia / Cada vez mais velozes, mais esguios”
(Além-Tédio); “Volteiam dentro de mim, /
Em rodopio, em novelos, / Milagres, uivos, castelos” (“Rodopio”); “E eu que sou o rei de toda esta incoerência,
/ Eu próprio turbilhão, anseio por fixá-la / E giro até partir… (“A Queda”).
E do poema “Manucure”: “Que hélices atrás dum voo vertical!”; “Ávido, em sucessão da nova Beleza
atmosférica, / O meu olhar coleia sempre em frenesis de absorvê-la / À minha
volta. E a que mágicas, em verdade, tudo baldeado / Pelo grande fluido
insidioso, Se volve, de grotesco – célere”…
Ainda este poema:
A minh’Alma
fugiu pela Torre Eiffel acima,
- A verdade é
esta, não nos criemos mais ilusões –
Fugiu, mas
foi apanhada pela antena da T.S.F.
Que a
transmitiu pelo infinito em ondas hertzianas…
(Em todo o
caso que belo fim para a minha Alma!...)
(Paris, agosto 1915)
4. Empregando
a linguagem de Hegel, digamos que em Sá-Carneiro se dá uma espécie de Aufhebung (superação-conservação), mas
por via de um excesso da sensibilidade e de uma poética das intensidades.
Portanto, num outro regime de linguagem. A superação no poeta é esse além, esse mais
além resultante do “desregulamento” e da auto-ultrapassagem das
experiências poéticas e das sensações (“sensacionismo avant la lettre”; “ultra-sensações”, ver nota 11) enquanto
movimentos de acelerações de velocidade. A conservação é o “intermédio”, o “quási”
(quase), o intervalo. Estes inscrevem-se enquanto novo “aquém”, como movimentos
medianos ou naqueles outros movimentos extremos de “rodopio”. Mas tudo isto num
registo não hegeliano, portanto não dialéctico, não conceptual e não
especulativo.
Ainda num plano filosófico, e em contraponto, seria
interessante ler o que escreve nestas linhas Jean-Luc Nancy: “Pode-se muito bem partir, do vazio a
colmatar, […], mas vai-se, […], para o transbordamento. Na cumulação arvora-se
a lógica do cúmulo: a extremidade que ultrapassa, enquanto ultrapassa. A
desmesura da medida cumula. A questão não é mais a de uma falta a colmatar, mas
a de um transbordamento a desejar, ou então a de um desejo que transborda. É no
fim de contas a essência do desejo, do prazer que o desejo tem consigo mesmo, com
o seu infinito repor em jogo” (in A
Adoração (Desconstrução do Cristianismo, 2).
5. Não é
verdade que a velocidade e a aceleração preenchem toda uma série de espaços e
tempos nos nossos dias? Basta pensar na forma como são estruturadas as imagens
na TV. De facto, é muito difícil hoje escapar - rapidamente? - a esta profusão
de acontecimentos e micro-acontecimentos à nossa volta. Repare-se no próprio
modo como as imagens e as informações se sobrepõem, se substituem umas às
outras nos ecrãs da televisão e quando navegamos na Net clicando muitas vezes
compulsivamente sem nos darmos conta. Planos virtuais de não-inscrição? Ilusão das notícias de impacto e da publicidade
sucedendo-se ininterruptamente umas às outras, consumindo-se, prescrevendo-se
automaticamente - envolvendo estranhos arquivamentos -, deixando passar o
tempo, passando ao esquecimento, produzindo um regime de amnésia do presente –
numa pretensa actualidade - pela ultrapassagem constante dos usos dos
dispositivos e dos acessos consecutivos, em aceleração, às redes sociais, aos
motores de busca na Net, ao facilitismo desses recursos que os torna e mais
ainda nos torna, nessas condições, servis[12].
Não vivemos nós, hoje, num mundo de velocidades e
acelerações variadas, sejam elas mais ou
menos perceptíveis, ou, mesmo,
imperceptíveis?
Não sabemos se Sá-Carneiro estaria avançado ou,
afinal, atrasado, em relação ao seu tempo. Mas talvez qualquer coisa na sua
obra nos fale do nosso tempo.
Referências:
Agamben, Giorgio, Qu’est-ce
que le contemporain?, trad. Maxime Rovere, Rivages, 2008.
D’Hondt, Jacques, Hegel, trad. Emília Piedade,
Lisboa, Ed. 70, 1981.
Dias, Marina Tavares, Mário de Sá-Carneiro:
Fotobiografia, Lisboa, Quimera editores, 1988.
Lourenço, Eduardo, Tempo e
Poesia, Ed. Inova Porto, Colecção Civilização Portuguesa, 1974.
Martins, Fernando Cabral, O
Modernismo em Mário de Sá-Carneiro, Lisboa, Ed. Estampa, 1997.
Nietzsche, Friedrich, Ecce Homo
– como se chega a ser o que se é, trad. e pref. José Marinho, Lisboa, Guimarães
ed., 1984.
Nancy, Jean-Luc, A Adoração
(Desconstrução do Cristianismo, 2), trad. Fernanda Bernardo, Coimbra, Terra
Ocre edições, 2014.
Noro, Maria Manuela, A Geração do Orpheu, Porto Editora, 1978.
Pessoa, F., Obra poética -
poesia I, (1902-1929), org. A.
Quadros, Lisboa, Europa. América, 1986.
Pessoa, Fernando, Obra em Prosa, Páginas sobre Literatura e
Estética, org. António Quadros, Europa-América, 1986.
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Intervenção Social e Cultural. A ficção dos heterónimos, Introduções,
organização e notas de António Quadros, Europa-América, 1986.
Régio, José, José, Mário ou Eu próprio – o Outro, Vol. II
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Sá-Carneiro, Mário de, Poesias
Completas, Anagrama.
Sá-Carneiro, Mário de, Poesia,
Vol. I, pref. Nuno Júdice, Lisboa. Círculo de Leitores, 1990.
Sá-Carneiro, Mário de, A
Confissão de Lúcio, introd. A. Quadros, Lisboa, Europa América.
Sá-Carneiro, Mário de, Céu em
Fogo, introd. A. Quadros, Lisboa, Europa América.
Sá-Carneiro, Mário de, Verso e
Prosa, edição Fernando Cabral Martins, Lisboa, Assírio & Alvim, 2010.
Sá-Carneiro, Mário de, A
Confissão de Lúcio, Lisboa (1ª edição fac-similada), 1914.
Soares, Bernardo, Livro do
Desassossego, Lisboa, Ática, Tomos I e II, 1982.
Virilio, Paul, La machine de
vision, Paris, Galillée, 1988.
Zenith, Richard, Fernando
Pessoa: Fotobiografia, Lisboa, Círculo de Leitores, 2008.
[1] Trata-se
de dois apontamentos que de algum modo comunicam entre si: 1. A “Ponte”: poema “7”; 2. Aceleração e
velocidade.
[2]
Uma nota de rodapé à maneira de “Iceberg”, digamos: curioso é que muitos
admiradores e estudiosos de Pessoa, aliás alguns de mérito, não reparem ou
quase não reparem em Sá-Carneiro e em muitos outros… Para não dizer pior…
Pessoanos ou não, e não são todos, por estranho que pareça, acabam por
fulanizar e afunilar o génio que foi de facto Pessoa (seria interessante
perguntar a alguns o que acham da Mensagem,
etc.). Mas perdem de vista toda uma contextualidade cultural que é, afinal, o
“caldo de cultura” de que resultou a emergência de muitos outros - inclusive
ele! - uns mais e outros menos, de diferentes modos, mas numa interacção em rede (para empregar uma
linguagem hoje em voga), tessitura onde todos tiveram o seu papel. Pena é que
não tenham em conta certos e determinados nomes que não importa agora referir.
Por vezes, muitos nomes parecem nos antípodas, mas, ao fim de alguns périplos,
passando por muitos outros, acabam por cruzar-se… Por vezes uma ponta da corda
toca na outra passando por muitas voltas, diversos e inopinados nós… Sem essas
omissões talvez se compreendesse melhor certas “histórias” e questões…
[3]
Agradeço à saudosa Dra. Elsa Rodrigues dos Santos (1939-2012) as preciosas indicações
e reparos que deu nesse sentido.
[4]
Leia-se a sua extraordinária novela Confissão
de Lúcio (1914) tida como referência relativamente ao tema do “desdobramento”
segundo vários estudos. Também a extraordinária peça (acto único) de José Régio
“Mário ou Eu-próprio o Outro” (1957) partindo do conto-poema de Sá-Carneiro “Eu-próprio
o Outro” (in Céu em Fogo). Por
exemplo, o interessante estudo do brasileiro Fernando de Moraes Gebra sobre a
questão do “duplo”: “José Régio e Sá-Carneiro nas encruzilhadas de seus duplos”.
[5]
Eduardo Lourenço fala de “ausência”, mesmo de “ausência” de “Ser” e “ausência
de essência humana” em Sá-Carneiro num texto polémico que, em linhas gerais,
faz o contraponto entre “Orpheu” e “Presença”, tendo como principal contendor
João Gaspar Simões :“«Presença» ou a Contra-Revolução do Modernismo Português?”
(p.192). Ver Tempo e Poesia de 1974 (livro
republicado em 2003 pela Gradiva). O texto veio a público pela primeira vez em
1960 (?) no suplemento d’O Comércio do
Porto, mutilado pela censura… Sobre esta polémica consulte-se o próprio
Tempo e Poesia. Vj. também, p.ex., Ana
Cristina F. Assunção Marrucho, “Um texto sobre o “Orfeu” e a “Presença” – ensaio
sobre a cegueira ou a revolução do discurso crítico em Portugal”.
[6]
A citação encontra-se na V parte do poema “Além-Deus” (“Braço sem corpo
brandindo um gládio”, 1913 (?)), só editado em 1953 por João Gaspar Simões,
incluído no número 3 da revista “Orpheu” também com “Poemas de Paris” de
Sá-Carneiro, não chegando a ser editado na altura por força de dificuldades económicas
do pai deste, saindo somente em 1984 pelas Edições Nova Renascença e Ática.
[7]
Primeira publicação: “Orpheu ou a poesia como realidade”, AAVV (Org.
de José Augusto FRANÇA), Tetracórnio. Antologia de Inéditos de Autores
Portugueses Contemporâneos, Lisboa, Fevereiro de 1955, pp. 27-39.
[8]
Ou ainda Eduardo Lourenço (vj. nota 5 do apontamento 1), de 1960 republicado em
Tempo e Poesia (1974): “ (…) num ponto, o essencial, o mundo de «Orpheu»
merece como nenhum outro o nome de moderno: não só há um acordo íntimo entre a
convulsão espácio-temporal operada por «Orpheu» e a perturbação operada pela
técnica moderna e o viver moderno,
como a imagística sobre a qual opera a fantasia de Sá-Carneiro, Pessoa, Almada,
é de uma quotidianidade, de uma banalidade, de uma actualidade que a poesia anterior, mesmo a de Cesário, o Mestre, não
conhecera («Presença» ou a Contra-Revolução do Modernismo Português?»).”
Com imagens triviais e
mesmo grosseiras realizam a mais insólita das alquimias (…) ”
[9] Paul
Virilio, La machine de vision, pp.
34-36.
Optámos por transcrever
literalmente a partir da versão original em português todos estes versos do
poema Manucure de Sá-Carneiro citados
em francês por Virilio. Vj. também a expressão “doente-de-Novo”, no poema
“Além-Tédio”(Paris, 1913), em Dispersão.
[10]
Se bem que Agamben não deixe de proceder a uma análise e de sugerir algumas
vias. Deixa-se à curiosidade do leitor: https://www.youtube.com/watch?v=skJueZ52948
[11]
Sá-Carneiro, para além da velocidade e do movimento das grandes cidades, estava
fascinado pelas luzes (as “Luzes da cidade”) daquela modernidade que irrompia
nessa altura. Aliás, como se sabe, luz e velocidade estão relacionadas. Basta
ler os seus textos, poemas e cartas, sempre atentos às luzes (“anúncios eléctricos pelos telhados” numa
carta de Paris a Fernando Pessoa), ao “oiro” (p. ex. o livro Indícios de Oiro) e às cores (roxos,
azuis, vermelhos, verdes…), o que caracterizava também uma estética cromática e
a importância do sentido da visão no seu imaginário. “Pinturas a «ripolin», / Anúncios pelos telhados – “ (Sete canções
de Declínio”, in Indícios de Oiro. Para não falar da sensualidade, da “luxúria
e do apetite sexual”; vj. a este propósito Maria Estela Guedes: http://triplov.com/sa_carneiro/meg/zonas_02.html. E ainda, nas
palavras de Fernando Cabral Martins um “sensacionismo avant la lettre” (op. cit.,
p.220), ou “As sensações da alma – que
talvez possam ser chamadas ultra-sensações – têm assim, efeitos que são marcas
de uma intensidade desreguladora” (idem,
p.230). Bem como o cruzamento dos sentidos: “A cor já não é cor – é som e aroma!” (“Partida”, Dispersão). Sobre estes aspectos leia-se
extraordinária novela A Confissão de
Lúcio.
[12]
Esta pretensa actualidade não é senão inactual. Mas este “inactual” nada tem a
ver com o “intempestivo” (Unzeitgemässe), o
“inactual” na acepção de Nietzsche enquanto “desfasagem”, “verdadeiro
contemporâneo” na sua “não coincidência perfeita com o seu tempo” segundo as
palavras de Agamben referindo-se à 2ª consideração (Nietzsche, Considerações intempestivas; Unzeitgemässe Betrachtungen) em O que é o contemporâneo. A 2ª
consideração pode ler-se em: http://fr.wikisource.org/wiki/De_l%E2%80%99utilit%C3%A9_et_de_l%E2%80%99inconv%C3%A9nient_des_%C3%A9tudes_historiques_pour_la_vie.
A propósito desta questão do “contemporâneo” veja-se o nosso estudo publicado
nº 14 desta revista: Luís Tavares,
“Escrever, descrever e sensações em Álvaro de Campos”, in Revista Nova Águia,
nº14, 2º semestre, 2014, pp. 152-159, Zéfiro.
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