sábado, 19 de abril de 2014

25 de Abril de 1974: Recordações de um adulto de quando era criança e também recordou.



Fonte do texto:









Num texto escrito a quente, só posso dizer uma ou duas coisas que me impressionaram de maneira inexplicável, mas anunciando qualquer coisa de absolutamente novo que iria ou estava a acontecer, apesar dos meus tenros 11 anos de idade. Foi assim, resumindo esse dia. De manhã acordei com os gritos dos meus colegas e amigos vizinhos da minha idade do largo que cruzava a Rua do Zaire, onde morava, com a rua da Guiné, no antigo Bairro das Colónias. Mas um desses gritos ou sinais codificados que emitíamos para nos comunicarmos à maneira de sons de Tarzan, em vez de telemóveis, vinham de súbito de um dos meus amigos, o Paulo Rocha – que atravessava o largo no cruzamento daquelas duas ruas – qual Obélix e seu grande pedregulho maior do que ele. Esse “pedregulho” era nem mais nem menos que um enorme pacote de pão embrulhado em papel próprio para o efeito com uma cor de atijolada.
Ele atravessava nesse momento o largo quando assomei à janela do meu quarto e abri de imediato a janela para saber o que se passava. Do outro lado da rua acenava da varanda do seu terceiro andar um outro amigo, o Luís Leal, com os tais gritos de código. É então que, acto contínuo, volto a olhar para o “Obélix”. Nesse preciso momento ele diz-me estas palavras que, não sei bem porquê, me arrepiam ainda como uma revelação quando as recordo: “Não há aulas, vai haver uma Revolução”. Aquele enorme embrulho era um sinal que curiosamente me fez pensar, ou supor, qualquer coisa. Eram as reservas a que todos naquele momento recorriam como salvaguarda para dias de eventual escassez e privação. Daí as filas na padaria e na mercearia. Aquilo bateu-me não sei como. Como é que com aquela idade eu poderia percepcionar a realidade desse comunicado, dessa transmissão, desse evento? E no entanto, lembro-me que algo se transfigurou em mim. Evidentemente que não poderei omitir o facto bem satisfatório de não haver aulas. Mas qualquer coisa havia mais do que isso. Reentro no quarto, enquanto o outro da varanda acenava, e corro pela casa fora. Passo no quarto de toilette da minha mãe, onde ela prepara a cosmética, própria dos cuidados femininos de uma jovem mulher no começo de mais um dia. Estaco, e repito-lhe as palavras do Rocha (o Obélix): “Não há aulas, vai haver uma Revolução”. Com um ar e um tom de voz sóbrios e apreensivos, ela responde qualquer coisa assim, mantendo-se frente ao espelho: “Nada de brincadeiras, isto é uma coisa muito séria”. Desatei a correr pela casa fora mas mais apreensivo, e contente, claro está, por não haver aulas.
Lembro-me que passadas 1 ou 2 horas vejo o meu pai a meio das escadas deixando-me mantimentos (frangos, mercearias e toda uma série de provisões para o que desse e viesse). Voltando de novo à rua para mais abastecimentos.
Lembro-me também que passava uma corrente de união e cumplicidade mais forte entre todos nós. Depois foi assistir na televisão às primeiras horas e durante o dia ao desenrolar de toda uma série de coisas que eu não percebia bem, ou não percebia mesmo nada. À tarde, deu na televisão um episódio da famosa série da época: Daktari. Para descomprimir, com certeza. Mas a sensação do novo, da abertura para qualquer coisa outra, isso é inesquecível. Depois, foi assistir ao cerco do Silva Pais, o chefe da Pide, que morava na Rua de Moçambique, mesmo ali, a 50 metros, com os Chaimites e a multidão estremecendo e enchendo até às paredes toda a rua e querendo assaltar e travar a viatura com paus, já era noite. Depois ainda, o grande primeiro 1º de maio após o 25 de Abril de 1974. Lembro a Avenida Almirante Reis cheia de gente, ao ponto de nos pormos em cima das caixas da electricidade para vermos de alto. Com efeito, a lentidão daquela massa imponente de gente descendo a Avenida, parecia um mar de lava ou magma vulcânica que tudo podia varrer e derreter à sua frente. Tudo aquilo impunha respeito. Todo o que naquele momento se atrevesse a contrariar, a ir na contracorrente daquele inesquecível mar de gente que tinha despertado para qualquer coisa de extraordinário, deixaria de ter ali lugar. Por exemplo, poder falar e cantar, poder dar liberdade à palavra, às palavras que, com elas, toda a força que estava esquecida se abria agora como um mundo pleno de novidades e imprevisibilidades e também como um campo de acção a construir.

Luís de Barreiros Tavares  17/04/2014

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