Por vezes, a
aparente secura da sua escrita, por muitos acusada de pouco ou não-poética –
misto de prosa e poesia, entre o pensamento abstracto e o poético – é o que
abre para o que chamarei uma terra de
ninguém. Nesta terra de ninguém entra o mundo abstracto e geométrico de
mapas e sinais mágicos: «desde que,
perdida enfim a fé no esforço, me quero abandonar ao extravio, um termo
clássico [plácido], um adjectivo espacial e sóbrio, fazem-me
de repente, como uma luz de sol, ver clara deante de mim a página escripta
dormentemente, e as lettras da minha tinta da caneta são um mappa absurdo de
sinaes mágicos» (L.d.D. II p.37).
Por outro lado, as
supostas aridez, secura, nulidade, neutralidade, quer dizer, «o signo do insignificante» das
personagens, podem ser compreendidos num belo passo de um livro de Eduardo
Lourenço que exemplifica a «única
personagem» que é o «acto da escrita»
enquanto elemento decisivo: «Na verdade,
por mais surpreendente que seja o olhar – um olhar absolutamente neutro – que
Bernardo Soares pousa sobre os telhados de Lisboa, sobre a face quotidiana e
sobrenatural do mais insignificante dos companheiros de mesa ou de escritório,
sobre a própria vida -, oscilando incessantemente entre a consciência da sua
nulidade e a exaltação quase feliz da sua pouca existência, a única personagem
deste verdadeiro-falso diário é o acto da escrita. Na escrita, o signo do
insignificante subverte-se inexplicavelmente e a extraordinária irrealidade das
coisas torna-se real» (Eduardo Lourenço, O Lugar do Anjo, p.105).
Esta parada, este
contraponto entre «o acto da escrita»
e a «própria vida», nas palavras de
Eduardo Lourenço, cria um clima, uma espécie de região. Há uma pequena
distância. Uma certa indiferença inscrita no cálculo e no cuidado do «acto da escrita». Essa distância é uma
espessura ou um intervalo: «Quantos sou?
Quem é eu? O que é este intervallo que há entre mim e mim?» (L.d.D. I, p.25). Intervalo que pode
deslocar-se através do chamado sujeito da escrita, da sua vida, da realidade,
do sonho, e do espaço-tempo do leitor. Digamos uma espessura do invisível.
Pessoa não escrevia
só rápida e automaticamente, escrevia também pausadamente. A lentidão da
escrita a) e a lentidão do sujeito poético b), se assim se pode dizer,
cruzam-se e produzem um efeito de lugar indeterminado onde o imaginário deixa
de limitar-se ao espírito do leitor e ao espírito do escritor. Exemplo para a):
«Escrevo demorando-me nas palavras»
(algures no L.d.D.). Exemplo para b):
«Vou num carro electrico, e estou
reparando lentamente, conforme é meu costume, em todos os pormenores das pessoas
que vão adeante de mim. Para mim os pormenores são coisas, vozes, lettras (ou
frases). Neste vestido de rapariga que vae em minha frente decomponho o vestido
em o estofo de que se compõe, o trabalho com que o fizeram [...]» (L.d.D, I, 163, p.184).
Por outro lado, o
cuidado e a demora da escrita reenviam para uma espécie de exactidão que não é
propriamente emissora de sentidos pretensamente verdadeiros e exactos. É antes
a exactidão do corte da ‘pena’ que responde mas também emite num espaço ressoante
que se vai determinando numa escrita que parece estar a escrever-se. A escrita
cruza-se com o gesto físico de escrever. Noutra perspectiva Eduardo Lourenço
escreve citando Bernardo Soares: «O
sentido é o Verbo exacto: “nada há de
real na vida que o não seja pelo simples facto que foi bem escrito”» (Op.cit, p.51). O «bem escrito» não é o
mero escrever bem. O bem escrito é,
por exemplo, o efeito de um «adjectivo» no «sítio exacto» desencadeando uma
alteração da «paisagem» enquanto «escrita do ser» (Ibid, p.51): «[...] basta que
um adjectivo, colocado no sítio exacto, ilumine a paisagem como um relâmpago
para que o não-ser do mundo se suspenda e se transforme em escrita do ser»
(Ibid, p.107). Por outras palavras, a
exactidão faz-se não por uma colagem ou adequação, mas pelo efeito, digamos, de
segmentação da escrita. Esta segmentação, este recorte cuidado, opera uma
espécie de desdobramento resultante de um cruzamento das sensações do trabalho
da escrita, do acto de escrita, dos
movimentos, das letras, das palavras, das paisagens, do corpo e dos espaços
brancos.
Quer dizer, em
Bernardo Soares o trabalho da escrita é um trabalho no que se escreve e se
trabalha ao escrever. Descreve-se o processo de como a própria escrita se vai des-crevendo ao escrever enquanto gesto
corporal do autor: «As phrases que nunca
escreverei, as paisagens que não poderei nunca descrever, com que clareza as
dicto, à minha inercia e as descrevo na minha meditação, quando recostado, não
pertenço, senão longinquamente, à vida. Talho phrases inteiras [...]» (L.d.D., II, 368, p.108). O espantoso é
que, neste processo, Soares ao mesmo tempo (ou quase?) está a descrever
paisagens em escrita na medida em que, ao escrever sobre a sua impossibilidade,
desencadeia outras paisagens: «Em certa
altura da cogitação escripta, já não sei onde tenho o centro da attenção – se
nas sensações dispersas que procuro descrever, como a tapeçarias incognitas, se
nas palavras com que, querendo descrever a propria descripção, me embrenho, me
descaminho e vejo outras cousas» (Ibid., 304, p.307).
Mas este movimento é
só do lado da escrita? E de que escrita se está a falar? A escrita pessoana é
também o jogo espácio-temporal de memória. Porque é que é um jogo
espácio-temporal de memória? Em que sentido se fala aqui de 'memória'? O poeta
produz na leitura com os movimentos das sensações e as sensações dos movimentos
um processo de retrojecção e projecção espácio-temporal. Um jogo não só de
passado para o presente e vice-versa mas, creio poder dizer, para o futuro. É por
isso que o leitor se sente projectado para atmosferas que não são datadas. Ou
antes, são uma intersecção de tempos. Elas catapultam-no para um futuro ou um
tempo indeterminados em relação ao nosso presente e ao presente que Pessoa
viveu, fundindo-os no entanto imprevisivelmente. João Botelho parece ter
intuído esse efeito chamando-o «distorção
do tempo» (disse-o numa entrevista) e transformando-o em linguagem
cinematográfica no seu excelente filme recentemente realizado - «Filme do Desassossego» (2010) - onde
consegue recriar em cinema um Bernardo Soares. Pena é que não tenha captado o pautamento, a demora do escrever de
Soares («escrevo demorando-me nas
palavras») focando somente o seu carácter rápido e automático. Que me
perdoem os entendidos, mas na minha ignorância sobre estas matérias creio que a
forma extraordinária como Botelho move lentamente a sua câmara, na esfera da
escrita cinematográfica, parece-me compensar de alguma maneira essa falta.
Bibliografia:
Pessoa, F., (Obras
de Fernando Pessoa) Livro do Desassossego,
por Bernardo Soares, edição de Richard Zenith, Assírio & Alvim, Lisboa,
1998.
Lourenço, E., O
Lugar do Anjo, Ensaios pessoanos, Gradiva, Lisboa, 2004.
Texto publicado em:
Luís Tavares, (2011), 2º semestre, «Pessoa: A escrita e a
terra de ninguém», Nova Águia, nº8, pp. 161-162.
Agradeço a revisão deste texto à Dra. Elsa Rodrigues dos Santos
Agradeço a revisão deste texto à Dra. Elsa Rodrigues dos Santos
Este texto é parte de um outro mais extenso:
Na foto: Pessoa com o escritor Costa Brochado no café Martinho da Arcada.
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