Fonte do texto:
Num texto escrito a quente, só posso dizer
uma ou duas coisas que me impressionaram de maneira inexplicável, mas
anunciando qualquer coisa de absolutamente novo que iria ou estava a acontecer,
apesar dos meus tenros 11 anos de idade. Foi assim, resumindo esse dia. De
manhã acordei com os gritos dos meus colegas e amigos vizinhos da minha idade
do largo que cruzava a Rua do Zaire, onde morava, com a rua da Guiné, no antigo
Bairro das Colónias. Mas um desses gritos ou sinais codificados que emitíamos
para nos comunicarmos à maneira de sons de Tarzan, em vez de telemóveis, vinham
de súbito de um dos meus amigos, o Paulo Rocha – que atravessava o largo no
cruzamento daquelas duas ruas – qual Obélix e seu grande pedregulho maior do
que ele. Esse “pedregulho” era nem mais nem menos que um enorme pacote de pão embrulhado
em papel próprio para o efeito com uma cor de atijolada.
Ele atravessava nesse momento o largo quando
assomei à janela do meu quarto e abri de imediato a janela para saber o que se
passava. Do outro lado da rua acenava da varanda do seu terceiro andar um outro
amigo, o Luís Leal, com os tais gritos de código. É então que, acto contínuo,
volto a olhar para o “Obélix”. Nesse preciso momento ele diz-me estas palavras
que, não sei bem porquê, me arrepiam ainda como uma revelação quando as
recordo: “Não há aulas, vai haver uma Revolução”. Aquele enorme embrulho era um
sinal que curiosamente me fez pensar, ou supor, qualquer coisa. Eram as
reservas a que todos naquele momento recorriam como salvaguarda para dias de
eventual escassez e privação. Daí as filas na padaria e na mercearia. Aquilo
bateu-me não sei como. Como é que com aquela idade eu poderia percepcionar a
realidade desse comunicado, dessa transmissão, desse evento? E no entanto,
lembro-me que algo se transfigurou em mim. Evidentemente que não poderei omitir
o facto bem satisfatório de não haver aulas. Mas qualquer coisa havia mais do
que isso. Reentro no quarto, enquanto o outro da varanda acenava, e corro pela
casa fora. Passo no quarto de toilette
da minha mãe, onde ela prepara a cosmética, própria dos cuidados femininos de
uma jovem mulher no começo de mais um dia. Estaco, e repito-lhe as palavras do
Rocha (o Obélix): “Não há aulas, vai haver uma Revolução”. Com um ar e um tom
de voz sóbrios e apreensivos, ela responde qualquer coisa assim, mantendo-se
frente ao espelho: “Nada de brincadeiras, isto é uma coisa muito séria”.
Desatei a correr pela casa fora mas mais apreensivo, e contente, claro está,
por não haver aulas.
Lembro-me que passadas 1 ou 2 horas vejo o
meu pai a meio das escadas deixando-me mantimentos (frangos, mercearias e toda
uma série de provisões para o que desse e viesse). Voltando de novo à rua para
mais abastecimentos.
Lembro-me também que passava uma corrente de
união e cumplicidade mais forte entre todos nós. Depois foi assistir na
televisão às primeiras horas e durante o dia ao desenrolar de toda uma série de
coisas que eu não percebia bem, ou não percebia mesmo
nada. À tarde, deu na televisão um episódio da famosa série da época: Daktari. Para descomprimir, com certeza.
Mas a sensação do novo, da abertura para qualquer coisa outra, isso é
inesquecível. Depois, foi assistir ao cerco do Silva Pais, o chefe da Pide, que
morava na Rua de Moçambique, mesmo ali, a 50 metros, com os Chaimites e a
multidão estremecendo e enchendo até às paredes toda a rua e querendo assaltar
e travar a viatura com paus, já era noite. Depois ainda, o grande primeiro 1º
de maio após o 25 de Abril de 1974. Lembro a Avenida Almirante Reis cheia de
gente, ao ponto de nos pormos em cima das caixas da electricidade para vermos
de alto. Com efeito, a lentidão daquela massa imponente de gente descendo a
Avenida, parecia um mar de lava ou magma vulcânica que tudo podia varrer e
derreter à sua frente. Tudo aquilo impunha respeito. Todo o que naquele momento
se atrevesse a contrariar, a ir na contracorrente daquele inesquecível mar de
gente que tinha despertado para qualquer coisa de extraordinário, deixaria de
ter ali lugar. Por exemplo, poder falar e cantar, poder dar liberdade à
palavra, às palavras que, com elas, toda a força que estava esquecida se abria
agora como um mundo pleno de novidades e imprevisibilidades e também como um
campo de acção a construir.
Luís de Barreiros Tavares 17/04/2014
Sem comentários:
Enviar um comentário