Ecos de Santa-Rita e Malévitch: O Quadrado e o Círculo
Luís de Barreiros Tavares, "Ecos de Santa-Rita e Malévitch: O Quadrado e o Círculo", Revista Nova Águia, nº16, 2º semestre, 2015, pp. 116-122, Zéfiro.
À memória do Paulo Costa Santos, que me deu força nestas
coisas
“Futurista declarado em Portugal, há
um que sou eu”
(Santa-Rita
Pintor)
-
-
“Só dez pessoas no mundo podiam não
só compreender como ver”
O que é que Santa-Rita tem a ver com Malévitch? Perguntarão
sem dúvida muitos curadores, críticos e especialistas… Qual a relação? Ou: “quem
é Santa-Rita?”
Respondemos: o quadrado e o círculo são as figuras
geométricas que se impõem em fases e datas decisivas no pintor português e no
pintor russo, pondo em ressonância ou eco algumas obras de ambos no despontar
da arte moderna do século XX.
Guilherme de Santa-Rita Pintor (1889-1918)
pertenceu à famosa geração de Orpheu. Kasimir Severinovitch Malévitch
(1878-1935) foi o criador do Suprematismo. Ambos admiraram e foram influenciados
pelo chamado Cubo-Futurismo em fases de transição para a arte abstracta.
A obra do primeiro - 11 anos mais novo do que o
segundo - foi quase totalmente destruída pela família após a sua morte, a seu
pedido. Malévitch teve uma vida bem mais longa, podendo desenvolver grande
parte de todo o seu potencial criador. Ambos passaram pelas influências cubistas,
futuristas e cubo-futuristas. Iremos sobretudo focar a nossa análise num
notável trabalho de Santa-Rita:
(Figura 1)
“Syntese geometral de uma cabeça x infinito plastico
de ambiente x transcendentalismo phisico” (SENSIBILIDADE
RADIOGRAPHICA), Paris, 1913[2].
Esta obra de Santa-Rita é um dos quatro extra-textos
que saíram na revista Orpheu 2. Neste número Sá-Carneiro dedicou-lhe o seu poema
“Manucure”, e Pessoa a “Ode Triunfal”[3].
Em contraponto aos quadrados mais ou menos centrais que incluem um círculo na
composição de Santa-Rita, assinalamos o célebre “Quadrângulo”, mais conhecido
como “Quadrado Negro Sobre Fundo Branco” (1915) de Malévitch:
(Figura 2)
Repare-se que neste trabalho de Santa-Rita o
quadrado branco inclui-se, se bem que parcialmente, no negro. Ao passo que no
“Quadrângulo” de Malévitch sucede o inverso, num como que efeito reverso de um
trabalho em relação ao outro.
Em Santa-Rita teremos também em conta os segmentos
de recta, de curva, as formações de círculos, as intersecções, os ângulos, etc.
Estes elementos manifestam-se como um processo de aparecimento e génese dos
quadriláteros e círculos nas composições. Tentaremos proceder a uma certa
descrição fenomenológica plástico-pictural destas figuras. Faremos um breve
enfoque numa pintura de Picasso (cubismo sintético).
*
O que encontramos nesta obra do genial Santa-Rita
Pintor? Algumas linhas indiciando formas quadrangulares, quase todas
inacabadas, em vias de se fazer. Um jogo depurado de vértices e ângulos interseccionistas (termo que encontramos
num outro dos seus formidáveis extra-textos (hors-textes) na Orpheu 2, cujo
título é “Decomposição dynamica de uma mesa + estylo do movimento (INTERSECCIONISMO
PLASTICO)” (Paris, 1912):
(Figura 3)
Voltando à
figura 1. Retomando as figuras que se destacam: um quadrado preto e outro basicamente
branco (um recorte de jornal onde se divisa a ligeira mancha das letras). No
meio encontra-se um círculo negro. Observemos o detalhe:
(Figura 4)
De facto, é de supor que o quadrado mais escuro seja
negro, pois o contraste entre os dois é muito acentuado. O rectângulo onde se
inscrevem é num tom mais claro, podendo ser cinzento. Ele encontra-se
sensivelmente centrado no plano do quadro.
*
É muito difícil encontrar naqueles primeiros anos da
segunda década do séc. XX um interesse tão especial pela depuração de figuras
geométricas quadrangulares como nestes dois artistas. Santa-Rita iniciava um
caminho. Malévitch, mais velho, amadurecia um processo criativo. Certamente não
conheceram a obra um do outro. Dir-nos-ão que os quadrados nesta obra de
Santa-Rita são ainda um tanto miméticos e representacionais relativamente ao “Quadrângulo”
(1915, figura 2), o “ícone do nosso tempo”, como lhe chamou o seu amigo e poeta
cubo-futurista Klebnikov.
Com efeito, na composição da figura 1 (1913) – ver detalhe:
figura 2 - de Santa-Rita, indicia-se qualquer coisa como um olho geométrico (círculo
e quadrados) e a respectiva cabeça como assinala o título. Mas o Quadrângulo de
Malévitch é de 1915. Portanto, dois anos mais tarde. Ora, em 1913, data que
Malévitch determina como a do aparecimento do “quadrado suprematista” nos
cenários para a ópera cubo-futurista “Vitória sobre o Sol” (Teatro Luna-Parque
de Sampetersburgo), o quadrado ainda se inscreve em composições incluindo elementos
figurativos. Quer dizer, em 1913, tanto Malévitch como Santa-Rita se
encontravam num estádio onde se começava a estabelecer uma certa ponte para a
chamada arte abstracta.
*
Nos outros extra-textos publicados na “Orpheu 2”
encontramos também a pesquisa do quadrilátero e do círculo. Por exemplo:
(Figura 5)
“Estojo
scientifico de uma cabeça + aparelho ocular + sobreposição dynamica visual +
reflexos de ambiente luz” (SENSIBILIDADE MECHANICA) Paris, 1914)
Nesta pintura-colagem podem ver-se múltiplas formas
circulares, incluindo qualquer coisa como janelas quadriculadas, configurações
de quadriláteros e mesmo uma colagem com uma peça metálica quadrada perfurada
no meio com um círculo, junto a uma mola (lado esquerdo no meio do quadro).
O surpreendente é que em 1913 Santa-Rita já
experimentava picturalmente a figura do quadrado numa linguagem abstractiva e
futurista, embora ainda não propriamente abstracta. “Abstracção futurista”,
segundo Raul Leal ("L’abstractionisme futuriste" de Raul Leal in
“Portugal Futurista”)[4].
Em 1913 Malévitch teria cerca de 34-35 anos, e Santa-Rita cerca de 23-24. Este
aspecto é muito importante, principalmente quando se trata de períodos de
juventude. São dois estádios muito distintos no processo evolutivo de qualquer
artista plástico. O mesmo se poderia dizer relativamente, por exemplo, a
Picasso, nascido em 1981, a Marinetti (o poeta fundador do Futurismo em 1909, com
o seu célebre manifesto, nascido em 1876), tão admirado por Santa-Rita, a Boccioni
(outro importante futurista, 1882) e a Severini (1883), que terá influenciado o
pintor português, etc. Todos mais velhos do que Santa-Rita.
Com efeito, Santa-Rita Pintor estava ao corrente do
que se fazia. Mais, alguns dos seus trabalhos revelam uma elementaridade, uma potencialidade
abstractiva e geométrica extraordinária (vj. os restantes extra-textos da
“Orpheu 2”, entre outros trabalhos). Neles observa-se o fascínio por uma certa
geometria aliada, na sua aparente estaticidade (“Compenetração estática
interior de uma cabeça… “ (Paris, 1913), em tensão com uma dinâmica de formas
em génese. É a dinâmica na composição e decomposição das linhas que traçam e
esboçam quadrados, rectângulos, círculos, segmentos de recta e curva em
intersecção. Aliás, os termos dinâmica” e “decomposição”, entre outros, encontram-se
nos títulos dos extra-textos (ver figura 3). Malévitch também os empregou
nalgumas das suas obras futuristas e cubo-futuristas; por exemplo, o óleo: “Mulher
com baldes. Decomposição dinâmica de [outra pintura] «Camponesa com baldes»”
(1912-1913).
De facto, é espantoso o modo como Santa-Rita depurava as
formas, esboçava as linhas formadoras de uma certa geometria abstracta ou
“não-figurativa”, para empregar uma noção de Malévitch. Chega mesmo a usar o
termo abstracção. No único número da revista “Portugal Futurista” (1917)[5],
Santa-Rita publica a reprodução de uma estranha obra intitulada (voltaremos a
ela noutro lugar): “Abstracção congénita intuitiva (material-força)”, de 1915.
E também “Cabeça = linha – força. Complementarismo orgânico, 1913”:
(Figura 6)
Santa-Rita experienciava e experimentava profundamente
o que de mais avançado se produzia em termos de expressão plástica[6].
*
Há, de facto, em Picasso, a pesquisa dessas formas
geométricas e abstractivas; elas germinam também no cubismo (cubismo sintético,
neste caso). Veja-se a seguinte pintura a óleo “Cabeça de rapariga” (1913):
(Figura 7)
Encontramos neste trabalho de Picasso uma espécie
de reverso da figura do hipotético círculo negro no quadrado branco na colagem
de Santa-Rita que aqui analisamos (figuras 1 e 2). Aqui, em Picasso, é um
círculo branco ou em transparência – uma vez que deixa ver a textura do plano
em que se inscreve. Todavia, este círculo encontra-se no centro de uma forma
aproximada de um quadrado negro, menos geométrico.
Em contrapartida, os quadrados que referimos no
trabalho de Santa-Rita apontam para um rigor mais geométrico ou para uma
pesquisa mais depurada e abstracta, apesar de indiciarem uma cabeça monocular ou
ciclópica com o círculo negro – uma íris esquemática, digamos - no centro do
quadrado branco (colagem de recorte de jornal) mais ou menos no meio, mas um
tanto deslocado[7],
relativamente ao quadrado negro (também colagem). Portanto, será em nosso
entender redutor limitar a experiência dos extra-textos de Santa-Rita à influência
do cubismo sintético (Braque, Picasso) como alguns sustentam.
*
Analisemos
agora o “quadrado” e o “círculo” em Santa-Rita nas figuras 1 e 2. Note-se que a
figura do círculo acompanha toda a génese do suprematismo de Malévitch. Veja-se
o quadro intitulado “Círculo Negro” (primeira versão exibida na última
exposição Futurista “0.10 (1915) em Sampetersburgo. Neste quadro a descentragem
do círculo é bem expressa tangenciando praticamente as margens do fundo branco:
(Figura 8)
Mas em Santa-Rita teremos em conta algumas
diferenças mínimas no jogo do círculo e do quadrado. Neste artista, diríamos
que o círculo é, pois, centrado e descentrado, ao mesmo tempo. Porquê? Porque
se supusermos o círculo negro sobreposto ou
inscrito (pintado ou colado) no quadrado branco, ele encontra-se centrado
neste. Mas se o supusermos como um “buraco negro” (um recorte no papel de
jornal do quadrado claro ou branco, ele, o círculo, ainda que se manifeste
picturalmente no mesmo tom (ou cor do quadrado negro), não deixa de se
delimitar no seu recorte como outra figura apesar de pertencer à superfície
negra. Por isso, neste caso, o círculo descentra-se também relativamente ao
quadrado negro. Mais, seja colagem ou pintado no quadrado branco (por cima
deste), seja, pelo contrário, o resultado de um recorte circular no quadrado
branco (por baixo deste), deixando ver a cor do quadrado negro que está por
baixo, ambas as hipóteses, se podem permutar aplicando-se às duas
possibilidades, aos dois pontos de vista que ventilámos antes. Ou seja: tanto
para o descentramento como para o centramento, centrando-se no quadrado branco
e descentrando-se no negro.
Mas neste trabalho de Santa-Rita o recorte “branco”
transborda ainda o recorte “negro”. Tanto para o lado direito, como, levemente,
minimamente, quase nada, se assim se pode dizer, num “infra-fino” - para usar
uma expressão de Marcel Duchamp (“infra-mince”-,
quer dizer, para cima.Veremos mais adiante as semelhanças deste levíssimo transbordo com a distância, por dentro, do ângulo do quadrado branco menor relativamente ao quadrado branco maior no topo da pintura "Branco sobre branco" de Malévitch (fig. 10).
O que é que acontece no exemplo de Santa-Rita (figuras 1 e 4)? Na verdade, o branco
descola-se parcialmente do negro. Parcialmente, de maneira evidente, ainda que
pouco, no lado direito, e no infra-fino para cima. O que confirma, num terceiro
ponto de vista, o movimento de descentramento-deslocamento do círculo negro em
relação ao quadrado negro, sem por isso deixar de reforçar o seu centramento (do
círculo negro) no quadrado branco. Pois, se o branco se desloca, transbordando
para fora do quadrado negro, e o círculo negro estiver inscrito no branco, o mesmo
círculo negro como que se demarca de novo do quadrado negro. No entanto, ainda que
se admita de novo o círculo enquanto buraco negro (enquanto recorte) ou
afundamento correspondendo ao plano negro sob o plano branco, quer dizer, o
sem-fundo do negro a partir do recorte, o desdobramento de vários planos
multiplica-se de novo. Por outro lado, com as margens brancas extravasadas, o
quadrado negro como que deixa de estar entre o quadrado branco e o rectângulo
cinzento central. Neste movimento, o negro torna-se virtualmente invisível. Ele
era suposto sob o branco, mas agora é o “cinza” que lhe toma o lugar. Pois as
margens brancas extravasam, jogam-se, desta feita, com o rectângulo cinza.
Nesse extravasamento não há negro entre o branco e o cinza. Eis a potencialidade
da colagem aliada à pintura e desenho. O carácter abstracto ajuda este processo
de desdobramento de espaços e jogos de movimento[8].
Não poderemos ir mais longe por agora nesta
leitura. Acrescentemos somente que o rectângulo vertical supostamente cinzento (na
reprodução que nos chegou a preto e branco – figura 1) veicula a expansão do
olhar do espectador na multiplicação, na proliferação ecoante dos vértices,
intersecções, ângulos, formações de quadriláteros, etc., da composição. O mesmo
acontece no semi-círculo que se extravasa como círculo virtual no topo do
quadro de Santa-Rita. Círculo virtual em ressonância e deslocando, ou
potenciando uma como que flutuação, por seu turno, ainda, do círculo negro. Assim,
não se descompensa o espaço aberto da multiplicação de figuras em formação.
Estas mantêm a tensão com as figuras mais definidas dos quadrados que
analisámos. Figuras em intersecção na tela ou suporte total branco, ou pintado em
tom claro (supostamente tela, dada a granulação que podemos divisar numa
reprodução ampliada – vj. edição recente facsimilada da revista Orpheu no jornal Público - 2015). No entanto, seja, ou
não, tela, trata-se de um plano aberto e amplo de tom certamente esbranquiçado
e como que vazio. Por assim dizer, Santa-Rita Pintor mantém o plano-suporte em
tons mais claros em articulação à tela branca, ou a um fundo mais claro que as
figuras e traços inscritos: o “desenho esquemático”. É o “plano do suporte”, como
escreve José-Augusto França: “No plano do suporte, um desenho esquemático
representa, em abstracção de valores de modelação, ou a «mesa» ou as «cabeças»
dos títulos respectivos, colando elementos que justificam, em princípio, as
designações – compostas, sem dúvida, num intuito complementar, senão
fundamental, de espantar o leitor” (A
Arte em Portugal no Século XX, p.
58).
Com efeito,
o “Plano do suporte”, ou suporte nu, digamos, apela de algum modo ao “Branco
abissal”, “Abismo sideral”, “Nada libertado”, “Infinito”, etc., segundo as
expressões de Malévitch quanto aos fundos brancos suprematistas pintados também
com pinceladas irregulares (Malévitch chegou a chamar-lhes também: “escarros em
movimento”)[9]. Ora,
“infinito” é um termo que consta no longo e estranho título deste trabalho do
pintor português.
Com efeito, a quadrangularidade tão explícita e
depurada nas colagens de Santa-Rita são algo que despertou decisivamente a
nossa atenção para o contraponto com Malévitch. Stuart Carvalhaes, embora
jocoso, foi perspicaz – talvez sem se dar bem conta - ao ponto de fazer uma
caricatura do artista para o jornal “O Século Cómico” (1915)
aonde, na energética da visão – crucial no pintor -, é configurada uma série de
quadriláteros negros e brancos representando um olho. Precisamente um
quadrilátero branco contendo quatro quadrados (dois negros e dois brancos):
(Figura 9)
*
Observemos agora esta pintura de Malévitch em
contraponto aos quadrados analisados em Santa-Rita, “Branco sobre branco” de
1918:
(Figura 10)
Repare-se na posição do quadrado inclinado em Malévitch.
Ela é muito semelhante ao exemplo que analisámos em Santa-Rita. Só que, pintor
russo, ao invés de extravasar o quadrado maior, o menor inclui-se nele com
ligeiras distâncias em relação às margens. Mas nesta pintura de Malévitch o
quadrado maior recobre a superfície da tela e, por assim dizer, as dimensões do
próprio quadro. Ao passo que, em Santa-Rita, o quadrado maior (negro) inclui-se
mais ou menos centrado na composição. Mas, coisa curiosa, surpreendentemente em
Santa-Rita, as distâncias, por fora, dos ângulos do quadrado menor que
extravasam as margens (lados) do quadrado maior, são muito semelhantes às
distâncias, por dentro, dos ângulos do quadrado menor (o branco inclinado) que
se aproximam das margens (lados) do maior em Malévitch. Note-se, por exemplo, que, em termos de distâncias,
o transbordo no topo em Santa-Rita (figuras 1 e 4) é muito aproximado relativamente à
proximidade do ângulo do quadrado menor ao lado de cima do quadrado maior em
Malévitch. Chamaremos também “infra-fino” a esta aproximação no "Branco sobre branco" de Malévitch (ver acima a referência ao levíssimo transbordo do quadrado branco sobre o negro em Santa-Rita).
*
Sabemos que Amadeo de Souza-Cardoso
também realizou extraordinários trabalhos sobre estas figuras e traços
geométricos. Por exemplo: “Pintura” de 1913”. “A primeira composição abstracta
(abstracta-geométrica, é claro) realizada na linha genealógica do cubismo. […].
«Das primeiras», terei emendado mais tarde, por bom senso de pensar no que não
se conhece de atelier em atelier, ignorado ou perdido por esse
mundo fora, em anos de ânsias e confusões” (José-Augusto França, 100 Quadros Portugueses no Século XX,
p.36). Décadas sem
acesso aos críticos de arte. José-Augusto França, o primeiro a vê-la “no recato
parisiense da colecção da viúva do pintor” (Idem).
Para não falar do espantoso “Ascensão do Quadrado Verde e a Mulher de
Violino” (1916), entre outros. Mas trata-se de expressões plásticas diferentes,
embora com elementos comuns, pois estas pinturas da Souza-Cardoso primam por um
trabalho pictórico geométrico em toda a superfície da tela (a pintura a óleo ,
por vezes com colagens, recobre todo o suporte). Ao passo que em Santa-Rita há
um esquematismo e um despojamento nesse mesmo plano trabalhando-se uma
elementaridade geométrica, deixando “brancos”. Foram estes elementos que
tentámos analisar neste breve estudo. Esperamos noutra ocasião pensar com
Amadeo a sua pintura.
*
O que importou neste estudo foi o enfoque no
esquematismo elementar do quadrado e do círculo em Santa-Rita, principalmente a
partir da figura 1 no seu contraponto ao “quadrado” e também ao “círculo” em
Malévitch. A importante pesquisa de ambos na depuração e abstracção de figuras
geométricas como o círculo e o quadrado, segundo pontos de vista diferentes mas
com linhas aproximáveis e cruzáveis.
Eis outra das razões deste ensaio sobre o genial
pintor português: “ignorado para sempre?... pergunto.” (cf. José-Augusto França
na sua conferência no Congresso 100 ORPHEU; vj. nota 3). Será que há pouco a
dizer sobre Santa-Rita Pintor?
Não se pretendeu defender qualquer tese. Como, por
exemplo, a de que as pesquisas picturais de Santa-Rita e de Malévitch convergiam
decisivamente. Antes, que cada um, no seu percurso singular produziu
pictoricamente obras que podem encontrar ecos assinaláveis entre 1912 e, pelo
menos, 1915. Ecos, tendo em conta a diferença de idades – mas partilhando ambos
a admiração pelo futurismo e cubo-futurismo -, para não falar da distância
geográfica que os separava e do quase certo desconhecimento mútuo.
Mais do que analisar neste breve estudo alguns
elementos da obra de Santa-Rita à luz do suprematismo inaugural de Malévitch
(partindo do facto de a obra deste estar absolutamente consagrada, servindo
assim de referencial), tratou-se antes de tentar tornar manifesta a ressonância
e relevância do que sobreviveu da obra do primeiro. Ressonância enquanto
experiência também inaugural de elementos esquemáticos, numa elementaridade e
génese de abstracção admiráveis. Elementos plástico-pictóricos decisivos no
desenrolar da pintura moderna do século XX. A partir daí torna-se pertinente
encontrar os ecos indicados no título deste estudo.
Famosa fotografia de Santa-Rita Pintor envergando
um fato quadriculado, reproduzida na revista “Portugal Futurista” (1917).
Referências:
Revista ORPHEU (edição facsimilada no jornal público – 2015)
Revista Portugal Futurista (edição facsimilada - Contexto Editora - 1981)
Revista Portugal Futurista (edição facsimilada - Contexto Editora - 1981)
Gilles Néret, Malevitch, Taschen.
Joaquim Matos Chaves, Santa Rita
– Vida e Obra, Quimera, 1989.
José-Augusto França, História da
Arte Ocidental (1780-1980), Lisboa, Livros Horizonte, 1987.
José-Augusto França, A Arte em
Portugal no Século XX (1911-1961), Lisboa, Bertrand Editora, 1985.
José-Augusto França, 100 Quadros
Portugueses no Século XX, Lisboa, Quetzal Editores, 2001.
José Gil, A arte como linguagem, Relógio D'Água, 2010.
José Gil, Poderes da Pintura,
Relógio D'Água, 2015.
Gilles Néret, Malevitch,
Taschen.
J. M. F. Garcia-Bermejo, Malevich, Ed. Verba, 1995.
J. M. F. Garcia-Bermejo, Malevich, Ed. Verba, 1995.
Kasimir Malevitch, Le
Miroir Suprematiste, Ed. Âge d'Homme, Lausanne, 1993.
Kasimir Malevitch, Les
arts de la représentation, Ed. Âge d'Homme, Lausanne, 1994.
Marcel Duchamp, Notes, Paris, Champs, Flammarion, 2005.
Fernando Cabral Martins, O
Modernismo em Mário de Sá-Carneiro, Lisboa, Ed. Estampa, 1997.
Carsten-Peter Warncke,
Ingo F. Walther, Pablo Picasso
(1881-1973), Taschen, 1997.
[1] Segundo
o testemunho de Sá-Carneiro em carta a Fernando Pessoa.
[2]
Na exposição que realizámos na Fábrica de Braço de Prata, de 12/06/2015 até
final de Setembro, esteve exposto um trabalho intitulado “Estudo em homenagem a
Santa-Rita Pintor” (2015) inspirado
precisamente nesta obra do artista da geração de Orpheu, e evocando a
publicação da revista há 100 anos.
[3] Sá-Carneiro
inspira-se em Santa-Rita para o seu personagem Gervásio Vila-Nova na novela Confissão de Lúcio.
[4] Cf.
conferência de José-Augusto França no Congresso 100 ORPHEU – Gulbenkian, Março
2015. Vídeo: https://www.youtube.com/watch?v=_lYr-NiiRhk
[5]
Neste número colaboraram Álvaro de Campos (“Ultimatum”), Fernando Pessoa,
Sá-Carneiro, Amadeo de Souza-Cardoso, Santa-Rita, José de Almada Negreiros e
Raul Leal (dois foram grandes admiradores de Santa-Rita), Apollinaire, Blaise
Cendrars, Marinetti, Boccioni, Carrá, Russolo, Severini, entre outros.
[6]
Não abordaremos aqui a fabulosa cabeça cubo-futurista (c. 1910-1912?) que se
encontra no Museu do Chiado (MNAC - Museu Nacional de Arte Contemporânea). “Uma
peça notável dos anos 10 europeus, uma peça única na pintura portuguesa” (Cf.
José-Augusto França, 100 Quadros
Portugueses no Século XX, p.33).
[7]
Sem forçar qualquer identificação, este sentido de movimento lembra um pouco,
sob outro ponto de vista, o termo russo sdvig,
significando “deslocação”. O termo refere-se a olho no quadro de Malévitch
“Retrato aperfeiçoado de Ivan Vassilievitch Kliunkov”. Segundo J.C. Marcadé, é
“o olho com as suas duas partes desajustadas (…) olho exterior e olho interior,
ver e saber, percepção e conhecimento” (Gilles Néret, Malevitch, Taschen, p. 32).
[8]
Numa inovadora análise do espaço e da própria questão quanto à pintura e sua
“saída da tela”, leia-se o belíssimo livro recentemente publicado sobre a obra
do grande pintor e escultor português Ângelo de Sousa (1938-2011): José Gil, Poderes da Pintura, Relógio D’Água, Maio
de 2015.
[9]
Na referida mostra que fizemos na Fábrica de Braço de Prata esteve patente um
outro trabalho inspirado no “Branco” de Malévitch.
-
-
Esta versão tem ligeiras alterações relativamente à que foi publicada na NOVA ÁGUIA 16
Santa-Rita Pintor
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