“A ordem e a conexão
das ideias é a mesma que a ordem e a conexão das coisas” (Ética, Parte II, proposição VII)
Omnis determinatio est negatio (Toda a determinação é negação) (Espinosa,
carta a Jarig Jelles)
“Espinosa é um ponto
crucial na filosofia moderna. A alternativa é: Espinosa ou não há filosofia… “
(Hegel)
“Pode dizer-se que
todo o filósofo tem duas filosofias, a sua e a de Espinosa”
(Bergson)
“Ao contrário do que
pensámos durante muito tempo, foi afinal Espinosa quem triunfou, não apenas dos
teólogos, não apenas de Descartes, mas também de Kant”
(Henri Atlan)
Corpo e Mente são
uma e a mesma coisa, mas modos, um segundo o atributo da Extensão e o outro
segundo o atributo do Pensamento. Por seu turno, a Extensão e o Pensamento são
os dois atributos conhecidos de uma mesma substância única (Deus sive Natura).
Mas não se poderá
aqui falar de um desdobramento da extensão (atributo) em corpo (modo) e do
pensamento (atributo) em mente (modo)? Todavia, há também infinitos modos: os
corpos e as mentes (ou almas) particulares.
O que me parece
determinante é que a substância única espinosiana é uma e a mesma coisa, ou
melhor, uma e a mesma substância que, ao mesmo tempo, se pode considerar, ora
segundo o atributo do pensamento, ora segundo o atributo da extensão: “(…) tudo o que pode ser concluído por uma
inteligência infinita, como constituindo a essência da substância, pertence a
uma substância única, e, por
consequência, a substância pensante e a substância extensa são uma e a mesma substância, compreendida ora sob um atributo ora
sob outro [os atributos sendo, precisamente, Pensamento e Extensão]” (Ética , Parte 2, Proposição VII,
Escólio; itálicos nossos).
Observação: aqui
Espinosa parece contradizer-se, pois fala de duas substâncias “a substância
pensante e a substância extensa”) , só admitindo uma; no entanto mais parece um
passo que tem de dar-se para melhor se entender a questão, dando ainda outro: a
tese da única e mesma Substância.
Leia-se na Parte 3,
proposição 2, Escólio. Espinosa retoma a questão: “Essas coisas entendem-se
mais claramente pelo que foi dito no escólio da proposição 7 da Parte II, a
saber, que a Alma [ou Mente] e o Corpo são uma só e mesma coisa que é
concebida, ora sob o atributo do Pensamento, ora sob o da Extensão. Daí resulta
que a ordem e ou encadeamento das coisas é a mesma quer se conceba a Natureza
sob um atributo quer sob o outro; e, consequentemente, que a ordem das acções e
das paixões do nosso Corpo é, de sua
natureza, simultânea à ordem das acções e das paixões da Alma” (Itálicos nossos).
A questão da
simultaneidade, ou do “ao mesmo tempo”, é crucial. Veremos mais à frente a s
suas implicações.
Por outro lado: “(…)
a Mente [optamos por ‘Mente’, uma vez que é mais frequente este termo em
Espinosa] e o Corpo são uma só e mesma
coisa que é concebida, ora sob o atributo do Pensamento, ora sob o da
Extensão” (Ética, Parte 3, Proposição
2, Escólio) (mantemos os Itálicos)
Nota: Sobre a maior
frequência do termo ‘mente’ em detrimento de ‘alma’ em Espinosa, vj. o capítulo “Algumas
questões sobre o conceito de mente em Espinosa” no livro de Maria Luísa Ribeiro Ferreira, Uma Meditação de Vida – Um diálogo com Espinosa, Esfera do Caos
Editores, 2013, p.112.)
Por isso, por
exemplo: “Ela [a mente] é o corpo enquanto realidade pensada. Pensamento e
matéria [extensão] não são substâncias mas sim atributos de uma Substância
única – Deus sive Natura.” (Maria Luísa Ribeiro Ferreira, op.cit. p.116.)
Analisemos então a
questão da simultaneidade mencionada em Parte 3, Proposição 2, Escólio.
Recordemos a
passagem: “Essas coisas entendem-se mais claramente pelo que foi dito no
escólio da proposição 7 da Parte II, a saber, que a Alma [ou Mente] e o Corpo
são uma só e mesma coisa que é concebida, ora sob o atributo do Pensamento, ora
sob o da Extensão. Daí resulta que a ordem e ou encadeamento das coisas é a
mesma quer se conceba a Natureza sob um atributo quer sob o outro; e,
consequentemente, que a ordem das acções e das paixões do nosso Corpo é, de sua natureza, simultânea à ordem
das acções e das paixões da Alma.”
Poder-se-á avançar então
o seguinte:
1. Quando se está a
falar ou considerar a mente, está-se já a considerar o corpo, pois são a mesma
coisa. No entanto, num determinado momento, considera-se esta mesma coisa
segundo o atributo do pensamento; e por isso enquanto mente.
2. Quando se está a
falar ou considerar o corpo, está-se já a considerar a mente, pois são a mesma
coisa. Simplesmente, num determinado momento, considera-se esta mesma coisa,
segundo o atributo da extensão; e por isso enquanto corpo.
Mas este
“determinado momento” que referimos é reversível. Virtualmente, tanto se pode
considerar a mente ou o corpo nesse determinado momento. E a reciprocidade, que
já de si é dupla, reduplica-se.
Nos pontos ‘ 1.’e
‘2.’ do “determinado momento” que mencionámos pode inferir-se um ”ao mesmo
tempo” contraditório. Pois ora é determinado momento para a mente, ora para o
corpo. Mas ao mesmo tempo se pode considerar tanto um como o outro. Donde esse contraditório a que aludimos. Mas é aparente. Chamar-lhe-emos quase-contraditório. Pois resolve-se ou
mantém-se em jogo na sua duplicidade: do corpo para a mente e da mente para o
corpo. Não se poderá, então, afirmar que, ao considerar a mente, já se está a
considerar o corpo? Todavia, será necessário determinar quando e de
que modo se determina um e não o outro?
-
Retomando: “(…) tudo
o que pode ser concluído por uma inteligência infinita, como constituindo a
essência da substância, pertence a uma substância
única, e, por consequência, a substância pensante e a substância extensa são
uma e a mesma substância, compreendida ora sob um atributo ora sob outro” (Ética , Parte 2, Proposição VII, Escólio).
É interessante que
parece operar-se aqui um desdobramento, pois, logo a seguir a esta passagem, Espinosa
escreve dando como exemplo a extensão: “Da mesma maneira, também um modo da
extensão e a ideia desse modo são uma e a mesma coisa, mas expressa de duas
maneiras diferentes.” Mas o desdobramento é mais flagrante quando também
podemos verificá-lo, precisamente, na passagem já citada: “(…) a Mente e o
Corpo são uma só e mesma coisa que é concebida, ora sob o atributo do
Pensamento, ora sob o da Extensão” (Ética,
Parte 3, Proposição 2, Escólio). Porque falamos desse desdobramento ou mesmo de
duplo desdobramento? Com efeito, se “a Mente e o Corpo são uma só e mesma coisa
que é concebida, ora sob o atributo do Pensamento, ora sob o da Extensão” - e
este duplo “ora” poderá subentender um ao mesmo tempo, uma simultaneidade que tanto pode supor um ou o outro atributo, por
outro lado, repetindo a outra passagem já citada“(…) tudo o que pode ser
concluído por uma inteligência infinita,
como constituindo a essência da substância, pertence a uma substância única, e,
por consequência, a substância pensante e a substância extensa são uma e a
mesma substância, compreendida ora sob um atributo ora sob outro” (Ética , Parte 2, Proposição VII, Escólio).
Esta “Uma e a mesma substância” sendo a Substância Infinita, Deus sive Natura.
Este problema de uma
mesma e única substância que pode ser considerada segundo dois atributos
diferentes (Pensamento e Extensão) não se traduzirá em qualquer coisa como:
quando se considera essa mesma única substância segundo um atributo, por
exemplo, a Extensão, potencialmente, ou se quisermos, virtualmente, já se está
a poder considerá-la segundo outro atributo, o Pensamento? Eis o “ao mesmo
tempo” em que cada um dos atributos (pensamento e extensão) são considerados
segundo essa única e mesma substância como sendo o mesmo: Deus ou Natureza.
Com efeito, do nosso ponto de vista, em
Espinosa, a ideia de simultaneidade e de “ao mesmo tempo”, atravessa grande
parte destas reflexões. Mas aqui, simultaneidade parece não seguir o que dita o
princípio de não contradição em Aristóteles. Pois a tese de Espinosa parece vir
invalidar o princípio de não contradição aristotélico que diz mais ou menos:
uma coisa não pode ser e não ser ao mesmo tempo e sob o mesmo aspecto (Metafísica, 1005 b 19). Só
que, e isso é que é surpreendente e nos parece assinalável, é que a Substância
quando considerada sob o atributo do pensamento, pode, ao mesmo tempo, ser
considerada segundo o atributo da extensão. E reciprocamente. Donde uma estranha simultaneidade dúplice, que não poderemos aqui analisar. Talvez possamos avançar que esta problemática reside na própria complexidade da linguagem enquanto tal...
E talvez muitos dos detractores de Espinosa julgassem encontrar na sua tese uma contradição, sendo segundo eles Natureza ou Deus (nesta já estranha identificação panteísta e monista), uma única e mesma Substância, considerada segundo dois atributos (ou aristotelicamente: dois aspectos).
E talvez muitos dos detractores de Espinosa julgassem encontrar na sua tese uma contradição, sendo segundo eles Natureza ou Deus (nesta já estranha identificação panteísta e monista), uma única e mesma Substância, considerada segundo dois atributos (ou aristotelicamente: dois aspectos).
Se no escólio da
proposição VII da Parte 3 encontramos um nexo com a Parte II, proposição VII e
o respectivo escólio, será que não poderemos ter como ponto decisivo a
simultaneidade nestas reflexões de Espinosa? Leia-se pois o que se segue mais
adiante no escólio da proposição VII da Parte 3 após o filósofo afirmar que
“ninguém, na verdade, até ao presente, determinou o que pode o Corpo “: De onde
se segue que, quando os homens dizem que tal ou tal acção do Corpo é produzida
pela Alma [Mente], que sobre o Corpo exerce um império, não sabem o que dizem e
não fazem mais que confessar, com palavras especiosas, que ignoram, sem disso
se admirarem, a verdadeira causa dessa acção. Mas, dir-se-á, conheça-se ou
ignore-se por que meios a Alma move o Corpo, sabe-se, no entanto, pela
experiência, que se a Alma não tivesse aptidão de pensar, o Corpo seria inerte.
Além disso, sabe-se, pela experiência, que igualmente está apenas na potência
da Alma falar e estar calado, e muitas outras coisas que, por essa razão, se
julga dependerem da decisão da Alma. Mas, no que toca ao primeiro ponto, pergunto-lhes se a experiência nos não ensina igualmente
que, reciprocamente, se o Corpo é inerte, a Alma é, ao mesmo tempo, privada da
aptidão de pensar? Com efeito, quando o Corpo está em repouso no sono, a Alma
permanece adormecida com ele e não tem o poder de pensar como durante o estado
de vigília.”
Aliás, sabemos que
em física ‘inércia’ é a resistência que um corpo oferece a qualquer alteração
do seu estado de repouso ou movimento. Inércia é, pois, outra forma de
movimento, outra forma de força, por assim dizer.
O que é extraordinário
é que o sentido de inércia do Corpo invocado por Espinosa induz-nos a pensar
que nessa mesma inércia, ele move-se e se move, movendo a Alma na medida em que
ela não pensa ou não tem o poder de pensar. O espanto é que se trata de uma
troca de efeitos em que quando pensamos tratar-se ou de estarmos a considerar o
corpo, estamos ou podemos estar, já, sempre já, e por isso, ao mesmo tempo, a considerar a alma, e
vice-versa. E é por isso que são uma e mesma coisa como se indica no passo
seguinte, e são modos (Mente ou Alma e Corpo) dos dois atributos (Pensamento e
Extensão) de uma única e mesma Substância, Deus
sive Natura: “(…) a Mente e o Corpo são uma
só e mesma coisa que é concebida, ora sob o atributo do Pensamento, ora sob
o da Extensão” (Ética, Parte 3,
Proposição 2, Escólio)
Daqui só poderemos
levantar uma hipótese. Quando se supõe ser da Alma a decisão de mover o Corpo,
já, de outro modo, mas, precisamente, ao mesmo tempo, podemos supor ser o Corpo
a decidir sobre a Alma. Digamos que, de outro modo, nesse momento, virtualmente
a decisão lhe cabe, precisamente ao corpo.
“Resumindo: enquanto
a alma cartesiana nada tem a ver com o corpo, a mente espinosana define-se por
ele. Enquanto em Descartes a alma é pensamento sem objecto a mente para
Espinosa é pensamento sobre ou de um objecto.” (Maria Luísa
Ribeiro Ferreira, op.cit., p.116).
Dava-se aqui a volta
a uma linha cartesiana que não podemos agora analisar.
Nota: Este estudo carece de
continuação, dadas algumas fragilidades de análise.
Referências bibliográficas:
Bento de Espinosa, Ética, trad. Joaquim de Carvalho,
Joaquim Ferreira Gomes, António Simões, Introdução e notas de Joaquim de
Carvalho, Lisboa, Rel. D´Água Ed., 1992.
Spinoza, Éthique, trad. et
notes Charles Appuhn, Paris, Flammarion, 1988.
Maria Luísa Ribeiro
Ferreira, Uma Meditação de Vida – Um diálogo com Espinosa, Esfera do Caos
Editores, 2013.
Pierre-François
Moreau, Spinoza, trad. Miguel Serras
Pereira e Ana Luísa Faria, Lisboa, Dom Quixote, 1987.
Gilles Deleuze, Spinoza,
philosophie pratique, Minuit, 2003.