“A Vida e a Morte e outras
figuras…”
Alguns
apontamentos sobre Húmus de Raul
Brandão
Luís
de Barreiros Tavares
Luís de Barreiros Tavares, “A Vida e a Morte e outras figuras…” Alguns apontamentos sobre Húmus de Raul Brandão", Revista Nova Águia nº 20, 2º semestre, 2017, pp. 66-71, Zéfiro.
[A seguinte parte do título foi omitida por lapso na publicação em papel da revista: “A Vida e a Morte e outras figuras…”]
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[A seguinte parte do título foi omitida por lapso na publicação em papel da revista: “A Vida e a Morte e outras figuras…”]
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“O que tu vês é belo; mais belo o que
suspeitas; e o que ignoras muito mais belo ainda.”
(Dum autor desconhecido)[1]
“Não
é senão na hora do nosso crepúsculo que, enfim, descobrimos que estávamos no
paraíso e que vamos perdê-lo.”
(Eduardo Lourenço – Vence,
Setembro de 1983 – de um diário inédito e perdido)[2]
Nota
introdutória – Este
estudo limita-se à reelaboração de uma breve recolha de apontamentos e
sublinhados a partir de algumas leituras de Húmus
feitas há cerca de 25 anos: Raul Brandão, Húmus,
2ª edição, Paris – Lisboa, Livrarias Aillaud & Bertrand, 1921. Esta obra
foi pela primeira vez publicada em 1917.
*
I. Linguagem[3]
– Há como que uma
vida a par de outra, ou vidas que se desdobram e por vezes se confundem, se
trocam ou se separam pela linguagem:
“Construímos scenários e convencionámos que a
vida se passasse segundo certas regras. Isto é a consciência [ver VI] – isto é o infinito… Está tudo catalogado.
Na realidade jogamos à bisca entre a vida e a morte, baseados em palavras e
sons.” (Cap. “A Vila”, p. 16)
“Agarro-me com desespero ao hábito e às
palavras. Tu não existes! Tu não existes! O que existe é isto com que lido
todos os dias, as palavras que digo todos os dias, os sêres com quem falo todos
os dias.” (id., p. 17)
“E ainda
o que nos vale são as palavras, para termos a que nos agarrar.” (id., p.
18)
“Estamos enterrados
em convenções até ao pescoço: usamos as mesmas palavras, fazemos os mesmos
gestos.” (cap. “O
Sonho”, p. 25)
Há
o desenfreio da linguagem e há a ponderação da mesma. O desdobramento e/ou
multiplicação da vida em vidas, do ser em seres também se manifesta nestas
disposições da linguagem:
“Há palavras que requerem uma pausa e
silêncio, e há palavras que é preciso afundar noutras palavras. Há pelo menos
dois sêres neste homem que toda a gente conhece, pautado, regrado, metódico.
Êle e o doido morto por fazer esgares.” (id., p. 21)
A
impressão de que pode ter escapado o essencial:
“Há
momentos em que cada um grita: Eu não vivi! Eu não vivi! – Há momentos em que
deparamos com outra figura que nos mete mêdo. A vida é só isto?” (Cap. “A
Vila”, p. 17)
A
simultaneidade de dimensões reciprocamente intangíveis:
“[…] tenho de arcar com uma coisa imensa de
que apenas me separa um tabique. Tudo o que faço é um arremêdo. Está ali outra
coisa quando falo mais alto porque a ouço mexer…” (id., p. p. 22)
“Atrás do tabique e
das palavras anda a Vida e a Morte e outras figuras tremendas [ver II; ver o título deste estudo]. Atrás das palavras com que te iludes, de
que te sustentas, das palavras mágicas, sinto uma coisa descabelada e
frenética, o espanto, a mixórdia, a dor, as forças monstruosas e cegas.” (id.,
p. 23)
O
Gabiru tem também um papel decisivo na linguagem:
“É o Gabiru que se põe a falar sem tom nem
som. Um homem absurdo. Olhos magnéticos de sapo. É uma parte do meu ser que
abomino, é a única parte do meu ser que me interessa. Às vezes deita-me tinta
aos nervos. Fala quando menos o espero. Chamo-o, não comparece. Se quero ser
prático, gesticula dentro do casaco arripiado: – A alma! – a alma! – Singular
filósofo! É capaz de achar vulgares até as coisas eternas. Ao lado da vida
constrói outra vida.”
(Cap. “O Sonho”, p. 26)
Há
uma ambivalência com o Gabiru:
“À força de hábito
cheguei a mantê-lo no seu lugar, mas nunca o pude suprimir, e quanto mais me
aproximo da morte, mais saudades levo do Gabiru, que me estragou a vida toda [ver 2].” (id., p. 28)
*
II.
Morte e vida – A
morte, enquanto problema fundamental do humano nas suas interrogações (“O problema capital da vida é o problema da
morte”), amortece a vida enquanto
se vive. É por isso que se corre o risco de no final da vida exclamarmos: “Eu não vivi! Eu não vivi!” [ver acima cit.
p. 17]. Brandão alerta para esse facto. Eis um bom momento em vida para a
reavivarmos segundo o seu apelo antecipativo: se (“a morte é o que está mais
vivo”; “Os mortos é que estão vivos!...), então – com esta troca, este câmbio
temporal pela palavra em vida, uma vez que a morte vem supostamente depois –
tudo fica agora mais clarificado, trazido à luz pela linguagem. Deste modo manifesta-se
a condição de melhor compreensão das coisas, da realidade, no enigma e no próprio
mistério do seu entrelaçamento. Uma outra maneira, um outro sentido de perceber
a relação morte / vida. O amortecimento
da vida é esquecimento num estado de
sonho e sono de que tanto fala o narrador (Platão fala algures de um certo “viver
em sonho”). “O nosso sonho é não morrer.
Quando a gente se esquece a vida já tem passado” (ver IV). Amortecimento e
esquecimento seriam, à partida, um gesto de precaução e correspondente renúncia
parcial da vida (meia vida, metade de vida – ver III). Este gesto seria, por
seu turno, um abrandamento do choque da morte futura:
“– Não morrer é nada,
suprimi a morte. O que é preciso é arrancar os outros ao silêncio. É uma coisa simples,
é uma questão de síntese. – A morte, – afirmo-lho – é o repouso eterno. –
Repouso eterno, estúpido! É exactamente o que está vivo. Põe-se a olhar para
mim com olhos de espanto [ver V] sem se atrever a confessar-me a realidade
envolvida no sonho desconexo. E eu espero…” (Cap. “O Sonho”, p. 33)
“– O que eu quero é
tornar a viver. A minha saudade é esta. O que eu quero é recomeçar a vida gota
a gota, até nas mais pequenas coisas. Não reparei que vivia e agora e agora é
tarde. Sinto-me grotesco. Recomeçá-la nas tardes estonteadas da primavera e na
alegria do instinto. Encontrei há pouco uma árvore carcomida: deixaram-na de
pé, e um único ramo ainda verde desentranhou-se em flor… Pudesse eu recomeçar a
vida! – Cala-te! – Terei de confessar a mim próprio que nunca fui arrastado até
ao âmago pelo desespero ou pela paixão, e que de tal forma se me entranharam as
palavras e regras, que passe a vida a mascar palavras e regras? Terei de
confessar a mim mesmo que vou para a cova com a bôca a saber a vulgaridade e a
pó?” (id, p. 37)
Será interessante apresentar a
seguinte passagem um tanto extensa do Fédon
de Platão. Com efeito, Platão refere que os filósofos só em certo sentido já
estão mortos. Apesar de ser de algum modo explicitado, o passo “na verdade, as
gentes ignoram de todo em que sentido os autênticos filósofos estão já mortos,
em que sentido merecem morrer e de que morte” é crucial, mantendo-se, porém,
enigmático:
“Parece
evidente que o vulgo não percebe que os que se ocupam da filosofia como convém
não fazem outra coisa senão procurar a morte e o estado que a segue. Sendo
assim, hás-de reconhecer que seria absurdo alguém não ter procurado durante a
vida toda outro fim senão esse e, ao apresentar-se a morte, revoltar-se contra
uma coisa que procurava e praticava há tanto tempo.
Com
isto, Simias começou a rir-se:
--
por Zeus, Sócrates – disse --, dás-me vontade de rir, apesar do quase nenhum
desejo que ainda há pouco sentia. Estou convencido de que a maior parte das
pessoas, se te ouvissem, julgariam que tens inteira razão de falar assim dos
filósofos. A nossa gente de boa vontade concordaria contigo em que realmente os
filósofos já estão mortos e é bem sabido que eles têm o que merecem.
-- E
diriam a verdade, Símias, excepto numa coisa: que seja bem sabido. Na verdade,
as gentes ignoram de todo em que sentido os autênticos filósofos estão já
mortos, em que sentido merecem morrer e de que morte. Mas falemos apenas entre
nós e mandemos embora os outros. Não é verdade que acreditamos que a morte é alguma
coisa?” (Fédon, 63e-64d)[4]
Enfim, de que morte é que se está a
falar? E, claro, de que vida?
“Muitos nem dão pela
vida” (Cap. “O
Sonho em Marcha”, p. 90)
Abrindo
um parêntesis – Poderíamos
dizer que hoje em dia os filósofos já estão mortos, ainda num certo sentido.
Mas basta olhar para as novas formas como são construídas e transmitidas as notícias
sobre os mortos e sobre a morte pelos meios de comunicação de massa para
percebermos ou ficarmos com a vaga ideia de como também a grande maioria dos
espectadores já estão, também num certo sentido, mortos… os media idem…
*
III. Metade – Aquele amortecimento-esquecimento
(ver II) é também duplo-amortecimento, um meio-termo tanto da vida como da
morte. Não é pois propriamente um meio-termo ou “justo meio” saudável num
equilíbrio vital, sendo mais precisamente uma escapatória num certo estado de
sonho. Uma estranha metade. É o que parece mostrar-nos Brandão. Não é também
aquela metade apelando à outra
metade, como no símbolo; é um meio-termo frouxo:
“É que a morte regula
a vida. Está sempre ao nosso lado [ver
II], exerce uma influência oculta em
todas as nossas acções. Entranha-se de tal maneira que é metade do nosso ser.
Incerteza, dúvida, remorso… Nunca se cerra de todo a porta do sepulcro,
sentimos-lhe sempre o frio.” (Cap. “A Vila e o Sonho”, p. 50)
Mas
de seguida ocorre a possibilidade – a partir precisamente desse reforço de
constatação da morte que se “entranha” – do momento, num “agora”, do recíproco
reforço da vida:
“Agora não, a vida
pertence-nos. A morte não existe, desapareceu a morte [ver II]…” (id, p. 50)
Ainda
que pontual, mas abrindo para uma outra dimensão da “consciência” (ver VI),
termo usual nos monólogos-diálogos de Húmus. Mas:
“Ali
a um canto um ser desata a rir, a rir, a rir como nunca ninguém se riu.” (id., p. 50)
E ainda:
“Custa
muito a construir uma vida fictícia, a ser Teles ou a ser Santo, a criar um
Deus ou uma mania. Custa a melhor parte do nosso ser. É certo que metade disto
– metade pelo menos – é representado. Se te confessasses dirias: – Eu sou um
actor, eu sou um actor de mim mesmo: represento sempre até quando sou sincero;
até quando digo o que sinto, é outro, e noutro tom de voz, que diz o que sinto…
Cá estou a vê-lo representar … Mais de metade, muito mais de metade dos meus
sentimentos, são postiços.
(Cap. “Papéis do Gabiru” [II], p. 138)
*
IV. Sonho – “O
nosso sonho é não morrer”.
Mas com esse sonho pode-se, paradoxalmente e no limite, ver a vida passar ao
lado criando outra vida. Mas há muitas formas de sonho, que se comunicam ou não.
O sonho da vida que é não morrer vai-se tornando o sonho da outra vida.
Sonhando não morrer, a vida passou sem dar por ela. Foi-se criando outra vida
sonhando com ela e, porventura, com a outra:
“ E o pior é que êste
sonho é afinal o meu sonho e o teu sonho. Ninguém o confessa senão a si
próprio. O nosso sonho é não morrer. Quando a gente se esquece a vida já tem
passado. E quando a vida tem já passado é que nos agarramos com mais saudades à
vida. A resignação custa muitas horas doridas em que ficamos alheados e
suspensos. A morte… A morte é inevitável, como não lhe posso fugir, para não
perder tudo, criei a outra vida. E afinal quem sabe se êste sonho que a
humanidade traz consigo desde que pôs o pé no mundo não é o maior de todos os
sonhos e o único problema fundamental?” (Cap. “O Sonho”, p. 35)
Claro
que a outra vida pode também ser aquela de que nos fala o “padre Ananias”:
“Está certo o senhor?
Está certo o senhor padre Ananias, que depois desta vida há ainda outra vida de
que nos teem falado? Ou há só esta vida? Só esta?! E isto é uma comidela?” (Cap. “O Sonho em Marcha”, p. 88)
Mas
há muitos bons sonhos. Bons, no sentido, por exemplo, de nos permitirem
reflectir sobre a vida e a morte como é o caso de Húmus, narrativa também num estado de sonho, por vezes quase
delirante, aflorando a loucura, na sua lucidez ficcional.
*
V. Espanto – Em Húmus encontramos frequentemente
a palavra “espanto”. Paradoxalmente a palavra “espanto” é da ordem do
inominável. Tal como o Tempo:
“[…] esta coisa
imponderável que debalde tento deter – sem nome e a que se chama tempo –, que
nos usa, a que não ouço os passos e que caminha inalterável – tudo desapareceu
de vez. Respiro. E, modificada a ideia do tempo, tôdas as outras se alteraram
profundamente. Os sentimentos não são os mesmos.” (Cap. “O Sonho em Marcha”, p. 84)
Aqui,
Brandão parece ir na esteira de Santo Agostinho. É bem conhecida aquela sua
reflexão:
“O que é, por
conseguinte o tempo? Se ninguém mo perguntar, eu sei; se o quiser explicar, já
não sei.” (Sto.
Agostinho, Confissões, Livro XI, 14)[5]
O espanto caracteriza
o momento inaugural da filosofia. O espanto ou admiração (do grego thaumazein) é "as coisas serem como são" (Aristóteles, Metafísica. A2;
Platão, Teeteto 155d). Momento inaugural
enquanto exclamação e interrogação, negação e afirmação num estádio ainda não
antitético, de como o espectáculo do “ser-no-mundo” ((In-der-Welt-sein – Heidegger)[6] pode ser e pode não ser. Ou:
“não pode ser!”. A própria expectação do espanto guarda esse e “sim” e esse “não”
inaugurais. Thaumazein, que também é exclamação
/ interrogação, afigura-se como expressão ou gesto que, ao mesmo tempo e
originariamente, seja fundamento ou não (hoje parece já ter-se tornado moda a fuga ao fundamento), afirma e nega,
constata como podendo ser (“pode ser”), e suspende essa constatação com um “não
pode ser!” expressando surpresa, mas reiterando, no fundo, um “é mesmo!”.
Brandão intui esse sentido na inquietação que não deixa de guardar um fascínio
e uma perplexidade perante a imensidão, também assustadora na sua revelação, do
mundo, da vida, da morte, da noite, das coisas…:
“– Estamos aqui a
representar. Estamos aqui todos ao lado da morte e do espanto a jogar a bisca
de três. Estamos aqui a matar o tempo. Êste passo, que é único e um só, damo-lo
como se fôsse uma insignificância. Mais fundo: não existem senão sons
repercutidos. Decerto não passamos de ecos. Submeto-me, subjugas-me. Já não
reparo, já vejo turvo. – Jogo! – E repente todo o meu ser é sacudido pelo
espanto que tateia à minha roda.”
(Cap. “A Vila”, p. 18)
“Ninguém pode com semelhante pêso. Não há quem
possa com êle. Na solidão, a primeira coisa que procuro é a ninharia para
esquecer a morte. Um minuto sós a sós com o espanto, recamado de mundos, que
caminha desabaladamente no silêncio, dura um século e outro século ainda. Mão
posso, nem tu nem eu, viver sôbre o fio duma espada e olhar para a voragem dum
e de outro lado; não posso arcar todos os dias com esta usura que me gasta sem
mergulhar na insignificância. E agora até a insignificância me é impossível. O
silêncio… O pior de tudo é o silêncio e o que se cria no silêncio, o que eu
sinto que remexe no silêncio…
Carrega
em cima de nós tal pêso que ninguém o suportava se desse por êle. É o pêso do espanto.” (Cap. “O Sonho”, p. 37)
“Agora
é que eu contemplo a vida – e me perco na vida.
Começo a ter mêdo de mim mesmo e não me posso olhar sem terror. Que é isto,
êste sonho, esta dor, esta insignificância entre forças desabaladas? Onde
hei-de pôr os pés? Eu sou a árvore e o céu, faço parte do espanto, vivo e morro
ligado a isto. Sou temeroso e ridículo. Não me desligo do turbilhão azul, sem
nome, que me leva arrastado, estonteado, iludido, e ao mesmo tempo discuto,
nego e afirmo. Sou ridículo e construí o mundo. Sonho e acabo reduzido a pó.
Sou capaz de tudo e um nada me abate. Sou sórdido e fútil e não tenho limites – vou de mundo a mundo e de espírito a espírito.” (Cap. “A Vila e o
Sonho”, p. 61)
“Sou nada diante do
universo. Mas teimo, mas discuto
comigo e contigo, ó espanto, mas
defronto-me com o enigma, encarniço-me e saio daqui esfarrapado, despedaçado –
mas teimo e hei-de vencer-te. Não quero morrer de vez. Não quero perder a
consciência do universo nem a sensibilidade do universo. Eu sou o nada, tu és o
infinito – hei-de por fôrça vencer-te!” (Cap. “Papéis do Gabiru” [I], p.
72)
“Mesmo
que Deus não exista e a consciência seja uma palavra, há ainda outra coisa
indefinida e imensa diante de mim, ao pé de mim, dentro de mim. Vem a noite e
com a noite interrogo-me: – Existe? – O que existe é monstruoso. Não ouves os nossos gritos. O
que existe é o espanto. O que existe reclama dor. Sustenta-se de dor e não dá
por ela.
O que existe então é isto – é um ulular de dor na noite – no
turbilhão do escuro. O que existe são gritos, e eu sou levado, arrastado nesta
mistificação. Por trás de mim há uma coisa que me apavora, por trás de mim há
uma coisa cada vez mais sôfrega, cada vez mais frenética […]” (Cap. “O Sonho em
Marcha”, p. 100)
“Tudo o que existe na noite imensa, na noite ignóbil, é pior que
Deus. Tudo o que existe me faz horror, tudo o que existe entre as forças
desordenadas me causa espanto… E por mais que grite, por mais que proteste,
estou aqui diante do incompreensível, vivo no nada, de pé na voragem. E para lá
há uma coisa infinita, um negrume infinito, uma vida infinita. É imenso – é
inútil. Sou menos que nada.” (Idem, p. 101)
“Estou aqui defronte do espanto e sinto-me perdido na vastidão
infinita. Tudo o que disse – disse-o
diante do vácuo. Todo o meu desespêro, a minha dor, a renúncia, os esforços, o
calvário diante do vácuo!” (id. p. 101)
“– Estamos aqui a
representar. Estamos aqui todos ao lado da morte e do espanto a jogar a bisca
de três. Estamos aqui a matar o tempo. Êste passo, que é único e um só, damo-lo
como se fôsse uma insignificância. Mais fundo: não existem senão sons
repercutidos. Decerto não passamos de ecos. Submeto-me, subjugas-me. Já não
reparo, já vejo turvo. – Jogo! – E repente todo o meu ser é sacudido pelo
espanto que tateia à minha roda.”
(Cap. “A Vila”, p. 18)
O maior drama é ficar
só com o vácuo e em frente do espanto (Cap.
“O Sonho em Marcha”, p. 102).
*
VI. Consciência – Algumas vezes abordada em Húmus, a “consciência”
é a possibilidade do monólogo-diálogo e a condição de um certo confronto
ontológico. Ao mesmo tempo, em Húmus,
a consciência afigura-se tanto exterior como interior. Precisamente pelo facto
de ela confrontar o narrador com a morte e consigo. Morte e vida cruzam-se e atravessam
o seguinte passo subliminarmente na figura da consciência e do duplo. A
consciência acaba também por ser, de alguma maneira, essa tal outra vida que
está ao lado e que passa ao lado. Ela joga-se também naquela “metade” que já
referimos (ver III):
“Ponho-me a olhar
para ti, consciência, e exijo que me fites nos olhos e que me fales claro. Não
entarameles a língua. Em primeiro lugar diz-me o que és e o que significas:
mêdo, receio, uma voz que se cala se a miséria aperta ou a luxúria levanta a
cabeça. Um nada, uma voz tão tímida e tão pronta a sumir-se… Incomodas-me, é
certo, mas não impedes nada. Falas quando devias estar calada, não sabes o teu
papel e nunca entras a tempo. Herdei-te: és convenção e egoísmo alheio
entranhado no meu egoísmo, sintetizado em duas ou três regras para comodidade
dos outros. Fazes de mim uma presa fácil para quem não a tem.
“Estás em perpétua
contradição. Inutilizas-me metade da vida e nunca me pude desfazer de ti. Nesta
luta de todos os dias, quando me julgo livre, é quando te sinto todo o pêso.” (Cap. “Atrás do Muro”, p. 79)
“O que eu tinha era
mêdo. Mêdo da morte, mêdo da sombra [ver
II]. Só isto existia? Quando tudo em mim
me pregava que aproveitasse êste momento, que deste único momento extraísse
tudo que êle me podia dar – alguma coisa me detinha. Eras tu, consciência. E tu
não existias! Fale a lógica, fale a razão, fale também o instinto… A
consciência é sempre religiosa.” (id., p. 82)
“Porque, consciência,
o que importa é a parte interior – é a verdade sós a sós comigo, fechado a sete
chaves, e essa é temerosa. Não tentes iludir-me. Não podes mentir a ti mesmo.
Vê que passaste a vida a conter o mal – e o mal fez parte, quer queiras quer
não, da tua vida. O mal é pelo menos metade [ver III] do teu
ser. Agora sim – agora estou livre e atrevo-me.” (id., p. 83)
“Resta-nos a lógica e
a consciência. Mas a consciência admito-a, contanto que não me embarace. A
consciência que quiseres, contanto que não me amesquinhe, ou não me iluda. O
único juiz sou eu. O fim da minha vida não é dominar-me, é dominar-te.” (Cap. “Sonho em Marcha”, p. 85)
“O meu dever já não é
o mesmo dever, a minha consciência já não é a mesma consciência. Só os meus
instintos se conservam de pé.” (Cap.
“Deus”, p. 149)
O maior drama é o das
consciências. O maior drama é arredar todos os trapos da vida, para poder olhar
a vida cara a cara. O maior drama é ficar só com o vácuo e em frente do espanto
[ver V]. É dizer: nada disto existe. Só dou no meio
deste assombro com uma coisa desconexa e abjecta, a discutir comigo mesmo,
levado por impulsos. O maior drama é não encontrar razão para isto que vive de
gritos e se sustenta de gritos – e ter de arcar com isto. Perceber a
inutilidade de todos os esforços e fazer todos os dias o mesmo esforço. E isto
não nos larga. Sacode-nos e abala-nos até à raiz, numa discussão que nunca
cessa. Nem em mim, nem em ti, D. Leocádia.” (Cap. “O Sonho em Marcha”, p.
102)
*
VII.
A Vila – Todos os
anteriores temas se contextualizam também em certos meios sociais. Neste caso,
na vila. A vida aqui reduz-se à vila na tacanhez de certas mentalidades. No
narrador há um inconformismo que oscila por vezes entre um certo azedume e uma subtil
ironia. Todavia, ao longo de Húmus, e
não deixando de manter em jogo estas micro-escalas, Brandão estende o
pensamento às escalas cósmicas e infinitas. É surpreendente como elas se
alternam e se cruzam. O leitor oscila entre estas dimensões em abertura para
ambas:
“A vila é um
simulacro. Melhor: a vida é um simulacro” (Cap. “A Vila”, p. 20).
Também
a nossa “Aldeia global” é um simulacro?
“Estamos no céu e no
inferno, D. Idalina e a langonha. Estamos no céu e no inferno, Anacleto, e tu
ainda te enroscas na tua inalterável correcção. Não te desmanches! Estamos
emfim todos no céu e no inferno, e todos percebemos que a vida foi inútil. É
com gritos que a D. Leocádia reconhece que o escrúpulo não existe; é com espanto [ver cap. V] que ela percebe
que o bem que fêz foi inútil; é com horror que a D. Leocádia compreende que só
lhe resta o vácuo. A inteiriça D. Leocádia berra no infinito, depois de se
desfazer de todos os sentimentos falsos: – Mas eu cumpri sempre o meu dever! –
Há-de-te servir de muito! – E aqui te encontras diante desta coisa que não foi
feita para ti, aqui estás tu atirada de repente para uma acção sem limites, com
os cabelos em pé, – tu D. Leocádia e o infinito; tu D. Leocádia que moravas
entre quatro paredes a rever salitre, e agora tens de morar no céu e no
inferno. O drama é tu, D Leocádia, não te poderes desfazer da outra D.
Leocádia; o drama supremo é tu sêres ao mesmo tempo, D. Leocádia 29-3.º-D. e D.
Leocádia Infinito.” (Cap. “Céu e Inferno”, p. 218)
“A D. Adélia não
existe, o que aqui está vem de muito longe. Está aqui a paciência com um chale,
a mentira com uma cuia de retrós – estão aqui espectros. O que está aqui, com o
infinito em cima e o infinito em baixo, são fantasmas. Todos praticam as mesmas
acções banais entre a vida e a morte, mas eu vejo o riso sem bôca e ouço o
grito de dor, emquanto as máscaras se transformam e a matéria se decompõe. Eu
vejo o que há dentro deste ser, que não tem limites, o que há dentro deste ser
de real e verdadeiro. Cada um assume proporções temerosas. Caem lá dentro
palavras, sentimentos, sonho – é um poço sem fundo, que vai até à raiz da vida.
À superfície todos nós nos conhecemos. Depois há outra camada, outra depois.
Depois um bafo.” (id.,
p. 225)
*
Nota final – Em Húmus, Raul Brandão faz
coabitar uma profunda inquietação e um muito especial sentido de humor. Extraordinária
reflexão sobre a existência, a vida e a morte. Profunda experiência literária,
no seio da qual transitamos no labirinto e no mistério da interioridade e da
exterioridade:
“À força de hábito
cheguei a mantê-lo no seu lugar, mas nunca o pude suprimir, e quanto mais me
aproximo da morte, mais saudades levo do Gabiru, que me estragou a vida toda.” (Cap. “O Sonho”, p. 28)
“Estou
aqui defronte do espanto e sinto-me perdido na vastidão infinita. Tudo o que
disse – disse-o diante do vácuo.” (Cap. “O Sonho em Marcha”, p.101)
“Cada vez descubro em mim um subterrâneo mais fundo” (Cap. “Os
Papéís do Gabiru”, p.72)
*
Post
scriptum:
“E o
silêncio é cada vez maior. Só a água fala nos buracos puídos das pedras, em
diálogos que nunca cessam…” (Cap. “A Velha e os Ladrões”, p.166)
“É
preciso
criar palavras, sons, palavras vivas
obscuras, terríveis.
–
Ouves o grito dos mortos?”
É preciso matar,
outra vez,
os mortos”
(Herberto
Helder, Húmus – excerto do
poema-montagem a partir de Húmus de
Raul Brandão –
in Ou o Poema Contínuo, Assírio & Alvim
)
[1] Inscrição na capa da edição que seguimos neste estudo.
[2] Eduardo Lourenço in Mythologie de la Saudade, Essais sur la mélancolie portugaise, (3ª
édition, Abril 2017), trad. Annie de Faria, Chandeigne, Bibliothèque Lusitane,
(1ª edição, 1997).
[3] Seguimos
a ortografia da edição mencionada.
[4] Platão, Apologia
de Sócrates, Críton, Fédon, trad. Fernando Melro, Lisboa, Europa-América. Platon, Apologie de Socrate, Criton, Phedon,
trad. E. Chambry, Paris, Flammarion, 1965.
[5] Santo Agostinho, Confissões,
trad. J. Oliveira Santos e A. Ambrósio de Pina, Braga, Livraria Apostolado da
Imprensa, 1990.
[6] Jean-Pierre Cotton, Heidegger, Seuil, col. écrivains de toujours, 1974.
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