Figueiredo Sobral
(1926-2010)
in memoriam
Celebração do sagrado
"Se uma exposição ou, digo mais, uma obra se não
impuser pela sua própria presença como bisonte de Altamira, não quero nada
acrescentar."
F.Sobral
"Sou um surrealista barroco"
F.Sobral
1. Conheci Figueiredo Sobral nos finais dos anos 90. Estava
eu a iniciar-me na pintura já com algumas experiências intervaladas -
principalmente desenho - de há 20 anos até então. Foi nessa altura que o
convidei a ir a minha casa para visitar o meu atelier. Éramos praticamente
vizinhos, ele morava na rua de Angola e eu na do Zaire na zona dos Anjos em
Lisboa. Quiseram os caminhos que só nos encontrássemos naquela data. Desde
então ficámos amigos. A partir daí encontrávamo-nos com frequência, desde o
simples café até às patuscadas e mariscadas. Na troca de impressões sobre arte
pude testemunhar ser um homem de sólida cultura artística, desde os antigos até
às vanguardas. Era também habitual jogarmos umas partidas de xadrez em minha
casa ou em sua juntamente com outros amigos. A estes encontros e saídas
juntava-se muitas vezes a sua mulher, a Elsa (Elsa Rodrigues dos Santos).
Nunca me esquecerei de algumas indicações e segredos de
ofício que me foram transmitidos por ele logo que observou os meus trabalhos.
"Vagueia-se o olhar um tanto geometricamente em linhas até se encontrar um
ponto virtual a partir do qual se redelineiam outras linhas. E a obra está a
nascer". Foi mais ou menos por estas palavras que um dia me descreveu o
difícil processo de enfrentamento da tela branca.
Se era costume ser tratado no respeitante à sua produção
plástica por 'Mestre Figueiredo Sobral' nos círculos artísticos e intelectuais
que frequentava, pode dizer-se que também revelou mestria nas letras (crítica,
textos livres sobre arte, escrita para teatro e poesia; ver artigo no DN,
15/8/2010 por A.Lobato Faria). Foi sócio da SLP (Sociedade da Língua
Portuguesa). Não deixarei por isso de o citar ilustrando assim a sua arte da
palavra. Não esquecendo o habitual uso de poemas e palavras nas suas pinturas.
Aguardemos com expectativa a publicação do seu inédito de
poemas "O Touro e a sua legenda". Honra-me referir que chegou a
escrever, por vontade própria, um interessante texto para catálogo de uma
exposição individual que realizei.
2. Mas é sobre a sua obra plástica que este meu texto irá
incidir. Sendo que a palavra e a imagem mantêm laços inauditos e secretos.
Quero destacar nela alguns aspectos que me parecem muito interessantes.
Começo pelos seus espantosos "Cristos" que evocam
o primevo, o inaugural da expressão plástica desta figura. Como se viessem dos
primórdios do cristianismo, quer dizer, do espírito elemental dos chamados
"primeiros cristãos", traduzindo o despojamento e a desolação do
início da manifestação da imagem cristã (ver nota no final).
Evidentemente que muitas leituras, muitas vertentes se
manifestam na obra plástica de Figueiredo Sobral. Entre outras, por exemplo, os
extraordinários serviços e peças de chá, trabalhados em pintura com o relevo
tão característico de grande parte da sua criação. Essas chaleiras, xícaras e
bules, na sua objectualidade, por outras palavras, na sua força objectal
ontológica lembram, por vezes, embora noutros materiais expressivos, os
objectos nas pinturas a óleo do artista italiano Giorgio Morandi (1890-1964).
Em ambos vagando e vogando numa leve distorção animada cujo despojamento é uma
espécie de vazio que enche o espaço das coisas.
3. As suas linguagens oscilam e atravessam o sagrado o
profano, o angélico e até o demoníaco. Há no seu trabalho um fascínio pelo que
se poderia chamar a liberdade da magia. Daí as feiticeiras, os estranhos gatos,
os vultos de demónios, as sombras, etc. Mostrando assim a inquietação e a
complexidade do mundo e dos humanos: "Estive e estou louco por pintar
todos os quadros do mundo, sem copiar nenhum como construção do vertiginoso
mosaico do fascinante infinito matemático que somos" (F. Sobral).
Por vezes aquilo que à primeira vista se nos pode afigurar
como expressividade um tanto tosca e mesmo um pouco grotesca, vem corroborar a
sua atenção ao primordial e ao primitivo. Mas, em contrapartida, há a percepção
do seu delicado gesto pictórico com o estilete e o pincel num traço, num
contorno como, por exemplo, nas suas muitas "meninas". Meninas em
aguarelas, em pastel, em desenho, em escultura e em pintura. Figueiredo Sobral
tinha a consciência da tensão e do jogo dessas forças. Por isso não lhe
agradava um "demasiado perfeccionismo", expressão que um dia usou quando
visitámos uma exposição que lhe parecia recair nessa "obsessão pelo
acabamento final".
O papel de Eros, ou seja, a força erótica é patente naquelas
"meninas" que, ora se manifestam na sua nudez e condição natural, ora
nas suas metamorfoses. É o caso de uma bela e fina estatueta vertical em massa
pétrea com as habituais patines que um dia vira em sua casa e que se
intitulava: "Menina cavalo".
A obra está em tumulto, brotando num espaço que de uma
maneira ou de outra delimita mas que o artista quer romper. Daí os Proteus, e
os "míticos heróis", seres de metamorfose, de multiplicação e
simulacros primitivos mitológicos que tentam escapar ao espaço da obra entrando
em jogo e em tensão vital com o espaço espiritual do autor: "Este
igualmente o oceano que me tenta para lá da aventura cumprida pelos míticos
heróis de onde emergimos como seus simulacros, reencarnados no ímpeto do desejo
criativo das substâncias puras sem morte" (F. Sobral).
Múltiplos rostos, relógios, ícones e asas. O principial, a
multiplicação das coisas e dos seres, e o tempo brotando na força genesíaca e
do caos. Fugindo mas jogando com a estaticidade e condição da linguagem
pictórica e escultórica: "A figuração/transfiguração do
"quantus" proteuco, isto é, o deus da transformação, o deus dos imensos
rostos repartidos por variadíssimos universos duma linguística das formas
impossíveis, dos fractais e suas estranhas matemáticas, eis o continente e o
conteúdo onde me embrenho" (F. Sobral).
4. O abstracto espreita também no seu trabalho, quer em
linhas geométricas nas aguarelas e colagens, quer no modo emblemático de certas
telas sobrepostas ou figuras geométricas em relevo e texturas invocando
estranhos e misteriosos redutos de chegadas e partidas.
Recordo-me de há uns anos ver uma exposição sua na qual
constavam quadros um tanto enigmáticos. Alguns de pequenas dimensões, sugerindo
talismãs ou portais, selados mas ao mesmo tempo paradoxalmente abertos. Por um
lado, pela força que irradiavam para fora, para o espaço em volta, e por outro,
por veicularem uma espécie de passagem que transformava o próprio dentro do
quadro como um portal para outro fora. Alguns dos tons utilizados eram
'bordeaux' e castanhos fortes, bem como uns cinzas. Uma asa ou um ícone aqui ou
ali espreitavam. Tempo, espaço, nascimento, morte, transformação frequentam o
seu processo criativo. Os paradoxos do antes e do depois sobrevoam não sem
inquietação a sua obra: "É esta a viagem que escolho na vertigem da
descoberta de tornar conhecido o que antes da revelação era inexistente, como
pertencendo a um outro campo virtual oferecido à encarnação de ícone"
(F.Sobral).
O elemento barroco ("sou um surrealista barroco")
nos dourados e metalizados deve jogar-se com a outra componente, a das sombras,
das cores mais austeras e baças que Figueiredo Sobral usou em contraponto. Quer
na alternância de várias obras confrontadas entre si, quer no espaço intrínseco
de cada uma enquanto tal. Só assim se poderá avaliar a força de certos
contrastes. Por isso será importante ter-se uma ideia das várias fases da sua
produção ao longo das décadas que dedicou às artes plásticas. Esperamos que um
dia se possa fazer um inventário em catálogo dessas diversidades para não se
cair em reducionismos de etiqueta.
"Ah, artistas, meus companheiros, como poderemos roubar
a morte à vida senão pelas novas verdades que enfrentam as procelas que Pandora
aprisiona na sua caixa de mistérios hiantes! "
(F.Sobral)
Figueiredo Sobral era um amante da vida. Bem hajas Zé!
Noutros mundos (lá), que já adivinhavas (cá) com os teus Proteus.
Luís Tavares
Artista plástico.
Licenciado em Filosofia. Agosto de 2010.
Este texto foi
publicado no site da Sociedade da Língua Portuguesa:
Curriculum artístico de Luís Tavares:
Nota. Não
sendo um entendido na matéria, gostaria de chamar a atenção para eventuais
críticas a um determinado ponto, que é o seguinte. Faz-se referência
neste texto aos cristãos primitivos ou primeiros cristãos. Sabe-se que não se
cultivava a imagem de Cristo na Cruz. As suas linguagens artísticas consistiam
em símbolos como a cruz, o peixe, Cordeiro Pascal e um Bom Pastor ilustrando
reenviando a Jesus, e outros ícones representando santos e anjos, etc. Poderá
parecer um erro ao fazer alusão ao cristianismo primitivo com ícones de Cristo
na Cruz. Todavia, a ideia é mais a de estabelecer um paralelo com uma certa
criação de formas um tanto toscas adoptadas propositadamente por Figueiredo
Sobral. Assim, a ideia que nos levou a encontrar esta relação quase
pré-icónica, foi a de estabelecer pontes, entre estas formas meio primárias e
toscas, como formas nascentes, e o que ainda não existia como ícone, quer dizer
com a inexistência da figura de Cristo na Cruz naquele período histórico,
nomeadamente referindo-nos à arte nas famosas catacumbas. Donde a expressão usada, “desolação”,
tendo a ver com a vida que levavam naqueles sítios que, embora fechados,
eram desolados.
Na primeira exposição individual de Luís Tavares no IPJ
(Instituto Português da Juventude) em 1999.
Luís Tavares e Figueiredo Sobral
Texto de Mestre Figueiredo Sobral sobre a pintura de Luís Tavares:
Luís Tavares é um jovem que se iniciou há algum tempo. Atraído pelas técnicas mistas, na boa companhia do falecido Pollock, fascina-o o gestualismo, incorporando as tintas, sem abandonar leituras figurativas, em jogos cromáticos.
Neles afiguram-se perfis de animais pré-históricos ou motivos taurinos, inspirados nas pinturas rupestres, descobertas nas cavernas europeias ou, em Altamira, no seu célebre Bisonte.
A linha definidora surge aqui no desejo duma escrita quase hieroglífica, geralmente num traço de cor forte, vermelho, azul ultramarino e prússia, sobre fundos amarelos. Escrita que busca o primordial na História antiga, mas rejuvenesce-se no moderno fauvismo.
As cabeças fossilizadas dos antigos uros, isto é, os primitivos touros, brotam dos deserto inventivos, corporizando-se em matérias enriquecidas e ferramentas diversificadas, compondo a arquitectura dos espaços das suas telas.
A magia das máscaras, os mitos orientais ou o mistério do nascimento são outros dos temas que enobrecem o seu imaginário artístico.
Figueiredo Sobral (1999)
Texto publicado no catálogo da exposição individual de Luís Tavares na galeria municipal de Arruda dos Vinhos (2001).
Texto de Mestre Figueiredo Sobral sobre a pintura de Luís Tavares:
Luís Tavares é um jovem que se iniciou há algum tempo. Atraído pelas técnicas mistas, na boa companhia do falecido Pollock, fascina-o o gestualismo, incorporando as tintas, sem abandonar leituras figurativas, em jogos cromáticos.
Neles afiguram-se perfis de animais pré-históricos ou motivos taurinos, inspirados nas pinturas rupestres, descobertas nas cavernas europeias ou, em Altamira, no seu célebre Bisonte.
A linha definidora surge aqui no desejo duma escrita quase hieroglífica, geralmente num traço de cor forte, vermelho, azul ultramarino e prússia, sobre fundos amarelos. Escrita que busca o primordial na História antiga, mas rejuvenesce-se no moderno fauvismo.
As cabeças fossilizadas dos antigos uros, isto é, os primitivos touros, brotam dos deserto inventivos, corporizando-se em matérias enriquecidas e ferramentas diversificadas, compondo a arquitectura dos espaços das suas telas.
A magia das máscaras, os mitos orientais ou o mistério do nascimento são outros dos temas que enobrecem o seu imaginário artístico.
Figueiredo Sobral (1999)
Texto publicado no catálogo da exposição individual de Luís Tavares na galeria municipal de Arruda dos Vinhos (2001).
Sem comentários:
Enviar um comentário