domingo, 4 de agosto de 2013
Breve excerto sobre a "Odisseia" de Homero - por José Pedro Serra
"No caso de Calipso, porém, há algo de terrivelmente diferente - o desejo de imortalidade presente em qualquer amor é acrescido pela possibilidade, de facto, de libertar o mortal amante da velhice e da morte, mas para o conseguir, para mergulhar na eterna e soralenga beatitude dos deuses é necessário esquecer, esquecer tudo, esquecer a Pátria e a família, esquecer Penélope e os amigos, esquecer os rios e os montes da sua ilha, visível ao longe. De todos os perigos por que passa Ulisses este é o maior: o esquecimento. No país dos Lotófagos e em Ea, vencera-o, mas nunca o esquecimento apresentara esta contraface: a imortalidade. Talvez por ser na consciência da morte que as coisas humanas ganham o seu mais fino recorte, não pode o homem nem deixar de aspirar à eternidade, como perfeita aspiração do que à perfeição escapa, nem desperdiçar a morte pela sincera verdade que à sua vida oferece. Desenham-se aqui os contornos do dilema de Ulisses: não pode, não quer recusar a imortalidade, mas essa imortalidade a que aspira o humano gesto e de que a glória é simples sombra não pode aniquilar o vivido da vida, remetê-lo para o limbo do nada, como se nada tivesse sido, mas ao contrário tem de integrar o que os deuses e o destino foram dando, tem de redimir os incompletos e dispersos fragmentos vividos, enfim, não pode desprezar de cada um a sua história, mas sim elevá-la à plenitude e à perfeição. Sem tempo e sem memória, quem é Ulisses? Perdendo-se este herói, o que significa a sua imortalidade? Na recusa de Ulisses esboça-se um trágico para doxo: querer a imortalidade a que aqui e agora se aspira, a promessa de eternidade que neste tempo se abre, a plenitude e a perfeição a que o coração e a inteligência, embora incompleta e defeituosamente, intentam, mas sendo a vida fragmento imperfeito, como conseguir ou aceitar aquelas sem trair estas, como metamorfosear em perfeita unidade o que é lacunar e mutilado sem esquecer ou desprezar a finitude das dores e das alegrias, dos amores e dos gestos? É como ser mortal que o homem aspira à imortalidade, mas como aceitar a imortalidade sem fazer perder a identidade humana, fazendo-a explodir por excesso? Se a imortalidade redimisse o que de fragmentado há na vida humana de forma a integrá-la na perfeição, ideia só obscuramente percebida e dita, Ulisses aceitá-la-ia certamente, mas deste modo, o convite de Calipso é inaceitável. Por maiores que sejam os perigos, por mais graves que sejam as provações, o destino de Ulisses é, pois, partir, se o carácter pernicioso do amor da ninfa, que o retém na ilha, se transfigurar, pela atitude heróica do filho de Laertes, num sentimento benéfico que lhe permita a partida, pese embora todas as diferenças entre Ogígia e Ítaca, entre Calipso e Penélope. «Poderosa deusa, não te irrites comigo. Ao vê-la, sei bem que a prudente Penélope não é semelhante a ti, nem em beleza, nem em estatura; é uma mortal e tu não conhecerás nem a velhice nem a morte. Apesar disso, todos os dias desejo voltar a minha casa e ver o dia do meu regresso.» E de deusa terrível, tal como Circe, Calipso, obedecendo às mais elevadas ordens de Zeus, muda-se em protectora do regresso de Ulisses."
José Pedro Serra, «Da fidelidade a Penélope ou do Amor à Viagem», in Mito e Literatura, org. Victor Jabouille, José Pedro Serra, Frederico Lourenço, Paulo Alberto, Fernando Lemos, Lisboa, Inquérito, 1993, pp. 45-62.
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