Comunicação apresentada no Seminário de Psicanálise no âmbito da Antena do Campo Freudiano (ACF) - 18/06/2014.*
*Texto com algumas alterações e acrescentos.
“Há algo de terrivelmente soez na mente moderna; as pessoas, que toleram
toda a espécie de mentiras indignas na vida real e toda a espécie de realidades
indignas, não suportam a existência da fábula. E isso é a obra de Pessoa: uma
fábula, uma ficção.”
Octavio Paz, Fernando Pessoa, o
desconhecido de si mesmo (1961)
“Registo, dia a dia, as impressões que formam a substância externa da
minha consciência de mim. Ponho-as em palavras vadias, que me desertam desde
que as escrevo, e erram, independentes de mim, por encostas e relvados de
imagens, por áleas de conceitos, por azinhagas de confusões.”
Bernardo Soares, Livro do
Desassossego
1. Há um ponto
que me parece importante na escrita poética de Pessoa, seja em prosa ou em
verso. Diria que é a função de escriturário profissional de Pessoa que entra em
jogo, num jogo de distâncias e proximidades com a sua escrita poética ou
literária. Daí também o estranho e inovador aspecto descritivo que se desenrola
nos seus textos, tanto em prosa como em verso, sugerindo uma certa secura,
motivo que talvez tenha levado Teixeira de Pascoaes a não o ter compreendido
como pleno poeta. Não é por acaso que Alain Badiou, no seu texto “Uma tarefa
filosófica: ser contemporâneo de Pessoa”, apresentado no colóquio de Cerisy em
1997 e constando no seu livro Pequeno
Manual de Inestética (1998), nos
fala da eventual ‘secura’ que referimos: passo citar - “Mas devemos ser
sensíveis, na obra completa de Pessoa, a um materialismo poético bastante
particular. Se bem que seja um grande mestre da imagem surpreendente, este
poeta reconhece-se à primeira leitura numa espécie de nitidez quase seca do
dizer poético. É, aliás, por isso, que ele consegue integrar na própria sedução
poética, uma dose excepcional de abstracção.”
Com efeito,
este aspecto apontado por Badiou tem a ver, do nosso ponto de vista, com a
narrativa pessoana, se assim se pode dizer, na sua articulação com certas
funções profissionais do homem Fernando Nogueira Pessoa. Como sabemos ele foi
escriturário e tradutor em várias empresas ou firmas, “correspondente estrangeiro
em casas comerciais”, definição profissional de Pessoa ele próprio. Leia-se
Maria Augusta Babo no seu interessante texto “O Livro do Desassossego, uma escrita sobre a escrita”, que se
encontra no seu livro intitulado A
escrita do livro, considerando Bernardo Soares “um copiador, um escrevente”.
Citemos Augusta Babo: “Quem é, afinal, o autor do livro [LdD]? Curioso será atentar no facto de tanto para o primeiro autor,
Vicente Guedes, como para o segundo e definitivo, Bernardo Soares, a profissão
ser uma e a mesma: ajudante de guarda-livros/correspondente estrangeiro.
Curiosa coincidência esta, a de um anónimo que guarda livros, escritor mas não autor, na medida em que a sua
escrita reside, até à morte, inédita, e cuja profissão é a de reduzir ao
anonimato a função da escrita. Ele é um copiador, um escrevente. A escrita,
para ele, faz-se directamente no livro, ela é mesmo já livro, registo, memória,
mas, apesar disso, ela não passará nunca de uma “escrita prosaica” [expressão
de Alfredo Margarido] aquela que o ocupa no quotidiano da sua vida.” Sabemos, por outra parte, das afinidades profissionais entre
Fernando Pessoa e o seu semi-heterónimo Bernardo Soares. Diríamos que um certo
relato poético pessoano tem paralelos com os processos dos relatórios de contas
e respectivas escrituras ditas comerciais de que Pessoa se ocupou
profissionalmente. O seguinte passo de Judih Balso ajuda-nos a perceber este processo: "(...) a personagem de Bernardo Soares sucede à de Vicente Guedes, primeiro esboço da personagem do guarda-livros, que redige o seu diário pessoal nas margens dos seus grandes livros contabilísticos." (Judith Balso, Pessoa, Entre a Terra Nula e o Céu que não Existe, Instituto Piaget, p.19). Citemos Eduardo Lourenço em O Lugar do Anjo na seguinte passagem que termina descrevendo Pessoa
como ““contabilista” neutro”: passo então a citar “Aquilo a que Lipovetski
chama a Idade do Vazio tinha já os seus escribas épicos ou burlescos de génio,
de Kafka a Beckett e Ionesco, ou os seus comentadores como Cioran; mas ainda
não dispunha do seu “contabilista neutro” (p.107). Por vezes tem-se a sensação
de uma listagem de descrições, de um inventário, de um trabalho de registo, ou
de arquivo, atravessando a escrita pessoana, nomeadamente em Soares. Como se
fosse um eco da sua vida profissional. Um eco, transformando-se, todavia, não
sabemos bem como, numa extraordinária e estranha literatura. Mas também no “mais
belo e inútil dos diamantes
literários” que é o Livro do Desassossego
nas palavras de José Martinho. Numa passagem literalmente lapidar, digamos
assim, no seu livro Pessoa e a
Psicanálise pode ler-se o seguinte: “À partida o Livro funciona como uma pia para os refugos da escrita. Mas à medida que o lixo se acumula, começa a sedimentar-se no esgoto uma espécie de
pedra preciosa em bruto, que passa a ser trabalhada com um cuidado extremo, que
se torna por vezes exclusivo. É precisamente a reciclagem literal deste lixo
que acaba por fazer do Livro o mais belo e inútil dos diamantes literários.”
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2. A título de exemplos, passo a ler várias passagens do dito Livro que poderão clarificar as articulações entre a escrita profissional e a literária ou poética na relação a vários níveis entre escrita, descrição e sensações: 1ª: «Tenho ternura, ternura até às lágrimas, pelos meus livros de outros em que escrituro, pelo tinteiro velho de que me sirvo, pelas costas dobradas do Sérgio, que faz guias de remessa um pouco para além de mim» (LdD., 7, na edição de R.Zenith). 2ª: «E, com um sorriso que guardo para meu, lembro que a vida, que tem estas paginas com nomes de fazendas e dinheiro, com os seus brancos, e os seus traços á regua e de lettra, inclue também os grandes navegadores [...]» (LdD., I, 150, p.166). 3ª: «Escrevo como quem dorme e toda a minha vida é um recibo por assignar (Ibid., I, 211)». 4ª: “Em certa altura da cogitação escripta, já não sei onde tenho o centro da attenção – se nas sensações dispersas que procuro descrever, como a tapeçarias incognitas, se nas palavras com que, querendo descrever a propria descripção, me embrenho, me descaminho e vejo outras cousas” (Bernardo Soares, LD, 304, p.307). E por último a 5ª: “As phrases que nunca escreverei, as paisagens que não poderei nunca descrever, com que clareza as dicto, à minha inercia e as descrevo na minha meditação, quando recostado, não pertenço, senão longinquamente, à vida. Talho phrases inteiras [...]” (LD, tomo II, Ática, trecho 368).
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2. A título de exemplos, passo a ler várias passagens do dito Livro que poderão clarificar as articulações entre a escrita profissional e a literária ou poética na relação a vários níveis entre escrita, descrição e sensações: 1ª: «Tenho ternura, ternura até às lágrimas, pelos meus livros de outros em que escrituro, pelo tinteiro velho de que me sirvo, pelas costas dobradas do Sérgio, que faz guias de remessa um pouco para além de mim» (LdD., 7, na edição de R.Zenith). 2ª: «E, com um sorriso que guardo para meu, lembro que a vida, que tem estas paginas com nomes de fazendas e dinheiro, com os seus brancos, e os seus traços á regua e de lettra, inclue também os grandes navegadores [...]» (LdD., I, 150, p.166). 3ª: «Escrevo como quem dorme e toda a minha vida é um recibo por assignar (Ibid., I, 211)». 4ª: “Em certa altura da cogitação escripta, já não sei onde tenho o centro da attenção – se nas sensações dispersas que procuro descrever, como a tapeçarias incognitas, se nas palavras com que, querendo descrever a propria descripção, me embrenho, me descaminho e vejo outras cousas” (Bernardo Soares, LD, 304, p.307). E por último a 5ª: “As phrases que nunca escreverei, as paisagens que não poderei nunca descrever, com que clareza as dicto, à minha inercia e as descrevo na minha meditação, quando recostado, não pertenço, senão longinquamente, à vida. Talho phrases inteiras [...]” (LD, tomo II, Ática, trecho 368).
A par
disto, através de um processo de certo modo constativo, as palavras e as frases
como que retumbam, ressoam nelas mesmas e umas nas outras. Produz-se assim um
efeito ecoante da voz e de possíveis múltiplas vozes, o que permite um efeito
de espaço, ou de “espaço literário”, para usar uma expressão de Blanchot. As
frases traçam-se como linhas ou “lançamentos” (termo empregue por Soares)
desdobrando-se noutras linhas.
A escrita
desenrola-se, como que se desembrulha, graças em parte à sua sintaxe, mas
também devendo-se ao próprio contexto de escriturário, correspondente
estrangeiro, que lida com envelopes, cartas como se se tratassem de estranhas
formas cruzadas com estranhos conteúdos folhas pautadas, constituindo o
trabalho do tal “contabilista neutro”, a partir do qual se inicia o processo
literário do Livro.
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3. Ora, é
partindo daqui que se poderá falar um tanto esquematicamente de três instâncias
de escrita. Peguemos neste exemplo que passo a citar: “Escrevo atentamente,
curvado sobre o livro em que faço a lançamentos a história inútil de uma firma
obscura; e ao mesmo tempo o meu pensamento segue, com igual atenção, a rota de
um navio inexistente por paisagens de um oriente que não há. As duas coisas
estão igualmente nítidas, igualmente visíveis perante mim: a folha onde escrevo
com cuidado, nas linhas pautadas, os versos da epopeia comercial de Vasques e
C.ª (…).”
1ª
instância: a materialidade e corporalidade, pura ou em bruto, do escrever; ou
seja, passo a citar: “escrevo com cuidado, nas linhas pautadas…; trata-se da
materialidade da escrita enquanto tal, ainda em certa medida sem sentido 2ª
instância: a dimensão do acto de escrita: “Escrevo atentamente, curvado sobre o
livro em que faço a lançamentos…”; aqui já há corporalidade e a descrição do
acto de escrever, tem a ver com a materialidade, mas desloca-se para outra
contextualização que não só a da folha e as linhas pautadas 3ª instância: a
dimensão da descrição, de um estado de coisas, reportando-se habitualmente ao
que é da ordem, do dizer, do conteúdo poético ou literário, dos conteúdos de
sentido e, ao mesmo tempo, reenviando para algo de abstracto; cito: “a história
inútil de uma firma obscura; e ao mesmo tempo o meu pensamento segue, com igual
atenção, a rota de um navio inexistente por paisagens de um oriente que não
há.” Ou ainda “…os versos da epopeia comercial de Vasques e C.ª…” Estas três
instâncias entrelaçam-se. E a articulação escrever/descrever abre por seu turno
para um campo difícil de definir, tendo a ver com outras formas de imaginação,
de sensações, mas também condição de possibilidade de pensar inovadoramente o
real e o sonho nesta oscilação entre a vida e a ficção.
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4. Mas
tentemos analisar mais três passagens do Livro:
1ª “Esta mesa, a que estou escrevendo [isto é, na qual Bernardo Soares
escreve], é um pedaço de madeira, é uma mesa, e é um móvel entre outros aqui
neste quarto. A minha impressão desta mesa, se a quiser transcrever [poderemos
supor que neste passo de Soares “transcrever” é correlativo de “descrever”],
terá de ser composta com as noções de que ela é de madeira, de que eu chamo
àquilo uma mesa e lhe atribuo certos usos e fins, e de que nela se reflectem,
nela se inserem, e a transformam, os objectos em cuja justaposição ela tem alma
externa, o que lhe está posto em cima” (LD, Assírio & Alvim, trecho 58). A
própria sensação («impressão») da mesa constitui-a, em articulação, como
elemento fazendo corpo com o acto corporal de escrever. Repare-se no
interessante retrato de Pessoa que Almada Negreiros fez em duas versões (em
1954 para o restaurante Irmãos Unidos e em 1964 para a Gulbenkian). Ou seja,
como se, de alguma maneira, a mesa também escrevesse. Aliás, não é a mesa, um
dos apetrechos do trabalho da escrita, juntamente com a caneta, o papel, a
tinta, o tinteiro, o mata-borrão, o papel, o corpo escrevente de Soares
debruçado, o próprio quarto, por exemplo, etc.? Ainda sobre o sensacionismo
gostaria de não omitir o que caracteriza alguns textos de Mário de Sá-Carneiro
como um sensacionismo da carnalidade, da sensualidade e de um erotismo
extraordinários. Leia-se por exemplo, A
Confissão de Lúcio. Grande amigo de Pessoa, o também genial Mário de
Sá-Carneiro suicidou-se aos 25 anos em Paris.
2ª
passagem: «Nem olho o dia, para ver o que ele tem que me distraia de mim, e,
escrevendo-o, eu aqui em descrição» (LD, Assírio & Alvim, trecho 99).
Tentemos ler: «Escrevendo-o»: (escrevendo isso que estou a escrever); «eu aqui
em descrição» (e descrevendo-o). 3ª passagem: «estendendo a mão para a caneta esquecida,
reentro, gráfico, na saúde anónima da vida normal» (LD, Assírio & Alvim,
trecho 409). Precisamente, este envio para a «vida normal», por exemplo,
não deixa de reenviar o gesto «estendendo a mão para a caneta esquecida». É
este vai-e-vem de navette entre o espaço-tempo do real (ou do sonho?),
de um estado-de-coisas do «protagonista» (segundo a expressão de Richard Zenith
referindo-se a Soares no Livro do Desassossego), por um lado, e o
estender a «mão para a caneta esquecida», por outro, que inaugura uma dimensão
de escrita, inovando, digamos assim, por seu turno, a dimensão descrita.
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5. Portanto,
escrever, na sua dimensão propriamente material e corporal (1ª instância), e
descrever, na sua dimensão imaginária, da ordem ficcional literária (3ª
instância), cruzam-se ou melhor, interseccionam-se, para usar um termo de
Pessoa, na passagem do acto ou ao acto de escrever (2ª instância) que por si
mesmo se investe naquelas duas e reciprocamente. Mas abre-se assim um arco ou
um campo por fora. Esta operação é condição de possibilidade de pensar o sonho
e a vida ou o real abrindo novos caminhos ao pensamento e à filosofia. Na obra
já citada não fala Badiou do "pensamento-poema" em Fernando Pessoa? Nesse
texto Badiou considera Pessoa como um "dos poetas decisivos deste século
e, particularmente, se se procurar pensá-lo como condição possível da
filosofia" (op.cit.p. 57)?
Mas Pessoa
não precisa de estar sempre a escrever sobre a escrita. No entanto, quando já
se tem alguma leitura deste poeta começa-se a sentir que vários planos ou
instâncias da escrita se inscrevem na sua poética.
A
articulação das três instâncias da escrita, que poderão desdobrar-se em
gradações, tem precisamente a ver com a produção de novas formas de leitura.
Produz-se assim como que uma espécie de curto-circuito, subvertendo os
critérios habituais do que é o lugar do leitor e o do escritor. Mas neste
cruzamento por dentro, como já dissemos, abre-se um campo por fora que não
sabemos bem definir. Estas instâncias parecem confundir-se, como que fazendo
parte de todo o conteúdo. Todavia, elas distinguem-se nesse movimento dinâmico
de confusão, reformulando-se. E é isso que mantém um campo aberto ao
pensamento.
O leitor
perde de certa forma as referências habituais do sujeito poético, do sujeito da
enunciação e do Eu. Alain Badiou, quase no final do seu texto já citado,
escreve: “Quando abrimos Pessoa, temos rapidamente a convicção de que ficamos
cativos dele” (p.68). Por outro lado, perguntamo-nos, estamos com Pessoa ou com
Bernardo Soares?
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6. Talvez faça algum sentido ler o que o filósofo italiano Giorgio Agamben escreve sobre a subjectivação e dessubjectivação em Fernando Pessoa. No seu livro intitulado O que resta de Auschwitz encontra-se esta passagem: “Na poesia do século XX, o testemunho mais importante, talvez, de uma dessubjectivação – da transformação resoluta de um poeta em puro e simples “campo de experimentação” do Eu – e das suas eventuais implicações éticas – é a carta de Pessoa sobre os heterónimos. Respondendo a 13 de Janeiro de 1935, ao seu amigo Adolfo Casais Monteiro, que lhe perguntou pela origem dos seus numerosos heterónimos, começa por apresentá-los como o resultado de uma “tendência orgânica e constante à despersonalização.” Eu deixaria aqui as seguintes questões sem saber quais as respostas, aos psicanalistas, psicólogos e filósofos aqui presentes: Em que medida esta despersonalização” de que fala Pessoa e a “dessubjectivação” de que fala Agamben enquanto “transformação de um poeta em puro e simples “campo de experimentação” do Eu” poderão reenviar para a questão do Outro?
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6. Talvez faça algum sentido ler o que o filósofo italiano Giorgio Agamben escreve sobre a subjectivação e dessubjectivação em Fernando Pessoa. No seu livro intitulado O que resta de Auschwitz encontra-se esta passagem: “Na poesia do século XX, o testemunho mais importante, talvez, de uma dessubjectivação – da transformação resoluta de um poeta em puro e simples “campo de experimentação” do Eu – e das suas eventuais implicações éticas – é a carta de Pessoa sobre os heterónimos. Respondendo a 13 de Janeiro de 1935, ao seu amigo Adolfo Casais Monteiro, que lhe perguntou pela origem dos seus numerosos heterónimos, começa por apresentá-los como o resultado de uma “tendência orgânica e constante à despersonalização.” Eu deixaria aqui as seguintes questões sem saber quais as respostas, aos psicanalistas, psicólogos e filósofos aqui presentes: Em que medida esta despersonalização” de que fala Pessoa e a “dessubjectivação” de que fala Agamben enquanto “transformação de um poeta em puro e simples “campo de experimentação” do Eu” poderão reenviar para a questão do Outro?
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7. Mas
voltando aos tempos e instâncias da escrita. Estas gradações temporais de
escrita ou da linguagem em Bernardo Soares, que poderão multiplicar-se e
cruzar-se entre si, estruturam-se num certo desfasamento de tempos e do tempo.
Este desfasamento, resultante dos vários estratos ou momentos inscritos no
processo de escrita, permite, por assim dizer, uma relação de distâncias, tanto
no trabalho de escrita como no de leitura, quer dizer, tanto no escritor, como
no leitor. Todavia, é através desse desfasamento que Pessoa e neste caso Soares
viveu o seu tempo. Precisamente, um certo desfasamento caracteriza-se,
segundo Agamben, pelo ser contemporâneo,
no seu breve e interessante texto “O que é o contemporâneo?”: “A
contemporaneidade é pois uma singular relação com o seu próprio tempo, ao qual
se adere tomando contudo suas distâncias, ela [a contemporaneidade] é
precisamente a relação ao tempo que a ele adere pela desfasagem e o
anacronismo” (p.11). Ora, nos nossos dias, com o imediatismo, a
instantaneidade, a aceleração instalada e a velocidade – estranha contradição
de presença e ausência – corremos o risco de não viver, em grande parte, o
nosso tempo. Não por desfasamento, mas, precisamente por não o pormos em jogo.
E a maioria da literatura e da poesia actuais, do nosso ponto de vista, corre
também esses riscos, de tão aderente, de tão coincidente, sem desfasagem e
anacronismo, de tão demasiadamente facilitada por força do ritmo dos mercados,
etc.. Isto terá eventualmente implicações sociais, políticas e ontológicas e,
porque não psicanalíticas que valerão a pena ser estudadas. É que, ser
coincidente com seu tempo, no sentido de ser actualizado, não é ser
contemporâneo, na perspectiva ainda de Agamben: “Aquele que pertence
verdadeiramente ao seu tempo, o verdadeiro contemporâneo, é aquele que não
coincide perfeitamente com ele nem adere às suas pretensões, e define-se, neste
sentido, como inactual; mas, precisamente por esta razão, precisamente por este
intervalo e este anacronismo, ele está mais apto do que os outros a perceber e
a atingir o seu tempo” (op.cit., pp. 9-10).
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8. Faria aqui
uma ponte entre esta desfasagem de que fala Agamben e a simulação segundo
Pessoa relativamente aos heterónimos e à escrita. Pois Agamben não completou a
citação da frase de Pessoa na carta a Casais Monteiro, omitindo a palavra
“simulação”. Com efeito, vivemos hoje em actualização e desactualização
permanentes. Basta atentarmos no processo informacional das notícias nos nossos
dias que se substituem a todo o momento até na sua variabilidade. De súbito
deixamos uns dias de ouvir falar da guerra da Síria e passamos para Bagdad ou
Ucrânia. Mas a Síria continua entretanto. É como um menu a servir com reclames pelo meio. O tempo passa tão depressa,
mas só passado algum tempo é que nos damos conta por que passa. Que é como quem
diz, como se não tivéssemos passado por ele ou ele por nós. Ora, se jogarmos na
nossa própria vida com a imaginação do passado e do futuro, como se os
vivêssemos realmente, ainda que os simulando mas de uma certa maneira, o
presente adviria com a sua densidade. Porquê? Porque o presente jogaria assim
com o jogo do passado e do futuro. Viveríamos o presente mais intensamente sem
o recurso permanentemente automático e instantâneo dos imaginários que nos são
servidos de “bandeja” pelas grandes reconstituições e antecipações tecnológicas
dos ecrãs, da alta definição, do 3D, etc. É por isso que uma boa banda
desenhada - por exemplo Tintim (Hergé), Blake and Mortimer (E.P. Jacobs), Corto
Maltese (Hugo Pratt), Astérix (Uderzo e Goscinny), Spirou e Fantásio (Spirou criado por Rob-Vel), e mais um ou outro – nos mergulha no imaginário e na imaginação reenviando-nos ao real e ao pensamento. Não
é o filósofo Michel Serres um Tintinolatra (vj. vídeo http://youtu.be/ZcnwGCVbfaw )? Nada têm
a ver, nem de perto nem de longe, com o perfeccionismo da alta definição, da
alta resolução, tão-pouco do 3D. Também não são imagens em movimento, ao que
parece. Não é que devamos dispensar-nos das altas tecnologias. Pelo contrário.
Mas um contraponto impõe-se, no exemplo que demos aqui da BD, e de muitos
outros modos. Cada vez mais temos dificuldade em ficcionar por nós vivendo-o
como tal. Trata-se de simular, mas de jogar com a própria simulação
reforçando-a, redobrando-a, para a negar e apreendê-la de outra maneira,
contrapondo-a ao real, mas, desta feita e deste modo intensificando-o.
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9. No Littré, mencionado por Jean Baudrillard em Simulacres et Simulation, opera-se a distinção entre “fingir” e “simular”. Citemos Baudrillard: “Dissimular é fingir não ter o que se tem. Simular é fingir ter o que não se tem. Um reenvia a uma presença, o outro a uma ausência. Mas a coisa é mais complicada, pelo que, simular não é fingir: “aquele que finge uma doença pode simplesmente deitar-se na cama e dar crer que está doente. Aquele que simula uma doença determina em si alguns sintomas.” Assim, fingir, ou dissimular, deixam intacto o princípio de realidade: a diferença é sempre clara, não é senão mascarada. Enquanto que a simulação repõe em causa a diferença do “verdadeiro” e do “falso”, do “real” e do “imaginário”.”
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9. No Littré, mencionado por Jean Baudrillard em Simulacres et Simulation, opera-se a distinção entre “fingir” e “simular”. Citemos Baudrillard: “Dissimular é fingir não ter o que se tem. Simular é fingir ter o que não se tem. Um reenvia a uma presença, o outro a uma ausência. Mas a coisa é mais complicada, pelo que, simular não é fingir: “aquele que finge uma doença pode simplesmente deitar-se na cama e dar crer que está doente. Aquele que simula uma doença determina em si alguns sintomas.” Assim, fingir, ou dissimular, deixam intacto o princípio de realidade: a diferença é sempre clara, não é senão mascarada. Enquanto que a simulação repõe em causa a diferença do “verdadeiro” e do “falso”, do “real” e do “imaginário”.”
Seria
interessante analisar o fingimento em Pessoa à luz do seu célebre poema
Autopsicografia: “O poeta é um fingidor, finge tão completamente, que chega a
fingir que é dor a dor que deveras sente. Quanto ao ‘simular’ e à ‘simulação’
relembremos a célebre carta a Adolfo Casais Monteiro: “Seja como for, a origem
mental dos meus heterónimos está na minha tendência orgânica e constante para a
despersonalização e para a simulação. “ Como referimos acima, Agamben não
completa a frase ao citá-la, omitindo a palavra “simulação”. Ora, parece-nos que
nesta frase a “despersonalização” mantém nexos, que ainda não sabemos bem quais,
com a “simulação”. O que abrirá ainda um campo de análise entre estas duas
temáticas. Portanto, apesar de termos feito aqui algumas abordagens, estas questões
permanecem em aberto…
Todavia
deixamos uma nota final. Naquelas instâncias e gradações de escrita que
tentámos ler neste estudo há um jogo de simulações de tempos vividos. Pessoa
parece subverter e relançar em jogo o fingir e o simular através da escrita,
das escritas e da heteronímia.
Referências bibliográficas:
I
Fernando
Pessoa, Textos de Intervenção Social e Cultural. A ficção dos heterónimos,
Introduções, organização e notas de António Quadros, Europa-América, 1986.
Fernando
Pessoa, Poesia II, 1930-1933, Introdução e organização de António
Quadros, 1986.
Fernando
Pessoa, Obra em Prosa, Páginas sobre Literatura e Estética, org. António
Quadros, Europa-América, 1986.
Fernando
Pessoa, Livro do Desassossego, por Bernardo Soares, recolha e
transcrição Maria Aliete Galhoz e Teresa Sobral Cunha, prefácio e org. Jacinto
do Prado Coelho, Ática, 1982.
Fernando
Pessoa, Livro do Dasassossego, composto por Bernardo Soares, org.
Richard Zenith, Assírio & Alvim, 2011.
II
Alain
Badiou, Meditações Filosóficas, Pequeno Manual de Inestética,
Volume II, trad. Joana Chaves, Ed. Instituto Piaget, 1999.
Judith Balso, Pessoa, Entre a Terra Nula e o Céu que não Existe [título na edição original em francês: Pessoa, le passeur métaphysique, Instituto Piaget,, 2006.
Judith Balso, Pessoa, Entre a Terra Nula e o Céu que não Existe [título na edição original em francês: Pessoa, le passeur métaphysique, Instituto Piaget,, 2006.
Eduardo
Lourenço, O Lugar do Anjo, Lisboa,
Gradiva, 2004.
Giorgio
Agamben, Bartleby – A Escrita da Potência
“Bartleby ou Da Contingência”; seguido de Bartleby, o Escrivão de Herman Melville, trad. Pedro A.H. Paixão,
Assírio & Alvim, 2007.
Giorgio Agamben, Qu’est-ce que le contemporain?,
trad. Maxime Rovere, Rivages, 2008.
Jean Baudrillard, Simulacres et Simulation, Paris, Galilée, 1985.
Jean Baudrillard, Simulacres et Simulation, Paris, Galilée, 1985.
José Gil, Fernando
Pessoa ou a Metafísica das Sensações, Lisboa, Relógio D’Água, 1988.
José
Martinho, Pessoa e a Psicanálise,
Lisboa, Almedina, 2001.
Maria
Augusta Babo, A Escrita do Livro, Lisboa, Vega, col. Passagens, 1993.
Octavio Paz,
Fernando Pessoa, o desconhecido de si
mesmo, trad. Luís Alves da Costa, Lisboa, Vega, 1992.
O §4. procede de um outro texto: Luís Tavares, (2014), 1º semestre, «Escrever e descrever em Fernando Pessoa», Nova Águia, nº13, pp. 179-183.
Esta
comunicação foi apresentada durante uma sessão do Seminário de Psicanálise
dirigido por José Martinho (todas as quartas-feiras, 12h30-14h30) na Galeria
Espaço Arte Livre, Avenida da Liberdade, 65, 1º, em Lisboa. A entrada é livre.
Antena do Campo Freudiano (ACF). 18/6/2014.
Agradeço a
José Martinho o convite que me endereçou para esta intervenção.
Almoçarada após a sessão...
Da esquerda para a direita: Jorge Gonçalves, Luís Tavares, Filipe Pereirinha, Joana Gonçalves, João Guedes, Selma Calasans Rodrigues, Pia Hylén...

E numa almoçarada anterior...
Na foto de baixo. Da esquerda para a direita: João Guedes, Joana Gonçalves, Gisele Fernandes, Georgia Macedo, Pia Hylén, Fernando Cavaco, Luís Tavares
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