“A leitura de ”é/não é” a partir de
Parménides, B2”
José Trindade
Santos
Universidade
Federal da Paraíba
Centro de
Filosofia da Universidade de Lisboa
RESUMO
Interpreto
antepredicativamente o argumento de Parménides na “verdade” do Da natureza. Chamo ‘antepredicativa’ a
uma interpretação que, explorando a ausência de sujeito e predicado em “é/não
é” (B2.3,5), lê os dois caminhos como expressões autoreferenciais, negando às
formas verbais usadas o valor de cópulas. Da incognoscibilidade de “que não é”
(B2.6-8a) resulta a “decisão de abandonar esse ‘não-nome’ (anônymon: B8.17) como via de investigação” (B8.17-18a), “deixando”
‘que é’ (B8.2) como o único [‘nome’]” (B8.1b-2a) que “pode ser pensado”
(B8.18b).
Nesta interpretação,
‘ser’ não é objeto de ‘pensar’, nem ‘pensar’/‘pensamento’ a faculdade que capta
o “ser” (B3, B8.34), mas o estado cognitivo infalível em que “pensamento,
pensar e pensado são” (B6.1a). A leitura antepredicativa de Parménides deixou
sinais em textos de Platão, Górgias e Protágoras, alguns anunciando a captação
da antepredicatividade pela predicação, nos diálogos platônicos.
Palavras chave:
Argumentação eleática, contextos predicativo/ antepredicativo, Platão, Górgias,
Protágoras.
I
Parménides e a crítica
Com a publicação de Parmenides’ Lehrgedicht, Hermann Diels[1],
proporcionou aos estudiosos do pensamento grego clássico a primeira edição
crítica do material subsistente do Poema Da
natureza, de Parménides. O público passou a poder ter acesso a um texto com
uma unidade e estrutura criadas pela edição integral. Agrupando dezenove fragmentos, apresentados
sequencialmente, divididos em três seções – “Proêmio” (B1), “Verdade”
(B2-B8.49), “Opinião” (B8.50-B19)[2]
–, o Poema passou a representar a sede do “pensamento de Parménides”. No
entanto, com a unificação do texto, a interpretação do Poema tornou-se um
quebra-cabeças para os helenistas.
Pouco mais de um século
sobre o início deste processo de apropriação do “pensamento de Parménides” pela
tradição filosófica ocidental, parece-me oportuno encarar os maiores problemas
postos pela argumentação eleática, avançando algumas reflexões,
historiográficas e filosóficas sobre a interpretação do Poema.
Um pensador paradoxal
Não cabe dúvida da
relevância da contribuição de Parménides para a estruturação da tradição
filosófica grega[3].
Direta e indiretamente referido, nos séc. V-IV a. C, por cosmologistas,
sofistas e filósofos, mesmo os que o criticam não deixam de pagar tributo a
algum passo do Poema. No entanto, não só cada pensador o aproveita a seu modo[4],
como nenhum deles aborda o Poema mais do que pontualmente, ou sequer se
preocupa com a restituição e interpretação da unidade da mensagem do Eleata.
Veja-se o caso exemplar
de Aristóteles, em cuja Física, ao
longo de quatro páginas de texto, a mensagem de Parménides é criticada e
avaliada de pontos de vista conflitantes. O Estagirita começa por considerar
que Parménides extrai de premissas erradas consequências absurdas (A2,185a9-11,
B3,186a6-9, 187a5-8), para logo a seguir justificar o núcleo das concepções
físicas de Empédocles e Anaxágoras (a que adiante acrescenta os Atomistas) pela
sua aceitação do princípio, de inspiração eleática: “ex nihilo nihil” (A4,187a28-29, 33-35; A8,191a23-32). No início do
capítulo seguinte, encarando-o agora como “cientista da natureza” (physikos), sustenta que o Eleata adoptou
“o quente e o frio” como princípios contrários (A5,188a19-22; vide Met. A5,986b19-20, b28-987a2). Finalmente
– após ter desenvolvido os princípios da sua abordagem da Física –, no início
de A9, o Estagirita aponta as suas críticas à teoria platônica do “Grande e do
Pequeno”, que considera ser também devedora de Parménides (A9,191b32-192a12).
Tamanha inconsistência
suscita duas perguntas e uma insinuação. Como é que um pensador cujas teorias
se acham grosseiramente erradas pôde exercer sobre a tradição posterior tão
decisiva influência, para mais, num domínio que lhe é estranho? Pois, se até A5
Parménides é apresentado como um opositor à “ciência da natureza”, como é que
sem explicação aparece a defender uma doutrina de contrários[5]?
Por outro lado, não mostrará a insistência em Parménides que, para além dos
pontos em que o critica, também a concepção aristotélica da Física é devedora
da argumentação eleática?
Este questionamento vale
para a interpretação atual de Parménides, pois, embora ninguém ponha em causa o
favor que os seus argumentos receberam na Antiguidade, as interpretações que
deles nos chegaram continuam a dividir os comentadores do Poema.
A unidade do Poema e a
ordenação de Hermann Diels
Descontando a veia
polêmica de Aristóteles, é natural supor que tal diversidade de perspectivas
não seja compatível com o respeito pela unidade do Poema, à qual, de resto,
nenhuma outra fonte clássica atende[6].
Constituirá, portanto,
significativa novidade a “reconstrução” unitária de Diels, em cujo trabalho
crítico se apoia toda a tradição da interpretação do Poema, desenvolvida ao
longo do séc. XX. No entanto, é fácil perceber que tal “reconstrução” não só
não resolve problemas antigos, como acrescenta alguns novos.
Por exemplo, como se
explica que Diels tenha condicionado toda a interpretação do Poema ao propor a
conjectura <eirgô> (“afasto”:
B6.3)? Dela resulta a exposição do “pensamento dos mortais” como um “terceira
via”, após as duas referidas em B2, e a insinuação da falsidade das “opiniões
dos mortais” (B1.31-32; B6.4-9; B7.1-5a; B8.51-B19). Como é que, em B8.38-39,
“todos os nomes que os mortais instituíram” são qualificados como “meros (blosser) nomes”, que
aqueles estabeleceram na sua fala (in ihrer Sprache)”? Por fim, não é
verdade que a unidade da seção da “opinião” (doxa) resulta mecanicamente da seriação do material contido nos
fragmentos B8.50-B19, a partir da quebra
de B8.50?
Terá sido a consciência
da impossibilidade de encontrar resposta para estas perguntas que levou N.-L.
Cordero, numa série de estudos recentes, a contestar a relevância da doxa na interpretação do Poema, ou ao
menos a unidade da problemática a ela associada no Da natureza[7].
É a partir destas
perguntas e das objeções que lhe foram dirigidas, que, questionando a
interpretação corrente do Da natureza,
como um todo, proponho uma abordagem da argumentação eleática, focada nos passos do Poema mais citados
na época clássica. Ensaiarei, a partir de B2-B3, uma avaliação sumária da
recepção de Parménides por alguns pensadores da época clássica que o referem
direta ou indiretamente.
II
O Da
natureza
B2-B3
B2, mais a sua possível
associação a B3, criando um bloco argumentativo autônomo, é o passo-chave do
Poema. É para ele que toda a argumentação da “verdade” remete sejam as críticas
à errância dos mortais[8]
(B6.4-B7.5), seja a exposição dos “sinais de “é””, ao longo de B8.1-49. É, no
entanto, difícil enfrentar com êxito a onda de problemas postos pela sua
interpretação.
B2
Vamos, vou dizer-te - e tu escuta e fixa o relato
que ouviste
- quais os únicos caminhos de investigação que há
para
pensar:
um que é, que não é para não ser,
é caminho de confiança (pois acompanha a verdade);
(5) o outro que não é, que tem de não ser,
esse te indico ser caminho em tudo ignoto,
pois não poderás conhecer o que não é, não é
consumável,
nem mostrá-lo[9]
[...] (B2.1-8a).
A despeito de leituras
ilustres no sentido oposto[10],
sustento que o contexto do fragmento é indisputavelmente epistemológico[11].
A deusa refere “os únicos caminhos que há para pensar” (B2.2), visando a deixar
claro que são apenas dois e contrários um ao outro: “é” (B2.3) e
“não é” (B2.5).
No entanto, se não é
fácil discernir o significado destes “pensar” e “pensamento”, constantemente
presentes ao longo da “verdade”, muito menos ainda se poderá perceber que
leitura pode ou deve ser atribuída aos “dois caminhos”.
Deixando ambas as
perguntas em suspenso, proponho buscar em B2.6-8a indícios que permitam
responder-lhes. Ao afirmar enfaticamente (dê:
B6.6) que “conhecer o que não é é inconsumável” (ou gar anyston: B2.8b), a deusa assimila “pensar” a “conhecer”,
confirmando a inserção do fragmento num contexto epistemológico[12].
Todavia, uma vez que essa
opção torna ainda mais obscuro o escrutínio do sentido a atribuir a “é/não é”,
proponho de novo evitar o confronto imediato com esta pergunta, avançando
através do exame das respostas que lhe foram dadas pelos comentadores.
Entre aqueles que encaram
os “caminhos” como as únicas respostas dadas à pergunta sobre como se conhece, é consensual a inserção
de “é”/“não é” num contexto predicativo[13].
Sendo suposto que este “pensar/conhecer” tenha, como únicos objetos possíveis
seja “é”, seja “não é”, daí decorrerá haver “(algo) que é” e “(algo) que não
é”, que por sua vez, terão de ser “alguma coisa”.
Neste ponto, porém, o
intérprete depara-se com dois insondáveis mistérios, pois, se é impossível
decidir com base no texto “o” que é ou não é, ainda menos possível será
encontrar um ou dois predicados que possam lhes ser atribuídos.
Essa impossibilidade
talvez tenha justificado a opção de largo número de intérpretes – de longe os
mais conhecidos e divulgados[14]
– de conferir uma leitura existencial aos “é” usados, decidindo que os dois
caminhos se referem a “o que existe” e “o que não existe”; ou seja, direta ou
indiretamente ao mundo físico. No entanto, não só os problemas que esta opção
levanta são imensos, como a identificação de “o que é” (ou “o ser”) com a
realidade, a par da correlativa identificação de “o que não é” com “nada” (ou
algo inexistente), é inconsistente com a argumentação desenvolvida em B2-B3,
B6-B7, B8.1-49.
Essa inconsistência é
evidente logo em B2, onde, por exemplo, é claro que nenhum sentido poderá ser
atribuído à tese eleática sobre a qual toda a interpretação do Poema assenta:
pois não poderás conhecer o que não é, não é
consumável,
nem mostrá-lo [...] (B2.7-8a).
Se “o que não é” não pode
ser conhecido[15],
a deusa está liminarmente a vetar o uso da negativa em qualquer tipo de
enunciados, nomeadamente, existenciais, veritativos, identitativos e
predicativos; pelo contrário caracterizando como necessária a correspondente
existência, verdade, identidade e predicação de “o que é”. É contrafatual,
parece absurdo, e, no entanto, ao contrário do que hoje é evidente, este
interdito foi unanimemente aceito como um truísmo pela totalidade dos
pensadores gregos da época clássica.
Por essa razão, penso
que, para ultrapassar o contrasenso, há que começar por renunciar a ler os dois
caminhos num contexto predicativo, interpretando-os antepredicativamente.
Porém, antes ainda deve-se ter o cuidado de seguir a ordem da argumentação no
interior do fragmento.
Há, na formulação dos
caminhos, duas notas a que se deve prestar atenção. A primeira decorre da
oposição das únicas duas vias conducentes ao conhecimento: “que é”/“que não é”.
A relação entre elas só pode ser de contrariedade (ou contradição) porque –
como B2.3b, B2.5b atestam – a negação de cada uma só pode conduzir à outra.
É dessa relação que
resulta a segunda nota, cuja importância é capital para a interpretação do
argumento. Sendo contraditórias, as duas vias para o conhecimento são as únicas
possíveis (mounai: B2.2), excluindo
qualquer outra possibilidade.
Esta consequência
puramente formal é facilmente captável pela aplicação da negativa ao verbo
‘ser’. Não só em nenhum outro par de opostos a contradição é mais evidente do
que em “que é”/“que não é”, como essa evidência certifica a impossibilidade de
uma “terceira via”. A conjugação destas duas razões basta para dispensar a
atribuição de qualquer sujeito ou predicado às duas formulações (das quais, de
resto, se acha ausente).
Que sentido haverá então
na proposta de uma leitura predicativa dos dois caminhos? Não valerá a pena
avançar uma leitura de B2 num contexto não-predicativo, dito “antepredicativo”?
Contexto antepredicativo
e antepredicatividade
A noção de
‘antepredicatividade’ aqui desenvolvida é destituída das implicações
metafísicas que dela decorrem nas obras de Husserl e Heidegger, onde é grosso modo caracterizada como uma forma
captação “originária” do conhecido. Limita-se a explorar a ausência de sujeito
e predicado nas formulações dos caminhos, recusando às formas de einai usadas o valor da cópula que
relacionaria um sujeito com um objeto do conhecimento, um e outro
supostos.
Ao contrário, num
contexto antepredicativo, os dois caminhos são lidos como nomes. Se é postulado
que “que é” é o nome do qual pode haver conhecimento, “que não é” será um nome
negado, um “não nome”, cujo “conhecimento” não poderá ser “consumado”[16]
(B2.7: vide a caracterização da via
como “impensável e anônima” e a “necessidade” de a “abandonar” (ean), em B8.16b-18a).
Apesar de ser declarado
tardiamente, o abandono da “via negativa” constitui a chave de todo o argumento
de B2. É dele e só dele que decorre a constituição de “que é” como a única via
susceptível de proporcionar conhecimento, permitindo a identificação de “ser”
com “pensar/conhecer” e garantindo a identidade do conhecimento ao conhecido no
caminho “que é”:
... pois o mesmo é pensar e ser (B3).
Ao contrário do que
ocorre na inserção de B3 num contexto predicativo[17],
a identidade de “conhecimento” e “ser” exprime uma relação puramente formal.
Sem sujeito e objeto do conhecimento, não há qualquer entidade a ser conhecida.
B3 se limita a estipular que todo conhecimento “é”, não havendo conhecimento
que “não seja” ou seja “não conhecimento”, numa relação em que a faculdade, o
seu exercício e resultado necessariamente coincidem[18].
A coalescência destes,
para nós, distintos aspectos da cognição – “conhecer”, “conhecimento” e
“conhecido” – é reveladora da leitura antepredicativa dos dois caminhos,
caracterizando um estado cognitivo
infalível, que tem como pressuposto a verdade (como se viu, um conhecimento
não-verdadeiro não é conhecimento).
Encontro nesta
característica do pensar/conhecer a causa da incapacidade de conferir hoje
sentido ao argumento eleático. Esta concepção do ‘conhecimento’ é
incomensurável com a nossa, cuja natureza processual
decorre de consistir numa relação
entre duas entidades, expressas por dois termos contrapostos: um sujeito e um
objeto.
Paralelamente – gerando
uma dificuldade adicional ao intérprete – neste contexto, a existência do conhecimento (e não do objeto do conhecimento) constitui, tal
como a verdade, um pressuposto, pois não é concebível que “o que é” possa não existir.
É, no entanto, necessário
notar que, como pressupostos da
cognoscibilidade de “é”, “existência” e “verdade” – a par de outros, avançados
em B8.1-49 – não podem ser encarados como predicados,
sob pena de violarem o contexto antepredicativo[19].
B6-B7
B7.1-2
(1) Pois nunca isto será demonstrado: que são coisas
que
não são;
mas afasta desta via de investigação o pensamento.
B7.1 é talvez o verso
mais polêmico do Da natureza e por
razões diversas. Platão cita-o duas vezes no Sofista (237a, 258d) associado a B7.2[20],
derivando dele a substância da sua “agressão ao pai Parménides”:
“impor-lhe pela força que o que não é de certo modo é e que por sua vez
também o que é de algum modo não é” (241d).
A agressão ao Eleata é
justificada, no Sofista, pela
intenção de desarticular a estratégia sofística, que explorava B7.1 para
sustentar a impossibilidade da falsidade e da contradição (denunciada, mas não
refutada, no Eutidemo 284-286 e no Crátilo 429-430).
Todavia, em fontes muito
posteriores – Sexto e Simplício –, atenua-se a importância conferida ao verso,
emergindo a sua posição como articulador de B6 com B7. Associado a B6.8-9a,
B7.1 constitui o núcleo da problemática aproximação das “opiniões dos mortais” à
argumentação da “verdade”, pois, considerar “o ser o mesmo e o não mesmo”
implica “cair em contradição” (Simplício Phys.
117,2), e “unificar o ser e o não-ser” (Ibid.
78,2) é equivalente a sustentar que “são coisas que não são”.
B6.4-9
... ... ... ... ... ... ... ... os mortais, que nada
sabem,
(5) vagueiam, com duas cabeças: pois a incapacidade
lhes guia no peito a mente errante; e são levados,
surdos ao mesmo tempo que cegos, aturdidos, multidão
indecisa,
por quem o ser e não ser é considerado o mesmo
e o não mesmo, mas é caminho regressivo de todos.
É nesta aproximação que
se encaixa a citação de B7.3-B8.1a por Sexto Empírico:
B7.3-5a
(3) não te force por este caminho o costume muito
experimentado,
deixando vaguear olhos sem foco, ouvidos soantes
(5) e língua.
Em B7.3-5a, após, em
rápida sucessão, ter proclamado ao jovem três proibições – (1) que não sustente
“que são coisas que não são” (B7.1); (2) que afaste o seu pensamento dessa via
(B7.2); (3) que não se deixe forçar pelo “caminho muito experimentado” do ver,
ouvir e falar (B7.3-5a) –, a deusa remata com uma quarta ordem, essa positiva:
B7.5-B8.1a
(B7.5b) ... mas decide pela palavra a prova muito disputada
(B.8.1a) de que falei.
É essa sucessão que
justifica a conclusão de Sexto, segundo a qual a finalidade de Parménides é:
“proclamar a razão cognitiva (epistêmonikon
logon) como o cânone da verdade nos entes, deixando de prestar atenção aos
sentidos” (Adv. Math. VII 114; DK28B7).
Este conjunto de
citações, retiradas dos contextos em que os fragmentos referidos se acham
inseridos, é bem esclarecedor das interpretações a que o “pensamento de Parménides”
foi submetido. A despeito das distâncias no tempo a que se acham uns dos outros
(Platão: séc. IV a. C.; Sexto: séc. III a. d.; Simplício: séc. VI), todos
concorrem em ler predicativamente B.7.1.
Significa isto que
afirmar que “coisas que não são são” é sustentar que existentes não existem ou
não são (isto ou aquilo). Portanto, se, com esta leitura da sua proibição, a
deusa implica que ao longo de B2-B3-B6-B7 – e consequentemente B8.1-49 – a
argumentação de Parménides se refere às coisas que existem e à possibilidade do
seu conhecimento, que sentido haverá na proposta de uma leitura antepredicativa
de B6-B7? É a essa pergunta que tentarei responder.
Leitura antepredicativa
de B6-B7
Para a interpretação de
B7.1 concorrem imediatamente dois problemas: que são estas “coisas que não
são”?; como se poderá afirmar ou negar que “são ou não são”? Defendi atrás que
negar aos “é/não é” o valor de cópulas implica ler os dois caminhos como nomes:
respectivamente “o (nome) que é” e “o (nome) que não é”[21].
Neste contexto, a impossibilidade do conhecimento de “o que não é” constitui um
truísmo, resultando de não poder haver conhecimento de um ‘não-nome’, de um
nome que, por ser negado, não pode ser conhecido.
De acordo com esta
interpretação dos caminhos, “[coisas] que não são” serão ‘não-nomes’. Embora,
na medida em que são ditos constituam nomes, pelo fato de serem negados não
podem nomear[22].
Consequentemente, em termos formais, a não-identidade de um ‘não-nome’ é
contradita pela identidade exigida pela sua função nominativa, viciando a
possibilidade de afirmar que “coisas que não são são” e justificando o
interdito da deusa[23].
B8
Passo a B8. Em nenhum
outro passo do Poema é mais nítido o conflito das interpretações do que em B8.
Para os que lêem Parménides num contexto predicativo, os “sinais” de “é”
exprimem os atributos do Ser. Para uma abordagem do fragmento num contexto
antepredicativo, esses ‘atributos’ não são mais que os pressupostos da
exigência de cognoscibilidade de “é”. Aquilo que os primeiros vêem como uma
ontologia – na verdade, as bases de toda a Ontologia – é visto pelos segundos
como o conjunto de condições formais que tornam possível a cognição, tal como o
Eleata a descreve em B2-B3.
III
Platão e os sofistas
A necessidade de ilustrar
a vigência destas teses nas fontes, na relação entre B6 e B7, justifica a
digressão por Platão e pelos mais importantes sofistas.
1. Platão
No Sofista, o Hóspede de Eléia sustenta que “o que não é é impensável,
impronunciável, indizível e inexplicável” (238c, e). Note-se, porém, que estas
quatro impossibilidades não remetem para o mesmo contexto, pois, se
“inexplicável” (alogon) significa
“não-predicável”, no contexto da argumentação do HE[24],
qualquer das outras antecede a predicação[25].
Adiante, no decurso da
enumeração das aporias do ser, a propósito dos Eleatas (244b-245e), embora o
foco incida nas consequências da tese da unidade do ser (244b), é a própria
possibilidade de o nome ‘o que é’ ser o mesmo que a entidade nomeada[26]
que é posta em causa:
“... se sustentar que o nome é o mesmo que a coisa, ou é obrigado a dizer
que é nome de nada, ou, se disser que é nome de algo, seguir-se-á que o nome é
nome do nome e de nenhuma outra coisa”[27]
(244d).
Estas considerações
explicam o esforço feito adiante no diálogo para constituir o enunciado como
uma “combinação de nome e verbo”, que “não somente nomeia, mas conclui algo”
(262d); e que, uma vez que “afirma e nega” (263e) “algo acerca de algo” (263b),
pode ser verdadeiro ou falso (263b).
Suportando toda esta
cadeia de problemáticas, persiste, como hipótese unificadora do programa de
pesquisa desenvolvido no diálogo, a concepção de que a linguagem se refere ao
real. A questão suscitada por este programa é a de que as teses platônicas
visam a superar problemas, alegadamente postos pelos sofistas, relativos à incapacidade
de usar a linguagem para descrever a realidade.
2. Sofistas
Por essa razão,
defenderei aqui a tese de que encontramos em Górgias e Protágoras sinais
inegáveis de duas concepções autoreferenciais da linguagem, possivelmente
inspiradas, ou pelo menos consentidas, por uma interpretação antepredicativa do
argumento de Parménides.
2.1 Górgias
É nos fragmentos 3 e 3a
que o sofista condensa os seus argumentos contra a possibilidade de usar a
linguagem para descrever o real, defendendo implicitamente uma concepção
autoreferencial da linguagem, usada para persuadir
o ouvinte (e não para descrever o
real ou comunicá-lo a outrem).
Assimilando o
‘pensamento/conhecimento’ referido por Parménides ao exercício do pensamento
pelo homem comum – o que contraria expressamente a argumentação do Eleata –,
Górgias defende as seguintes teses (resumo DK82B3,77-85):
G1. Se as coisa pensadas
(ta phronoumena) fossem reais, teriam
de existir (como “Cila”, a “Quimera” ou qualquer ser imaginário); o que é
absurdo;
G2. se as coisas vistas
não são ouvidas, e vice-versa, as coisas pensadas não seriam vistas nem ouvidas
(permitindo que qualquer coisa pensada por qualquer pessoa fosse real); o que é
absurdo;
G3. se os sentidos
(vista, ouvido, etc.) percebem coisas diferentes, não revelam as mesmas coisas;
G4. as palavras (logoi) não revelam as coisas, apenas mostram como cada um as percebe.
2.2 Protágoras[28]
Em relação à problemática
da percepção da realidade, é possível extrair quatro grandes teses das
doutrinas que Platão atribui a Protágoras:
P1. “O homem é a medida
de todas as coisas; das que são, como são, das que não são, como não são” (Teet. 152a; Crá. 385e ss.; DK80B1);
P2. “As coisas são para
cada um tal como as percebe” (Teet.
152a; 170a);
P3. “As opiniões dos
homens são sempre verdadeiras” (a partir de Teet.
170c; vide 170a-171c);
P4.“A falsidade (logo, a
contradição) é impossível” (Eutid. 284c, 285d-286c: DK80A19; vide Crá. 429d).
Reforçando a leitura
antepredicativa das teses de Protágoras, tentarei distinguir – no que o sofista
terá dito ou Platão lhe atribui –, um nexo que ligue estas quatro teses, apontado
a partir da relação entre os dois sofistas.
As teses radicais
pertencem a Górgias: G1-G4 negam ao pensamento, à percepção e ao discurso a
capacidade de atingir o real. Pelo contrário, Protágoras – a despeito de poder
admitir estas posições – matiza-as retoricamente, convertendo as sucesssivas
negações das capacidades dos homens em afirmações positivas da sua liberdade.
Focadas na defesa da
autonomia do cidadão, P1 e P2 confirmam a negação gorgiana da capacidade humana
de chegar ao real. Mas, como se verá, o golpe de gênio é dado em P3[29],
de que P4 constitui um corolário.
O cerne da argumentação
sofística
Se esta interpretação for
aceite, é claro que o traço comum à argumentação dos dois sofistas assenta no
princípio da autoreferencialidade do discurso. É porque os logoi não são capazes de descrever a realidade que só podem remeter
para si próprios[30].
Aceite este princípio, a
atribuição da verdade a todas as opiniões e a negação da possibilidade de dizer
falsidades e de contradizer-se seguem-se sem problemas. É através destas duas
teses que a genialidade de Protágoras torna “politicamente corretas” doutrinas que, embora em tudo semelhantes às de
Górgias[31],
não geram a oposição que Platão patenteia no Górgias.
A manobra de Protágoras
desloca a questão, da relação entre o discurso e a realidade, para uma nova
relação, que assimila as faculdades perceptivas ao discurso. Na medida em que
cada um diz o que sente e pensa, diz a verdade. Essa “verdade” não mais
expressa a relação entre o discurso e o real, mas a inevitável coincidência
entre a interioridade de cada opinante e o discurso que a explicita.
Parménides e os sofistas
É neste ponto que se
localiza o pomo da discórdia entre os intérpretes. Sendo evidente que a
concepção autoreferencial do discurso assenta num contexto antepredicativo, a
diferença entre os intérpretes reside em atribuí-la à distorção das leituras
que os sofistas fazem de Parménides, ou imputar ao Eleata a responsabilidade
por essa concepção.
IV
Conclusão
Antepredicatividade e cognição
As dificuldades postas
pela interpretação do Poema de Parménides acham-se condensadas em B2-B3.
Inserida num contexto predicativo, a identidade de ‘pensar’ e ‘ser’ extrai a
realidade do conhecimento; abordada num contexto antepredicativo, reduz-se a
uma inócua tautologia.
No entanto, num contexto
antepredicativo, essa tautologia não será sequer uma tautologia, pois não
relaciona dois termos distintos. A análise do argumento da ‘verdade’ atrás
realizada mostra que sustentar que “todo conhecimento é”, entende “que é” como
o nome que “pode ser conhecido”, conferindo à cognição o estatuto de
infalibilidade com que se manifesta nos textos na filosofia clássica grega.
É claro que a imposição
deste estatuto resulta da inserção da argumentação eleática num contexto
predicativo, operada pelos pensadores que foram influenciados pelas teses que
colheram do Da natureza. No entanto, nem
todos são sensíveis ao problema criado, pois, só Platão se atribuiu a tarefa de
erradicar as dificuldade criadas pela antepredicatividade, mostrando que a
cognição só pode ser entendida num contexto predicativo.
Como mostrei atrás, Parménides
é alheio à dificuldade. Por isso, o objetivo desta comunicação foi mostrar que
a inserção dos dois “caminhos para pensar” num contexto predicativo não só não
é legitimada pelo texto, como torna incompreensível o argumento de Parménides;
enquanto, pelo contrário, uma interpretação antepredicativa não apenas lê
textualmente as formulações dos dois caminhos, como explica a larga aceitação
concedida ao argumento na Antiguidade.
Por isso, o fato de a
generalidade das leituras a que as teses eleáticas foram submetidas na
Antiguidade serem inseridas num contexto predicativo[32]
não deve nos impedir de atentar nos sinais da antepredicatividade que nelas
persistiram.
Como se viu, eles se
colhem, sobretudo, nas leituras sofísticas de B7.1:
“não imporás isto: que
são coisas que não são”.
Pontualmente referidas
por Platão no Eutidemo e no Crátilo, essas leituras constituem o
coração da estratégia sofística, que é o objeto da refutação levada a cabo no Sofista. Mas, bastará atentar na
exigência de infalibilidade do saber, pacificamente avançada nos diálogos (Górgias 454d; vide República V 477e; Teeteto 152c), para perceber que as
características eidéticas das Formas – imutabilidade, perfeição, eternidade,
etc. – constituem reflexos dos pressupostos eleáticos da cognoscibilidade que
nos diálogos sobre a TF Platão tenta sem sucesso inserir num contexto
predicativo[33].
Na obra platônica, a tensão entre os contextos predicativo e antepredicativo
mantém-se na relação da TF e da anamnese com a dialética (Fédon, República), até
ser definitivamente resolvida pela associação da predicação à participação, no Sofista.
[1] H. Diels, Parmenides’ Lehrgedicht, griechisch und deutsch, Berlin 1897. Esse material veio
depois a ser incorporado nas sucessivas edições dos Fragmente der Vorsokratiker, criticadas pelas inúmeras edições,
traduções e interpretações, em diversas línguas, de que o Poema foi objeto ao
longo do séc. XX.
[2]
O estudo dos “fragmentos” de Parménides é enriquecido pela inclusão de
cinquenta e quatro excertos relativos à “Vida e obra”, “Doutrina” e “Poesia”
(DK28A). A estes acrescentam-se os contextos a partir dos quais os fragmentos
são citados.
[3]
Atestada pela diversidade de Autores que o citam, imitam e criticam. Veja-se em
F. Santoro, Poema de Parménides, Da
Natureza, Edição do texto grego, tradução e comentários, Azougue Editorial,
Rio de Janeiro 2009, 5-10, o “Prefácio”, que regista a “reconstituição
arqueológica” do Poema (remetendo oportunamente para N.-L. Cordero, “L’Histoire
du texte de Parménide”, Études sur
Parménide II, P. Aubenque (org.), Paris 1987, 3-24), bem como as “Fontes
dos Fragmentos e suas edições” (15-18).
[4]
No séc. V-IV, a lista inclui os discípulos, Zenão e Melisso, que refletem sobre
as aporias e paradoxos gerados pela tensão entre os modos paralelos de acesso à
realidade: “pensamento” e “senso-percepção”. Entre os cosmologistas, Empédocles
remete implicitamente para B8 nos seus frags. 11-14, enquanto, nas suas
doutrinas, Anaxágoras e os Atomistas tentam acomodar a aparência sensível à
argumentação de B8 contra todas as formas de movimento. Quanto aos sofistas
(Pródico, Górgias e Protágoras), o alvo das suas críticas é focado em B2, B6 e
B7. Só os filósofos (Platão e Aristóteles), refletem criticamente sobre as
consequências da aceitação da argumentação da “Verdade”.
[5]
A solução do paradoxo é apontada pelo próprio Aristóteles. Reforçando o
paralelo de Parménides com os Atomistas, o Estagirita trata “quente e frio” –
tal como “átomos e vazio” – como figurações do “ser e do não-ser”; vejam-se as
relações entre Física B5,188a22-24 e Met. A5,985b5-20, para os Atomistas; e Física A5,188a19-22 e Met. A5,986b19-20, b28-987a2, para Parménides).
No entanto, ao ignorar a explícita contraposição da “verdade” à “opinião”,
Aristóteles esquece que a teoria dos opostos não é assimilável ao argumento
sobre “ser e não-ser” por figurarem como o próprio objeto da crítica eleática
(B8.50-61).
[6]
Simplício – séc. VI d. C. – será o único que se mostra sensível a esse aspecto:
vide DK28A21. Note-se, contudo, não
haver base para presumir que ao considerar “raro o escrito (syngrammaton) de Parménides”, Simplício
esteja a aludir à versão integral do Poema.
[7]
Vejam-se, entre outros, N.-L. Cordero, Les
deux chemins de Parménide, VRIN/OUSIA, Paris/Bruxelles, 1984; By Being, It Is, Parmenides Publishing,
Las Vegas 2004; “Parmenidian “Physics” is not a part of what Parmenides calls doxa”, Parmenides, Venerable and Awesome, N.-L. Cordero (ed.), Parmenides
Publishing, Las Vegas 2011, 95-114; “Être (et non “L’Être) chez Parménide, La Filosofia come esercizio del rendere
ragione, Studi in onore di Giovanni Casertano, L. Palumbo (a cura di),
Napoli 2011, 107-114; “Una consecuencia inesperada de la reconstrucción actual
del Poema de Parmenides”, Hypnos 27,
S. Paulo, 2011, 222-229. Na origem destes trabalhos, acha-se o bom acolhimento
dispensado ao questionamento do A. sobre a conjectura de Diels: eirgô (“afasto”: B6.3); vide “Les deux chemins de Parménide dans
les fragments 6 et 7”, Phronesis XXIV,
1979, 1-32.
[8]
É inquestionável que este passo nunca poderá constituir uma “terceira via”,
independentemente do termo cancelado pela lacuna! Seja qual for o sentido
atribuído à injunção de B6.2 (“reflete”), as ásperas críticas endereçadas ao
costume dos mortais – por quem o ser e não ser é considerado o mesmo e o não
mesmo” (B6.8-9a) – opõem-se à disjunção “que é/que não é” (B6.1-2a), que ecoa a
oposição de B2.3 a B2.5.
[9]
Excepto onde indicado, as traduções são minhas.
[10]
Por exemplo, entre muitos outros passos de textos seus, M. Heidegger, Einführung in die Metaphysik (1935) insiste
repetidas vezes no enfoque do bloco B2-B3 no “ser”, traduzindo a abordagem da
cognição na questão da “essência do homem” (cito a partir da tradução, em
castelhano: Introducción a la Metafísica,
Editorial Nova, Buenos Aires 1959, 176-185).
[11]
Platão copia B2 na República V 477a ad fin., num contexto
ontoepistemológico, em que as competências “ser”/“saber”, contrapostas a
“aparência/crença/opinião”, nunca se desvinculam dos seus “conteúdos”.
[12]
A leitura de “pensar” com o sentido cognitivo foi estabelecida por K. von Fritz,
“Nous, Noein, and their Derivatives
in Pre-Socratic Philosophy (excluding Anaxagoras)”, The Pre-Socratics, A. P. D. Mourelatos (ed.), Garden City, New York
1974, 23-85. Posteriormente outros AA. exprimiram a sua concordância com esta
avaliação do “pensar”. Apesar de ser habitual a tradução “pensar”, noein significa “conhecer”, “apreender”,
“compreender”, e não “pensar”, no
sentido do raciocínio lógico.
[13]
Na ausência de um “sujeito gramatical”, é possível pensar num “sujeito lógico”,
que tomaria “é/não é” como os caminhos que há para pensar”: G. Owen, “Eleatic
Questions”, Studies in Presocratic Philosophy, R. E. Allen, D. J. Furley
(eds.), Routledge, London 1970, 73, n. 49. Note-se que a atribuição de um
“sujeito lógico” aos caminhos não implica atribuir-lhes um “sujeito gramatical”
(60-61).
[14] Por exemplo, W. Guthrie, A History of Greek Philosophy II, Cambridge
U. P., Cambridge 1965; G. S. Kirk, J. E. Raven (M. Schofield2),
Cambridge U. P., Cambridge 1957, 19832; J. Barnes, The Presocratic Philosophers I-II, Routledge,
London 1979.
[15]
Nenhuma justificação para esta tese é dado no que nos chegou do Poema. Mas
Górgias não deixa de deduzir B2.7 de B2.3 e B2.5:
“... se
as coisas pensadas são seres, as coisas que não são não serão pensadas. Pois
aos contrários correspondem os contrários e o que não é é contrário ao que é
(B3.80).
Neste contexto, o argumento é circular: “o que é” pode
ser conhecido porque “o que não é” é incognoscível; a incognoscibilidade de“o
que não é” decorre de ser contrário a “o que é”.
[16]
Embora “que não é” não deixe de ser um dos dois caminhos para pensar, a tese em
B2.7-8 declara que dele não pode haver conhecimento. De ‘não é’ – tal como de
“ninguém” (Outis: Ilíada IX, 408-412) – como todos os
Gregos sabiam –, não pode haver conhecimento. Em Platão, são diversas as
evidências do tratamento do logos
como nome (Crátilo 429b-430a; Sofista 244c-d). No Eutidemo 283c-d, os nomes ‘Clínias sábio’ e ‘Clínias ignorante’
nomeiam duas entidades: “Clínias vivo” e “Clínias morto”.
[17]
Na qual, encarando “pensar” como a faculdade cognitiva e “ser” como a realidade
conhecida, o ser é extraído do pensar, ou este último lhe é atribuído. Pelo
contrário, num contexto antepredicativo, ”o que é” e “o que pode ser conhecido”
são nomes diferentes da mesma entidade (“o ser” e “o pensar”: B3, B8.34)
[18] J. Hintikka, “Knowledge and its
Objects in Plato”, in Knowledge and the
Known, Reidel, Dordrecht/Boston 1974, 6-7.
[19]
A diferença entre um ‘pressuposto’ e um ‘predicado’ é clara. Como o predicado é
distinto daquilo que predica (ou não há ‘predicação’, mas ‘identidade’), a sua
atribuição pode resultar em ‘verdade’ ou ‘falsidade’. Nenhuma destas condições
se aplica ao pressuposto, que, por inerir na natureza daquilo de que é
pressuposto, dele se não distingue, como é evidente na condição a que todo o
conhecimento terá de atender para ser conhecimento: “se P, então P”.
[20]
Aristóteles cita-o isolado (Met.
N2,1089a4) e Platão também o refere isolado pela boca de Eutidemo (Eutid. 284b3-4). A montagem B7.1-2 faz
de Platão a única fonte do bloco B7.1-B81a. A partir de B7.2, os restantes
versos do fragmento – aos quais se segue B8.1b –, são citados por Sexto (Adv. Math. VII 111) após a citação de
B1.1-30, e repetidos, a partir de B7.3, após a paráfrase do Proêmio (Ibid. 114). Os versos B8.1-61 –
permitindo a montagem integral dos dois fragmentos – são citados por Simplício
em diversos passos da sua Physica (vide as referências em F. Santoro 2009,
36-41).
[21]
Dispensando o tradutor ou intérprete de atribuir leituras divergentes –
completas ou incompletas elípticas – às formas de einai usadas, requeridas por um contexto predicativo.
[22]
Esta impossibilidade, note-se, é de todo independente das entidades que
nomeariam e da sua existência. Em B8.40-41 e B19.1-2, a deusa dá exemplos de
‘não-nomes’: ‘gerar-se’, ‘destruir-se’, ‘ser e não ser‘, ‘mudar de lugar’,
‘mudar a cor brilhante’.
[23]
O mesmo resultaria de afirmar que “coisas que não são não são”, pois, nesse
caso, não era a contradição entre “coisas que não são” e “(coisas) que são” que
justificaria o interdito, mas a contradição interna do ‘não-nome’. Veja-se o
argumento no Pseudo-Aristóteles (De
Melisso, Xenophane, Gorgia: 979a25-26; DK82B3a): “Se o não-ser é não ser, o
não-ser nada é menos que o ser”. Veja-se ainda a recuperação deste argumento
por Platão, após a reformulação da negativa como ‘diferença’ (Sof. 257e-258b, com a repetição por
quatro vezes da expressão ouden hêtton,
ou equivalente).
[24]
A “o que não é” nenhuma coisa “que é” pode ser “atribuída” (epipherein), como mostram os exemplos
aduzidos (237c ss.).
[25]
O contexto antepredicativo é notável na segunda vaga de aporias sobre “o que
não é” (239a). A impossibilidade de “dizer o que não é” como “um ou muitos”
(238d-e: no singular ou no plural) afecta o nome, não a sua inserção no logos (238e-239a). Dizer “o que não é” é
“não dizer absolutamente nada”, é “nem sequer falar” (238e; vide R. V 478b; Teet. 189a-b; no Crá.
429e-430a, um ‘não-nome’ é um mero ruído).
[26]
Lendo o nome como uma entidade que se refere a si própria.
[27]
As traduções do Sofista são de H.
Murachco, J. Maia Jr., J. Trindade Santos (O
Sofista, Platão, Fundação
Calouste Gulbenkian, Lisboa 2011).
[28]
Ao contrário do que ocorre com Górgias, as teses de Protágoras são conhecidas
através dos diálogos platônicos; circunstância que torna impossível distinguir
a figura histórica da personagem platônica. No Teeteto (152b-179c), Platão refere e critica extensamente o sofista
a partir do escrito perdido Peri
alêtheias. No Eutidemo e no Crátilo, refere-se a ele através das
personagens do diálogo, aludindo a uma “escola de Protágoras” (Eutid. 286c; Crá. 385e-386c). No Protágoras
é transcrito um mito atribuído ao sofista (320-328), cujo conteúdo não é
relevante para o tópico em estudo.
[29]
Note-se que a tese de que todas as opiniões são verdadeiras nunca é
expressamente atribuída a Protágoras, mas deduzida por Platão de dados colhidos
da “Verdade” (vide Teet. 170a-171c).
[30]
O princípio serve para levar ao extremo a autonomia do “discurso” (logos): Górgias Elogio de Helena 8 (82B11.8), defendendo o poder da Retórica (vide Platão Górgias 455d-456c). No entanto, por detrás da afirmação do seu
poder acha-se a denegação da capacidade humana de chegar ao real através do
pensamento e da sensopercepção (G1-G3).
[31]
Note-se, no Górgias, como o ataque de
Platão se apoia na insouciance do
sofista (449a-c, 452e, 455d-e, 456b-c, 459c) e na sua declaração de
irresponsabilidade pelas consequências de um ensino não apoiado num saber
efectivo (456d-457c; vide José
Trindade Santos, “Górgias e o Górgias
de Platão”, Archai 7, 2011, 55-66).
[32]
Ou seja, a circunstância de, nas obras daqueles que reconhecem a influência de Parménides,
a argumentação eleática ser transposta para o registro predicativo, no qual todo
o conhecimento é conhecimento de “algo”, identificado com o mundo físico ou
qualquer ente nele existente.
[33]
As Formas são predicados, não possuem os predicados que conferem às
suas instâncias. É a confusão destes dois regimes de predicação que dá origem
ao “argumento do terceiro homem” (vide
N. Fujisawa, “Echein, metechein,
Idioms of Paradeigmatism in Plato’s Teory of Forms”, Phronesis XIX, 1974, 30-56).
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UFPel, nº36, Verão de 2012, (pp. 11-31).
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Agradeço a José Trindade Santos e a João Hobuss, Director da publicação deste estudo na revista Dissertatio.
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