1. As novas tecnologias de informação e
comunicação apontam para uma cada vez maior importância da técnica na
experiência humana. Nesta obra, a individuação dos objectos técnicos é
entendida com um “apelo irresistível” que ganha uma cada vez maior amplitude e
potência. Do ponto de vista teórico, as dicotomias da tecnofobia versus
tecnofilia, da cisão do “dentro” e do “fora”, enfim, do sujeito e do objecto,
herdadas com o advento da ciência moderna e aprofundadas com a tecnociência,
deixam gradualmente de fazer sentido quando se trata de compreender esta nova
realidade. O mundo digital influi de modo, por vezes imperceptível, na
percepção da “realidade” de tal modo que a eficácia do seu efeito estrutura-se,
precisamente, por não darmos muitas vezes conta dele. Duas posições clássicas
emergem no pensamento sobre a técnica: a tecnofilia e a tecnofobia como linhas
de força não facilmente determináveis ou definíveis. Irei fazer uma leitura
deste livro focalizando a questão da tecnofobia e mostrando como ela bloqueia,
de algum modo, um pensamento inovador sobre a técnica.
Com efeito, segundo José Pinheiro Neves, “os
objectos técnicos não devem ser pensados a partir da sua exterioridade em
relação ao homem. Esta simplificação deu origem a um dos fantasmas que
atravessa a visão tecnofóbica da técnica: o perigo do domínio das máquinas
sobre o homem” (p. 100). Há uma outra “exterioridade” dos objectos técnicos que
a tecnofobia simplista não percepciona. Poder-se-ia dizer que se instala nos
objectos técnicos e nos seres humanos uma espécie de nova interioridade e
exterioridade que é de certo modo a “autonomia da dimensão técnica” (p. 49).
Assim, uma das argumentações fortes deste livro incide principalmente na
crítica de um mal entendido. O de um erróneo ponto de partida, uma
“exterioridade” que já não funciona com os novos critérios do “dentro” e do
“fora” na reflexão e argumentação acerca da importância dos objectos técnicos
na individuação humana na “modernidade”.
Esquematizando e tentando uma melhor clarificação
sobre o problema da “tecnofobia”, propõem-se dois movimentos. Deste modo,
pode-se estabelecer um quadro com duas linhas de força, dois movimentos
negativos relativamente à questão dos objectos técnicos. Dois movimentos que
atravessam a argumentação tecnofóbica. Como consequência dos objectos técnicos
serem pensados a partir da sua exterioridade em relação ao homem - a visão
tecnofóbica - decorre que “esta simplificação (“pensar os objectos técnicos a
partir da sua exterioridade”) deu origem a um dos fantasmas que atravessa a
visão tecnofóbica da técnica”: “o perigo do domínio das máquinas sobre o
homem”.
No entanto, “pensar os objectos técnicos a partir
da sua exterioridade em relação ao homem” permanece e continua como um grau
zero. Um ponto de começo que, como numa falsa partida, precisa de ser
desconstruído para se jogarem de novo os dados do problema.
2. Seguramente, esta obra propõe-nos uma outra
forma de pensar a “exterioridade”. De onde a insistência na “concretização” e
nas “linhagens” dos objectos técnicos: “trata-se de estudar como determinados
objectos técnicos evoluem engendrando uma família, uma linhagem. Seria uma
espécie de zoologia dos objectos técnicos realizada não em função das suas
características externas ou formais mas antes em função do seu grau de
concretização, da forma como se articulam com o orgânico (humano ou
não-humano)” (p. 100). Neste contexto, veja-se o processo de individuação e
concretização dos objectos técnicos ilustrado por Simondon a partir da evolução
dos motores, desde a máquina a vapor até aos motores supersónicos (referindo
Stiegler, p. 97): “as alterações significativas não se deram propriamente na
substituição das ferramentas [artesanais] pelas máquinas (pelo surgimento da
máquina a vapor); a autêntica mudança foi a substituição do suporte da
ferramenta que deixou de ser um sistema em que o orgânico era determinante
[a ferramenta é um prolongamento da mão em que o homem é o actor principal] para
passar a ser uma máquina que se autonomiza, se concretiza cada vez mais…”
(p. 98, itálicos nossos). Digamos que é um fora que se integra: “na máquina a
vapor, a combustão faz-se fora do pistão, em uma caldeira que faz o vapor
aquecer e o injecta num cilindro, o que põe em movimento um pistão, ao passo
que, com o motor Lenoir, a combustão entra no pistão (p. 97). Ou seja,
“estas máquinas automáticas serem sensíveis ao funcionamento de outras
máquinas, de possuírem sistemas de auto-regulação de forma a gerir a
indeterminação produzida por outros objectos técnicos individualizados” (p.
98). “Esta [a indeterminação e não a automatização] torna a máquina sensível ao
funcionamento de outras máquinas, o que lhe permite a sua integração nos
conjuntos técnicos” (p. 98).
Precisamente, os objectos técnicos não devem ser
pensados nem “a partir da sua exterioridade em relação ao homem” (relativamente
à suposta interioridade e exterioridade dos humanos), nem somente “em função
das suas características externas ou formais”. O que implica novos tipos de
interacção segundo os quais já é difícil detectar de que matéria se trata. Não
se discute nem a “matéria viva” nem a “matéria inerte”, mas, mais do que isso,
a “matéria” como energia sem haver uma ruptura entre o orgânico e o não
orgânico (p. 73).
Inspirado em B. Stiegler e Leroi-Gourhan, o autor
defende uma espécie de desdobramento que se opera com essas
transformações, agenciando-se essa matéria inorgânica como um novo
“intermediário” através do qual “a matéria viva (homem) também se transforma
entrando em relação com o meio” (p. 73). É “um intermediário que inicialmente
tem um papel discreto mas que, com o acumular do tempo, tende a propagar-se e a
complexizar-se, como se fosse uma nova espécie de híbrido criando uma segunda
natureza” (p. 73). Ou ainda: “estamos perante um processo híbrido em que seres
orgânicos e inorgânicos criam um terceiro meio”.
De facto, a concretização, como organização
autónoma da matéria inorgânica, ganha uma autonomia histórica diferente da dos
homens que fabricaram o objecto (p. 101)”. É a diferença operada por Simondon
entre o “artesanato”, que corresponde ao “estado primitivo [abstracto] da
evolução dos objectos técnicos”, e a “indústria que corresponde a um estado
mais concreto” (p. 96). Daí que, citando Stiegler, “o objecto técnico coloca em
jogo algumas leis da evolução que lhe são imanentes, mesmo no caso em que, à
semelhança do ser vivo, apenas se efectuam sob as condições duma envolvente, ou
seja, neste caso o homem e os outros objectos técnicos” (p. 101).
3. Desta forma, a tecnofobia assenta numa visão
anacrónica e descontextualizada dos novos problemas que se levantam com a
técnica. Segundo Neves, os defensores de uma visão tendencialmente tecnofóbica,
como Heidegger, sentem-se - na perspectiva da exterioridade em relação a esses
objectos - ameaçados e até invadidos interiormente por esses mesmos objectos.
Por isso, o que mais releva desta questão é a tentativa de reformulação, de remodulação
do que é do plano do “fora”.
E é na dita “concretização” e nas “linhagens”,
nesse espaço de individuação dos humanos e dos objectos técnicos em suas
interacções e recíprocas mutações imprevisíveis, nestes novos ‘meios’, que se
desdobra um mundo no qual a exterioridade enquanto sinal de separação do
sujeito e do objecto deixa de fazer sentido.
Ou seja, “o grau de concretização dos objectos
técnicos”, e não “as suas características externas ou formais”, estrutura uma
nova percepção de exterioridade. Como se ao nível da concretização e
individuação dos objectos técnicos emergisse um outro estofo, uma outra
plasticidade (ver ‘aloplástica’ e ‘homoplástica’, p. 86) que traria um novo
sentido de interioridade que por seu turno implicaria outro sentido de
exterioridade. Daí o efeito re-confortante e protector que a técnica e
os ecrãs exercem como uma espécie de segunda casa “defora”.
No entanto, não é assim tão linear. Pois, de
certa forma, a individuação humana está implicada naqueles objectos. Não é
verdade que os humanos agenciam outras formas de fora e de dentro
a partir da técnica que é, como defende José Pinheiro Neves na sua tese “a
característica mais importante, embora não exclusiva pois está presente no
mundo animal em formas ainda muito toscas, daquilo que se considera humano”?
4. Na sua crítica à tecnofobia, J. P. Neves
sublinha uma primazia fono-logocêntrica ainda latente em Heidegger: nesse
autor, “há um movimento incompleto em que o substracto ontológico que atravessa
tanto o falar como o ver é pensado como se estivesse numa convergência hermenêutica”
(p. 28). Embora, em outro escritos, Heidgger sugira uma visão mais ampla do
processo como sublinha Massimo Di Felice (2009, p. 57) "O ser de Heidegger
não é um ser puro, nem conceitual, mas uma possibilidade, isto é, um ser em
situação, no mundo".
Prosseguindo estas questões (da linguagem) mas
noutra vertente, J. P. Neves chama a atenção para o “mal-entendido” de se
considerar Derrida um “textualista”, acusação de que tem sido alvo por
apressadas leituras dos seus textos. Derrida, indo mais longe do que Heidegger,
leva a cabo a crítica, ou antes desconstrução do “fonocentrismo” e do
“logocentrismo”, ou seja do antropocentrismo (p. 81). A desconstrução sai da
hegemonia desse lógos e abre caminho para a escrita - enquanto “grama”,
“traço”, “marca”, “diferância” [différance] - articulada com a “gramatização”
como algo que já não é apenas humano (Stiegler; p.74). Com Stiegler
extravasa-se a escrita para lá da tese antropocêntrica, “inquietando a
fronteira que separa a animalidade da humanidade” (p. 81).
Como consequência, a linguagem humana não se
confina à “re-presentação” mas essencialmente à “presentação”, “pois também
estamos envolvidos no processo” (p. 41, reenviando aqui para Simondon). E se
estamos envolvidos no processo, é o ‘corpo’ que também está envolvido como
inscrição e técnica como mostra Leroi-Gourhan quando defende que a posição
erecta, a marcha com as mãos livres e a divisão do trabalho a partir da boca e
da mão (coluna vertebral, mão, face) são características da nova divisão de
trabalho de animal humano. Segundo Leroi-Gourhan, esta posição, uma nova
divisão técnica do corpo do animal humano, é decisiva para a emergência do anthropos.
Contudo, J. P. Neves considera ainda um pouco
antropocêntrica a tese de André Leroi-Gourhan. Segundo ele este autor delimita
uma ruptura ainda “essencialista” a partir da evolução do cérebro relativamente
à posição vertical. Daí que o autor, apesar de considerar Gourhan decisivo, se
demarque do seguinte passo: “É concebível uma origem comum ao macaco e ao homem
mas, uma vez conseguida a posição vertical, deixa de haver macaco e, por
conseguinte, semi-homem” (p. 67). Portanto, abre-se o caminho para as teses de
Stiegler (gramatização, etc.) demarcando-se assim do paleoantropólogo. Pinheiro
Neves situa a emergência da técnica com a posição vertical humana em que
estamos perante um processo longo de hominização onde as rupturas não são
essencialistas (ver a sua crítica à tese de Rousseau que ainda atravessa muito
do pensamento das ciências humanas). Neste processo longo e contraditório que
ainda acontece com novos componentes, o cérebro desenvolve-se numa interacção
recíproca com a mão e a boca. “Não há propriamente uma causalidade simples,
visto que as transformações se operam nos dois sentidos: as transformações no
cérebro são o resultado desta nova divisão [“divisão do trabalho entre o
conjunto em torno da boca e o conjunto que acompanha a mão”] que por seu lado é
afectada pela retenção no cérebro e fora dele de uma memória técnica” (p. 68).
É bom repeti-lo, o autor defende que o homem das
cavernas, pela memória técnica, configura já um outro ‘fora’ cujo ‘dentro’
ganha outro sentido. É daqui que releva o alcance do pensamento deste autor no
passo que citámos no início deste estudo.
Porquê outro sentido? Porque os humanos e os
objectos técnicos não se encontram separados (por um exterior e um interior
respectivos). Mas antes interagidos segundo estes últimos (exterior e interior)
fazendo emergir precisamente outro sentido de fora e de dentro ao mesmo tempo
que outro sentido deles mesmos (“humanos” e “objectos técnicos”). A
“indeterminação” nascente da “individuação técnica”, a emergência dessa “zona
obscura” tem que ser pensada. É por isso que, quando falamos de um ‘fora’ dos
objectos técnicos, está-se porventura já a falar, em parte, de um de ‘dentro’
dos humanos. A perspectiva tecnofóbica, do ponto de vista do autor, não
compreende o bastante estas mutações. O problema seria não tanto a confusão mas
o ‘modo’ como se confunde. A permuta serviria ainda para re-pensá-la permutando
já de outro modo.
Levar a cabo o sentido deste novo-outro-fora
- deste “ainda mais humano” (p. 18) do
estranho “apelo do objecto técnico” (p. 131) - implica a saída de uma
certa subjectividade inspirada no antropocentrismo. Daí que, na esteira de
Henri Bergson, se conclua que “se nos despojarmos de todo o egocentrismo do
humano, um outro pensamento emerge” (p. 65). Glosando Lyotard, será necessário
tentar um pensamento inumano.
O agenciamento das individuações e concretizações
dos humanos e dos objectos nas suas interacções seriam a condição de um outro
‘meio’ do qual - talvez porque sejamos nos nossos dias ainda ultrapassados
pelos acontecimentos - não damos conta do modo como o ‘dentro’ e o ‘fora’
operam. O título de um dos livros de Simondon é esclarecedor: “Do modo de
existência dos objectos técnicos”. Eis a razão pela qual o autor nos fala de uma espécie de “cérebro
externo”, de memória humana nos objectos técnicos, de marcas, de gramas que são
como que um moderno “ disco externo de dados “ (p. 69, ver também p.
73).
Nesse sentido, a ruptura decisiva que nos separa
dos outros primatas a partir da posição vertical é uma “ruptura extremamente
contínua” que só pode ser plenamente apreendida no seu alcance num olhar para
trás que olha também para a frente ao longo de “milhares e milhares de anos”
(p. 72).
Tudo depende do modo como lemos e compreendemos o
cruzamento de um olhar imediato com um de “longa duração”, correndo-se os
riscos inerentes de cair em anacronismos. Nesta visão, não há uma ruptura
«essencial» entre humano e não humano: “não se podendo falar, no limite, de uma
autêntica ruptura, mas antes da aceleração de uma tendência que antecede o
humano” (p. 72).
O “processo extremamente lento de epifilogénese”
pela “exteriorização da memória” através da “gramatização dos objectos
técnicos, como, mais tarde, com a escrita” pode, por um lado “criar algo de
extraordinário”, mas, por outro, conter riscos insuspeitados: “Talvez crie [a
epifilogénese, memória técnica] algo de extraordinário devido à
exteriorização e à sua recente aceleração. Mas convém assinalar que o extra
não tem necessariamente uma conotação positiva” (p. 72) como defende o
pensamento tecnofílico.
5. Uma das ideias chave deste livro é a do
lançamento de uma “ponte”: “a ponte entre as essências e as coisas formadas”
(p. 46). Trata-se por conseguinte de uma espécie de revisão da dicotomia entre
as visões “tecnofílica” e “tecnofóbica” (vj. p. 94). Nesse sentido, “para
entender esta zona obscura (“a ponte entre as essências e as coisas formadas”)
é preciso que “a dicotomia estabilidade/instabilidade” seja “substítuída pela
lógica da meta-estabilidade, de sistemas em equilíbrio meta-estável” (p. 46).
Citando Simondon, apresenta-se “a individuação
física como um caso de resolução de um sistema meta estável, a partir de um
estado do sistema como o da sobre fusão ou sobressaturação, que preside à
génese dos cristais”. Um plano, não propriamente de “síntese” mas de “mediação”
(p. 95). Digamos que estas mediações “meta estáveis” não realizam propriamente
uma “síntese”, mas “zonas intermédias” como defende o autor apoiando-se em
teses tais como as de Husserl, Deleuze e Simondon, (p. 45). Quer dizer,
sugere-se que se repense o fundamento da fenomenologia que inspira Heidegger,
que se recue a uma das intuições, que foi um pouco esquecida, de Husserl.
Trata-se de criar uma ponte ambulante (“o fenomenólogo é o ambulante...”), uma
“fenomenologia que é itinerância” em vias de seguir a “essência vaga” (Gilles
Deleuze a propósito de Simondon, p. 45).
A individuação humana não é teorética, nem se
situa a partir de um ponto de vista dicotómico-hilemórfico (matéria/forma). Daí
uma “fenomenologia da matéria e da corporeidade” a partir das novas mediações
das “essências vagas”. Estas são as zonas onde circulam as “essências formais”
do nosso “pensamento conceptual” e as “coisas formadas” da nossa “percepção
sensível” (p. 45, citando Deleuze).
Face a isto, poderemos compreender melhor as
novas mediações a partir da mutação, do ‘transporte’ que se estabelece nesta
metaforização das pontes. Todas estas noções (mediação, autonomização,
individuação, concretização, protesização, transdução, etc.) são delicadas e
susceptíveis de polémica. Abordam uma linha de fronteira ténue que já não
sabemos bem se é uma linha, uma dobra, um “campo” ou um espaço que se abre na e
para a tecnologização. Justamente, estas questões fazem parte do impasse do
tempo pelo qual hoje passamos.
6. No que respeita à problemática dicotómica (o
“hilemorfismo” de origem aristotélica), convém lembrar tratar-se de um ponto
delicado e controverso, acabando sempre por ser, explícita ou implicitamente,
um tema de investigação em qualquer área disciplinar. Mas do ponto de vista de
Pinheiro Neves, a teoria hilemórfica aristotélica é “dicotómica” (p. 95). No
entanto, esta teoria considera a relação matéria-forma constitutiva da
substância (ousia), sendo que a forma é princípio formador da matéria.
Daí que a prevalência ou a “superioridade da forma sobre a matéria” (P. Chabot,
La Philosophie de Simondon, Paris, Vrin, Col. Pour demain, 2003, p. 76 e
sgs.) constitua uma problemática dicotómica pelo próprio facto da forma
anteceder e prevalecer sobre a matéria, embora a ousia (substância) seja
o nexo das duas. Por outro lado, a teoria hilemórfica não deixa de considerar
esses termos enquanto tais, quer dizer, implicitamente separados numa
“bipolaridade” (citando Simondon, p. 41) e, portanto, numa dicotomia (p. 95).
De certa forma, o problema da ciência moderna, a visão dicotómica tem aqui a
sua origem, a sua génese.
No entanto, levantam-se sempre novos problemas:
nos nossos dias como faremos face a ambas (matéria e forma) se o que acontece é
que elas já não são as mesmas, tanto pela linguagem
ou “língua de tradição” que, entretanto, já se alterou, como pela linguagem ou
“língua técnica” (Heidegger) que aparentemente dela decorre e todavia a altera,
transmuda?
No fundo, as questões da dicotomia, das
separações, dos binómios, das díades e das bipolarizações, são das mais
intrigantes que assolam o pensamento vacilante dos provavelmente novos humanos
(pós-humanos?) que já somos, a caminho - quem sabe? - dos “híbridos
sócio-técnicos”, cyborgs, replicantes, mutantes, etc. Mesmo as distinções -
mais atenuantes que as disjunções (a epistemologia da complexidade de E. Morin
defende a distinção em detrimento da disjunção; ver “O Método”) -
parecem tender à sua desaparição. O que não impede que, na pretensa superação
de todas as disjunções, separações e, até mesmo, distinções - com o advento das
novas estruturas de mediação, mutação e ligação - se corra o risco de se
abrirem dimensões, abismos imprevisíveis cujo destino se ignora totalmente.
Talvez novas “separações” que já não cabem nos anteriores critérios de
“separação”, seja como expressão, seja como conteúdo e suas implicações
metalinguísticas (sobre conteúdo e expressão, ver p. 87).
É “a mescla dos desejos, palavras e instituições”
(Bragança de Miranda, p. 19). “Zonas intermédias” (p. 45), “ligações estranhas”
(José Gil, p. 112) onde opera no “terreno virtual”, ou “espaço paradoxal” do
“ciberespaço de desterritorialização” o que se “territorializa” enquanto
“todo e qualquer agenciamento parcial” (Gil, p. 113, itálicos nossos). É
aqui que tem lugar o “fascínio pelas máquinas [digitais] e imagens
publicitárias” (p. 113) que desencadeia as “ligações estranhas”, pois “as
máquinas passam a ser elas próprias objectos-fetiches emissores de desejo” (p.
113). E o autor acrescenta: “O desejo da
máquina passa a constituir o desejo do homem tal como acontece nos processos de
fetichização ou de perversão sexual” (p. 113). Neste contexto, o autor
interroga-se sobre se “os conceitos do pensamento moderno ainda permitem uma
descrição adequada do surgimento do novo tipo de ligações” (p. 112).
Por outro lado, é a própria electricidade da técnica
que já atravessa a “linguagem” num estonteante torvelinho. Todavia,
estranhamente ainda se aceitam os binómios. É o que Bragança de Miranda adverte
quando escreve: “Marx referiu o facto enigmático da “dissolução de tudo o que é
sólido”. Cem anos passados, está a acabar a própria distinção entre o que é
sólido e o que é mole, destino fatal de todas as distinções. […] Não é que
estes milenares bastões com que tacteávamos o mundo tenham desaparecido. É
a inumana velocidade da electricidade que tudo desfigura e deforma, como se
estivessem a operar aqui as forças de um Bacon invisível.” (Miranda, 2008, p.
125) [itálicos nossos]. Ainda sobre uma certa aceleração da técnica leia-se o
que escreve Edgar Morin e Anne B. Kern em “Terra-Pátria” (obra citada em
O apelo do objecto técnico): “Trata-se de abrandar para evitar tanto uma
explosão, como uma implosão. Trata-se de desacelerar para poder controlar e
preparar a mutação. A sobrevivência exige que se revolucione o devir. Temos de
voltar a um outro futuro. É isso que deve ser a tomada de consciência decisiva
do novo milénio”. É pois preciso jogar esses duplos movimentos, jogar as
ambivalências, oscilações e “envolvimentos” (p.114) dos “desejos” (Pio de
Abreu, p.114), das “afecções” (Teresa Cruz, p.114) da “euforia “, do
“entorpecimento”, da “informação” protagonizados “por uma nova maquinização da
experiência sensível” (Ibid, p.114), já anunciados, segundo esta autora, por
Nietzsche e Baudelaire que “intuiu o frenesim eléctrico da vida moderna mas,
também, o seu profundo ennui” (p. 115).
7. O que se joga com as chamadas novas
tecnologias é, entre outras questões, o requestionamento da matéria, das
matérias, do espaço, do tempo, dos meios (media), das linguagens
técnicas e não-técnicas, etc. Matéria, matérias que inscrevem uma nova
espessura da “realidade”, numa dobra paradoxal - um qualquer infra-fino,
evocando Duchamp - destes novos interfaces.
Deslocando um pouco, falarei de passagem duma
outra leitura não abordada neste livro, mas que nos parece interessante. É a
que Fernando Belo faz com a chamada “matéria de empréstimo”. Noção que este
autor encontra na abordagem do “mimêma pictural” de Alain (Alain, É. C.,
Système des beaux-arts, Paris, Gallimard, Pléiade, cap. VII, p.46,
“consagrado ao exame da «matéria»”; “inscription dans une matière d’umprunt”).
Todavia, Belo encontra esta citação (sem aspas) em Pierre Somville (1975, p.
46) o qual remete para R. Mac Keon (Critics and criticism, Ancient and
Modern, Chicago, 1952, p 152) que por seu turno a menciona a partir de
Alain. “Mimêma pictural” enquanto “Inscrição sobre uma matéria de empréstimo”.
Mas Belo vai “acrescentar” esta noção ao “sonoro”, “visual” e “táctil”, quer
dizer, aos usos e inscrições da “linguagem oral” na “matéria sonora”, aos da
“escrita e das imagens (da pintura, desenho, fotografia, filme) em superfícies
visíveis”, até constatar que “estas diversas inscrições numa matéria de
empréstimo”, “estes usos que não são como os outros e não parecem ter um nome
comum” passaram estranhamente despercebidos pela “cultura ocidental”. Daí que
F. Belo remeta para um certo tipo de “produtos” - e não “instrumentos”, “meios”
ou “coisas”. É o que, por exemplo, a “palavra técnica nos faz pensar”,
“servindo para precisar um pouco mais esta noção vaga de matéria de empréstimo”.
Esses “produtos” [“as palavras ‘técnica’, ‘habitação’, ‘uso’”] “podem deixar a
sua matéria de empréstimo”, e “serem transformados em electricidade e enviados
(“tele-”) a longa distância e voltarem de seguida à sua “matéria de
empréstimo”, os únicos assim susceptíveis de serem manipulados por
computadores, de circularem na internet” (Disponível em : http://www.educ.fc.ul.pt/hyper/resources/fbelo.htm;
Cf. também Belo, 2009).
8. Esta obra destaca igualmente um ponto
fundamental. Importa, tendo em conta o que foi dito, interrogar igualmente a
separação do conhecimento entre a componente humana e a parte física na linha
de alguns movimentos pós-ecologistas, um pensamento ecosófico (Maffesoli,
2010). Ou seja, de acordo com Isabelle Stengers, retomar um diálogo que se
perdeu nos começos da ciência moderna, voltar a uma “filosofia da natureza
unindo o conhecimento das humanidades com as ciências do físico” (p. 39). Esta
hipótese implica que se repense o “surgimento da divisão, no século XVII, entre
filosofia e ciência” tal como afirmam Ilya Prigogine e Isabelle Stengers na sua
obra “A Nova Aliança” (p. 39 e 40).
9. Sintetizando, este livro aborda as questões
complexas dos homens e dos objectos técnicos numa dimensão “híbrida” e nos
“fluxos que os atravessam”, como mostra Moisés de Lemos Martins no prefácio a
esta obra. Eis um interessante e estimulante livro focando algumas questões
cruciais do nosso tempo, num tom subtil e na força do impasse com que nos
suspende e nos re-lança, abrindo perspectivas, levantando questões e
deixando-as livremente em aberto para o debate transdisciplinar emergente.
Referências
bibliográficas:
Belo,
F., La philosophie avec sciences au XX siècle, Paris, L’Harmattan, Col.
Pour comprendre, 2009.
Chabot,
P., La Philosophie de Simondon, Paris, Vrin, 2003.
Felice, Massimo Di, Paisagens pós-urbanas: o
fim da experiência urbana e as formas comunicativas do habitar, São Paulo,
Annablume, 2009.
Heidegger, M., Língua de tradição e língua
técnica, Lisboa, Veja, 1995.
Maffesoli, M., Matrimonium: Petit traité
d'écosophie, Paris, CNRS, 2010.
Miranda, J. Bragança de, Envios, Uma
Experimentação Filosófica na Internet,
Lisboa, Vega, 2008.
Morin, E., O
Método, tomos 1 e 2, Lisboa, Ed. Europa-América, 1982.
Morin,
E.; e Kern, Anne B., Terra Pátria, Lisboa, Inst.Piaget, 1993.
Neves, J. Pinheiro, “Seres humanos e objectos
técnicos: a noção de “concretização” em Gilbert Simondon”, in Revista Comunicação
e Sociedade, nº12, 2007, pp.67-82.
Somville,
P., Essai sur la poétique d’Aristote, Paris, Vrin, 1975.
Luís de Barreiros Tavares
E-mail: lbtavaresster@gmail.com
Luís de Barreiros Tavares (2011) - "Leitura de O Apelo do Objecto Técnico de José Pinheiro Neves", Revista de Comunicação e Linguagens (RCL), nº42, Março de 2011 (pp. 296-301).
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