António
Lobo Antunes, Sôbolos rios que vão
“Antoninho”
[…] “ecrã” […] “derivado à hérnia” […] “pingo no sapato” […] “estou a gostar
imenso do filme”… etc.
extracto:
“[…]
– Antoninho
Dado que
nada acontecera, o senhor vigário na cadeira da latada, a carroça do Virgílio
longe, o pingo no sapato
– Não
aconteceu nada amigo
Cada órgão
a escrever o próprio nome no ecrã sem sobressaltos nem pressas, o enfermeiro
– Ainda
cá estamos amigo
e ainda
cá estamos de facto mas porquê o roupão velho se te faço companhia, tu a
hesitares com a prega na testa de quem luta com os restos da noite, os pés
descalços comoviam-me, o dedo pequenino vermelho e os restantes brancos, um
pedaço de rótulo preso ao calcanhar e não notavas o rótulo, a mão coçava a nuca
de cotovelo erguido, lençóis na corda da marquise e um alguidar de plástico
onde uma blusa de molho e sinto-me, sentia-me, digo sentia-me porque as fraldas
do hospital sujas, hão-de puxar-me as pernas para cima, limpar-me e apesar
disso tu comigo, nós no sofá depois do almoço, tu com duas almofadas derivado à
hérnia e eu sem almofada alguma e talvez uma hérnia também ou seja uma espécie
de moinha, gosto que chova na janela do hospital, gosto que chova na marquise
enquanto nós de televisão ligada sem necessitarmos de palavras, a tua mão, em
lugar da nuca, no meu joelho e que diferença entre a mão e a nuca e a mão no
joelho, a calça a tornar-se pele e é a minha pele, não o tecido, que
afagas, de longe em longe a cabeça no
meu ombro, mais de longe em longe um beijo, inclino a cabeça para um segundo
beijo e a boca distante
– Estás
a gostar do filme?
eu que
não reparo no filme
– Imenso
e não
posso reparar no filme dado que me esfregam as nádegas, não um homem, uma
enfermeira a humilhar-me
– Falta
pouco
enxugando-me
as intimidades numa eficiência rápida, não intimidade aliás, trapos que tombam
numa moleza atroz, estou a gostar imenso do filme garanto, apenas me entristece
um bocadinho, não te inquietes que não me entristece muito, apenas me entristece
um bocadinho sem importância, e não quero aborrecer-te com isto, um bocadinho
sem importância, a sério, não tornar a ver-te.
[…]”
António
Lobo Antunes, Sôbolos rios que vão, Lisboa, D. Quixote, 2010, p. 96-97
transcrito
hoje…
Este livro tem muito que ver com uma séria experiência de internamento do autor...
O título
“Sôbolos rios que vão” é um verso de um longo poema de Luís Vaz de Camões
(Babel e Sião)
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