domingo, 27 de abril de 2014

Espinosa – Alguns tópicos - A Substância única (Deus sive Natura; Deus ou Natureza), os atributos, os modos e a simultaneidade… o "ao mesmo tempo" (1ª parte)













“A ordem e a conexão das ideias é a mesma que a ordem e a conexão das coisas” (Ética, Parte II, proposição VII)




Omnis determinatio est negatio (Toda a determinação é negação) (Espinosa, carta a Jarig Jelles)


“Espinosa é um ponto crucial na filosofia moderna. A alternativa é: Espinosa ou não há filosofia… “

(Hegel) 

“Pode dizer-se que todo o filósofo tem duas filosofias, a sua e a de Espinosa”

(Bergson)

“Ao contrário do que pensámos durante muito tempo, foi afinal Espinosa quem triunfou, não apenas dos teólogos, não apenas de Descartes, mas também de Kant”

(Henri Atlan)



Corpo e Mente são uma e a mesma coisa, mas modos, um segundo o atributo da Extensão e o outro segundo o atributo do Pensamento. Por seu turno, a Extensão e o Pensamento são os dois atributos conhecidos de uma mesma substância única (Deus sive Natura).
Mas não se poderá aqui falar de um desdobramento da extensão (atributo) em corpo (modo) e do pensamento (atributo) em mente (modo)? Todavia, há também infinitos modos: os corpos e as mentes (ou almas) particulares.

O que me parece determinante é que a substância única espinosiana é uma e a mesma coisa, ou melhor, uma e a mesma substância que, ao mesmo tempo, se pode considerar, ora segundo o atributo do pensamento, ora segundo o atributo da extensão:  “(…) tudo o que pode ser concluído por uma inteligência infinita, como constituindo a essência da substância, pertence a uma substância única, e, por consequência, a substância pensante e a substância extensa são uma e a mesma substância, compreendida ora sob um atributo ora sob outro [os atributos sendo, precisamente, Pensamento e Extensão]” (Ética , Parte 2, Proposição VII, Escólio; itálicos nossos).

Observação: aqui Espinosa parece contradizer-se, pois fala de duas substâncias “a substância pensante e a substância extensa”) , só admitindo uma; no entanto mais parece um passo que tem de dar-se para melhor se entender a questão, dando ainda outro: a tese da única e mesma Substância.
Leia-se na Parte 3, proposição 2, Escólio. Espinosa retoma a questão: “Essas coisas entendem-se mais claramente pelo que foi dito no escólio da proposição 7 da Parte II, a saber, que a Alma [ou Mente] e o Corpo são uma só e mesma coisa que é concebida, ora sob o atributo do Pensamento, ora sob o da Extensão. Daí resulta que a ordem e ou encadeamento das coisas é a mesma quer se conceba a Natureza sob um atributo quer sob o outro; e, consequentemente, que a ordem das acções e das paixões do nosso Corpo é, de sua natureza, simultânea à ordem das acções e das paixões da Alma” (Itálicos nossos).

A questão da simultaneidade, ou do “ao mesmo tempo”, é crucial. Veremos mais à frente a s suas implicações.

Por outro lado: “(…) a Mente [optamos por ‘Mente’, uma vez que é mais frequente este termo em Espinosa] e o Corpo são uma só e mesma coisa que é concebida, ora sob o atributo do Pensamento, ora sob o da Extensão” (Ética, Parte 3, Proposição 2, Escólio) (mantemos os Itálicos)

Nota: Sobre a maior frequência do termo ‘mente’ em detrimento de ‘alma’ em Espinosa, vj. o capítulo “Algumas questões sobre o conceito de mente em Espinosa” no livro de  Maria Luísa Ribeiro Ferreira, Uma Meditação de VidaUm diálogo com Espinosa, Esfera do Caos Editores, 2013, p.112.)

Por isso, por exemplo: “Ela [a mente] é o corpo enquanto realidade pensada. Pensamento e matéria [extensão] não são substâncias mas sim atributos de uma Substância única – Deus sive Natura.” (Maria Luísa Ribeiro Ferreira, op.cit. p.116.)

Analisemos então a questão da simultaneidade mencionada em Parte 3, Proposição 2, Escólio.
Recordemos a passagem: “Essas coisas entendem-se mais claramente pelo que foi dito no escólio da proposição 7 da Parte II, a saber, que a Alma [ou Mente] e o Corpo são uma só e mesma coisa que é concebida, ora sob o atributo do Pensamento, ora sob o da Extensão. Daí resulta que a ordem e ou encadeamento das coisas é a mesma quer se conceba a Natureza sob um atributo quer sob o outro; e, consequentemente, que a ordem das acções e das paixões do nosso Corpo é, de sua natureza, simultânea à ordem das acções e das paixões da Alma.”

Poder-se-á avançar então o seguinte:

1. Quando se está a falar ou considerar a mente, está-se já a considerar o corpo, pois são a mesma coisa. No entanto, num determinado momento, considera-se esta mesma coisa segundo o atributo do pensamento; e por isso enquanto mente.

2. Quando se está a falar ou considerar o corpo, está-se já a considerar a mente, pois são a mesma coisa. Simplesmente, num determinado momento, considera-se esta mesma coisa, segundo o atributo da extensão; e por isso enquanto corpo.

Mas este “determinado momento” que referimos é reversível. Virtualmente, tanto se pode considerar a mente ou o corpo nesse determinado momento. E a reciprocidade, que já de si é dupla, reduplica-se.
Nos pontos ‘ 1.’e ‘2.’ do “determinado momento” que mencionámos pode inferir-se um ”ao mesmo tempo” contraditório. Pois ora é determinado momento para a mente, ora para o corpo. Mas ao mesmo tempo se pode considerar tanto um como o outro. Donde esse contraditório a que aludimos.  Mas é aparente. Chamar-lhe-emos  quase-contraditório. Pois resolve-se ou mantém-se em jogo na sua duplicidade: do corpo para a mente e da mente para o corpo. Não se poderá, então, afirmar que, ao considerar a mente, já se está a considerar o corpo? Todavia, será necessário determinar  quando e de que modo se determina um e não o outro?

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Retomando: “(…) tudo o que pode ser concluído por uma inteligência infinita, como constituindo a essência da substância, pertence a uma substância única, e, por consequência, a substância pensante e a substância extensa são uma e a mesma substância, compreendida ora sob um atributo ora sob outro” (Ética , Parte 2, Proposição VII, Escólio).

É interessante que parece operar-se aqui um desdobramento, pois, logo a seguir a esta passagem, Espinosa escreve dando como exemplo a extensão: “Da mesma maneira, também um modo da extensão e a ideia desse modo são uma e a mesma coisa, mas expressa de duas maneiras diferentes.” Mas o desdobramento é mais flagrante quando também podemos verificá-lo, precisamente, na passagem já citada: “(…) a Mente e o Corpo são uma só e mesma coisa que é concebida, ora sob o atributo do Pensamento, ora sob o da Extensão” (Ética, Parte 3, Proposição 2, Escólio). Porque falamos desse desdobramento ou mesmo de duplo desdobramento? Com efeito, se “a Mente e o Corpo são uma só e mesma coisa que é concebida, ora sob o atributo do Pensamento, ora sob o da Extensão” - e este duplo “ora” poderá subentender  um ao mesmo tempo, uma simultaneidade que tanto pode supor um ou o outro atributo, por outro lado, repetindo a outra passagem já citada“(…) tudo o que pode ser concluído por uma inteligência  infinita, como constituindo a essência da substância, pertence a uma substância única, e, por consequência, a substância pensante e a substância extensa são uma e a mesma substância, compreendida ora sob um atributo ora sob outro” (Ética , Parte 2, Proposição VII, Escólio). Esta “Uma e a mesma substância” sendo a Substância Infinita, Deus sive Natura.

Este problema de uma mesma e única substância que pode ser considerada segundo dois atributos diferentes (Pensamento e Extensão) não se traduzirá em qualquer coisa como: quando se considera essa mesma única substância segundo um atributo, por exemplo, a Extensão, potencialmente, ou se quisermos, virtualmente, já se está a poder considerá-la segundo outro atributo, o Pensamento? Eis o “ao mesmo tempo” em que cada um dos atributos (pensamento e extensão) são considerados segundo essa única e mesma substância como sendo o mesmo: Deus ou Natureza.

Com efeito, do nosso ponto de vista, em Espinosa, a ideia de simultaneidade e de “ao mesmo tempo”, atravessa grande parte destas reflexões. Mas aqui, simultaneidade parece não seguir o que dita o princípio de não contradição em Aristóteles. Pois a tese de Espinosa parece vir invalidar o princípio de não contradição aristotélico que diz mais ou menos: uma coisa não pode ser e não ser ao mesmo tempo e sob o mesmo aspecto (Metafísica, 1005 b 19). Só que, e isso é que é surpreendente e nos parece assinalável, é que a Substância quando considerada sob o atributo do pensamento, pode, ao mesmo tempo, ser considerada segundo o atributo da extensão. E reciprocamente. Donde uma estranha simultaneidade dúplice, que não poderemos aqui analisar. Talvez possamos avançar que esta problemática reside na própria complexidade da linguagem enquanto tal...
E talvez muitos dos detractores de Espinosa julgassem encontrar na sua tese uma contradição, sendo segundo eles Natureza ou Deus (nesta já estranha identificação panteísta e monista), uma única e mesma Substância, considerada segundo dois atributos (ou aristotelicamente: dois aspectos). 

Se no escólio da proposição VII da Parte 3 encontramos um nexo com a Parte II, proposição VII e o respectivo escólio, será que não poderemos ter como ponto decisivo a simultaneidade nestas reflexões de Espinosa? Leia-se pois o que se segue mais adiante no escólio da proposição VII da Parte 3 após o filósofo afirmar que “ninguém, na verdade, até ao presente, determinou o que pode o Corpo “: De onde se segue que, quando os homens dizem que tal ou tal acção do Corpo é produzida pela Alma [Mente], que sobre o Corpo exerce um império, não sabem o que dizem e não fazem mais que confessar, com palavras especiosas, que ignoram, sem disso se admirarem, a verdadeira causa dessa acção. Mas, dir-se-á, conheça-se ou ignore-se por que meios a Alma move o Corpo, sabe-se, no entanto, pela experiência, que se a Alma não tivesse aptidão de pensar, o Corpo seria inerte. Além disso, sabe-se, pela experiência, que igualmente está apenas na potência da Alma falar e estar calado, e muitas outras coisas que, por essa razão, se julga dependerem da decisão da Alma. Mas, no que toca ao primeiro ponto, pergunto-lhes se a experiência nos não ensina igualmente que, reciprocamente, se o Corpo é inerte, a Alma é, ao mesmo tempo, privada da aptidão de pensar? Com efeito, quando o Corpo está em repouso no sono, a Alma permanece adormecida com ele e não tem o poder de pensar como durante o estado de vigília.”

Aliás, sabemos que em física ‘inércia’ é a resistência que um corpo oferece a qualquer alteração do seu estado de repouso ou movimento. Inércia é, pois, outra forma de movimento, outra forma de força, por assim dizer.

O que é extraordinário é que o sentido de inércia do Corpo invocado por Espinosa induz-nos a pensar que nessa mesma inércia, ele move-se e se move, movendo a Alma na medida em que ela não pensa ou não tem o poder de pensar. O espanto é que se trata de uma troca de efeitos em que quando pensamos tratar-se ou de estarmos a considerar o corpo, estamos ou podemos estar, já, sempre já, e por isso, ao mesmo tempo, a considerar a alma, e vice-versa. E é por isso que são uma e mesma coisa como se indica no passo seguinte, e são modos (Mente ou Alma e Corpo) dos dois atributos (Pensamento e Extensão) de uma única e mesma Substância, Deus sive Natura: “(…) a Mente e o Corpo são uma só e mesma coisa que é concebida, ora sob o atributo do Pensamento, ora sob o da Extensão” (Ética, Parte 3, Proposição 2, Escólio)

Daqui só poderemos levantar uma hipótese. Quando se supõe ser da Alma a decisão de mover o Corpo, já, de outro modo, mas, precisamente, ao mesmo tempo, podemos supor ser o Corpo a decidir sobre a Alma. Digamos que, de outro modo, nesse momento, virtualmente a decisão lhe cabe, precisamente ao corpo.
“Resumindo: enquanto a alma cartesiana nada tem a ver com o corpo, a mente espinosana define-se por ele. Enquanto em Descartes a alma é pensamento sem objecto a mente para Espinosa é pensamento sobre ou de um objecto.” (Maria Luísa Ribeiro Ferreira, op.cit., p.116).

Dava-se aqui a volta a uma linha cartesiana que não podemos agora analisar.


Nota: Este estudo carece de continuação, dadas algumas fragilidades de análise.

Referências bibliográficas:
Bento de Espinosa, Ética, trad. Joaquim de Carvalho, Joaquim Ferreira Gomes, António Simões, Introdução e notas de Joaquim de Carvalho, Lisboa, Rel. D´Água Ed., 1992.
Spinoza, Éthique, trad. et notes Charles Appuhn, Paris, Flammarion, 1988.
Maria Luísa Ribeiro Ferreira, Uma Meditação de Vida – Um diálogo com Espinosa, Esfera do Caos Editores, 2013.
Pierre-François Moreau, Spinoza, trad. Miguel Serras Pereira e Ana Luísa Faria, Lisboa, Dom Quixote, 1987.
Gilles Deleuze, Spinoza, philosophie pratique, Minuit, 2003.

segunda-feira, 21 de abril de 2014

Umas questões sobre Heidegger com Mafalda Blanc. Sobre o conceito de "porrecção" em Zeit und Sein (1962)










LT : Cara Mafalda Blanc
Uma pergunta, se não lhe der muito incómodo.

Como vê o tema da "porrecção" no contexto de Zeit und Sein (1962) de Heidegger? Não conheço o termo em alemão.
Coloquei a pergunta ao Fernando Belo, mas ele mostrou algumas dificuldades ou um certo desinteresse pelo conceito.
Sabe se há muitas abordagens e estudos sobre esta questão? Com efeito, nalgumas páginas daquele texto, Heidegger presta bastante atenção e análise sobre o dito tema ou conceito.
Desculpe se estou a dar maçada
Saudações e boa Páscoa!
Luís

20/04/2014

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MB : Luís,
"porreger"é a trad. proposta para "reichen": o conceder, o dar do tempo, em e pelo qual há ser, vir à existência.
Cf. M.Zarader, H. e as palavras da origem (biblioteca da FL), do Inst. Piaget.
Este é o núcleo mais profundo do pens. de H. e do pens. em geral. Não há nada de mais import.!

Saudações,
M.B. 

21/04/2014

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LT : Cara Mafalda Blanc

Muito obrigado. Tenho esse livro da M.Zarader. Irei consultá-lo de novo…

Pode ler a minha conversa sobre o assunto com o Fernando Belo:



21/04/2014


Obra plástica da autoria de Luís de Barreiros Tavares
"Reverberação de círculo e cicatriz" - técnica mista sobre tela - 30x30cm - 2012

sábado, 19 de abril de 2014

25 de Abril de 1974: Recordações de um adulto de quando era criança e também recordou.



Fonte do texto:









Num texto escrito a quente, só posso dizer uma ou duas coisas que me impressionaram de maneira inexplicável, mas anunciando qualquer coisa de absolutamente novo que iria ou estava a acontecer, apesar dos meus tenros 11 anos de idade. Foi assim, resumindo esse dia. De manhã acordei com os gritos dos meus colegas e amigos vizinhos da minha idade do largo que cruzava a Rua do Zaire, onde morava, com a rua da Guiné, no antigo Bairro das Colónias. Mas um desses gritos ou sinais codificados que emitíamos para nos comunicarmos à maneira de sons de Tarzan, em vez de telemóveis, vinham de súbito de um dos meus amigos, o Paulo Rocha – que atravessava o largo no cruzamento daquelas duas ruas – qual Obélix e seu grande pedregulho maior do que ele. Esse “pedregulho” era nem mais nem menos que um enorme pacote de pão embrulhado em papel próprio para o efeito com uma cor de atijolada.
Ele atravessava nesse momento o largo quando assomei à janela do meu quarto e abri de imediato a janela para saber o que se passava. Do outro lado da rua acenava da varanda do seu terceiro andar um outro amigo, o Luís Leal, com os tais gritos de código. É então que, acto contínuo, volto a olhar para o “Obélix”. Nesse preciso momento ele diz-me estas palavras que, não sei bem porquê, me arrepiam ainda como uma revelação quando as recordo: “Não há aulas, vai haver uma Revolução”. Aquele enorme embrulho era um sinal que curiosamente me fez pensar, ou supor, qualquer coisa. Eram as reservas a que todos naquele momento recorriam como salvaguarda para dias de eventual escassez e privação. Daí as filas na padaria e na mercearia. Aquilo bateu-me não sei como. Como é que com aquela idade eu poderia percepcionar a realidade desse comunicado, dessa transmissão, desse evento? E no entanto, lembro-me que algo se transfigurou em mim. Evidentemente que não poderei omitir o facto bem satisfatório de não haver aulas. Mas qualquer coisa havia mais do que isso. Reentro no quarto, enquanto o outro da varanda acenava, e corro pela casa fora. Passo no quarto de toilette da minha mãe, onde ela prepara a cosmética, própria dos cuidados femininos de uma jovem mulher no começo de mais um dia. Estaco, e repito-lhe as palavras do Rocha (o Obélix): “Não há aulas, vai haver uma Revolução”. Com um ar e um tom de voz sóbrios e apreensivos, ela responde qualquer coisa assim, mantendo-se frente ao espelho: “Nada de brincadeiras, isto é uma coisa muito séria”. Desatei a correr pela casa fora mas mais apreensivo, e contente, claro está, por não haver aulas.
Lembro-me que passadas 1 ou 2 horas vejo o meu pai a meio das escadas deixando-me mantimentos (frangos, mercearias e toda uma série de provisões para o que desse e viesse). Voltando de novo à rua para mais abastecimentos.
Lembro-me também que passava uma corrente de união e cumplicidade mais forte entre todos nós. Depois foi assistir na televisão às primeiras horas e durante o dia ao desenrolar de toda uma série de coisas que eu não percebia bem, ou não percebia mesmo nada. À tarde, deu na televisão um episódio da famosa série da época: Daktari. Para descomprimir, com certeza. Mas a sensação do novo, da abertura para qualquer coisa outra, isso é inesquecível. Depois, foi assistir ao cerco do Silva Pais, o chefe da Pide, que morava na Rua de Moçambique, mesmo ali, a 50 metros, com os Chaimites e a multidão estremecendo e enchendo até às paredes toda a rua e querendo assaltar e travar a viatura com paus, já era noite. Depois ainda, o grande primeiro 1º de maio após o 25 de Abril de 1974. Lembro a Avenida Almirante Reis cheia de gente, ao ponto de nos pormos em cima das caixas da electricidade para vermos de alto. Com efeito, a lentidão daquela massa imponente de gente descendo a Avenida, parecia um mar de lava ou magma vulcânica que tudo podia varrer e derreter à sua frente. Tudo aquilo impunha respeito. Todo o que naquele momento se atrevesse a contrariar, a ir na contracorrente daquele inesquecível mar de gente que tinha despertado para qualquer coisa de extraordinário, deixaria de ter ali lugar. Por exemplo, poder falar e cantar, poder dar liberdade à palavra, às palavras que, com elas, toda a força que estava esquecida se abria agora como um mundo pleno de novidades e imprevisibilidades e também como um campo de acção a construir.

Luís de Barreiros Tavares  17/04/2014