“[…] Aproveitar o tempo!
Desde que comecei a escrever passaram cinco minutos.
Aproveitei-os ou não?
Se não sei se os aproveitei, que saberei de outros
minutos? […]” ( “Apostila”, Álvaro de Campos)
“Depois de escrever, leio… / Porque escrevi isto? / Onde
fui buscar isto? / De onde me veio isto? Isto é melhor do que eu… / Seremos nós
neste mundo apenas canetas com tinta / Com que alguém escreve a valer o que nós
aqui traçamos?…” (Álvaro de Campos)
1. Eis uns versos de Álvaro de Campos, onde se
inscreve um singular efeito de vaivém entre escrever e descrever: “A pena em
que pego, a letra que escrevo, o papel em que escrevo, / […] / E eu escrevo,
estou escrevendo por uma necessidade sem nada.” Esquematizando, poderemos
encontrar, como ponto de partida três instâncias, dimensões, planos, graus,
esferas ou escalas de escrita nesta passagem. Optamos por agora pelo termo
‘instância’. 1ª instância: a materialidade e corporalidade, pura ou em bruto,
do escrever; ou seja, passo a citar: “A pena em que pego, a letra que escrevo,
o papel em que escrevo”; 2ª instância: a dimensão do acto de escrita: “E eu
escrevo”; 3ª instância: a dimensão da descrição, de um estado de coisas,
reportando-se habitualmente ao que é da ordem, do dizer, do conteúdo poético ou
literário; cito: “estou escrevendo por uma necessidade sem nada”. Ora, Campos
escreve que está a escrever (“escrevo”), e descreve o estar a escrever (“estou
escrevendo”). Não se trata somente de meta-poesia ou de meta-poema. Trata-se
talvez de repensar a questão do antes e depois da escrita e do texto, e o fora
e dentro da escrita e do texto. Repensando também a relação vida e literatura
que Pessoa tanto pensou. Claro que é no escriturário ou guarda-livros Bernardo
Soares que verificamos mais este trabalho sobre a escrita enquanto tal, um
“laboratório poético” (José Gil, Fernando Pessoa ou a Metafísica das
Sensações), ou ainda, nesta linha, “uma escrita sobre escrita”, ou um
“laboratório de escrita” segundo a expressão de Maria Augusta Babo em A
Escrita do Livro. Mas este processo estende-se aos heterónimos e ao
ortónimo com suas diferenças. No entanto, há um ponto que me parece importante
na escrita poética de Pessoa. Para não ir mais longe, por agora, diria que é a
função de escriturário profissional de Pessoa que entra em jogo, num jogo de
distâncias e proximidades com a sua escrita. Daí também o estranho e inovador
aspecto descritivo que se desenrola nos seus textos, tanto em prosa como
poéticos, sugerindo uma certa secura e falta de musicalidade, motivo que talvez
tenha levado Teixeira de Pascoaes a não o ter compreendido como pleno poeta.
Numa entrevista que realizámos com Eduardo Lourenço, a dado passo diz o
seguinte: “ Uma das primeiras coisas que me aconteceram foi ficar muito
indignado com uma frase numa entrevista ao Pascoaes, onde a dada altura lhe
perguntaram: “o que é que pensa do poeta Fernando Pessoa?” E ele respondeu:
“mas ele não é poeta.” Não é poeta? Eu fiquei muito indignadíssimo. Mas sei o
que ele queria dizer com aquilo.” “[…] Só mais tarde é que eu recuperei para
mim o Pascoaes, que considero um dos maiores poetas portugueses de sempre” (1).
2. O que tentamos mostrar neste breve texto é o modo
como o dispositivo ‘escrita’, em Campos, põe em jogo estas três instâncias
transformando-as. Como é que Campos as põe em jogo e as transforma? Fazendo-as
interagir, instalando assim outra dimensão poética. Assim, as três instâncias
entram em ressonância entre si, reabrindo, deste modo, um espaço ao imaginário
e ao sonho. O trânsito destas três instâncias abre para um fora, para um
exterior de que tanto nos fala Fernando Pessoa. No entanto a interioridade não
é excluída pelo poeta, antes pelo contrário. É por isso que Álvaro de Campos
nos fala da entrada na “substância do mundo”, quando escreve: “Tenho desejo
forte, e o meu desejo, porque é forte, entra na substância do mundo”.
Paradoxalmente, a “substância do mundo” é um certo dentro mas ao mesmo tempo um
fora no qual se entra. Ela sugere qualquer coisa de atmosférico. Paradoxalidade
extraordinária subvertendo os sentidos de exterioridade e de interioridade, de
dentro e de fora, de saída e de entrada. A dimensão literária ganha assim,
através de Pessoa e, neste caso, de Álvaro de Campos, uma densidade que falta a
muita da literatura e poesia actuais.
3. Ora, estes tempos de escrita, estas gradações
temporais de escrita ou da linguagem em Álvaro de Campos, que poderão
multiplicar-se e cruzar-se entre si, estruturam-se num certo desfasamento de
tempos e do tempo. Este desfasamento, resultante dos vários estratos ou
momentos inscritos no processo de escrita, permite, por assim dizer, uma
relação de distâncias, tanto no trabalho de escrita como no de leitura, quer
dizer, tanto no escritor, como no leitor. Todavia, é através desse desfasamento
que Pessoa e neste caso Álvaro de Campos viveu o seu tempo. Precisamente, um
certo desfasamento caracteriza-se, segundo o filósofo italiano Giorgio Agamben,
pelo ser contemporâneo, no seu breve e interessante texto “O que é o
contemporâneo?”: “A contemporaneidade é pois uma singular relação com o seu
próprio tempo, ao qual se adere tomando contudo suas distâncias, ela [a
contemporaneidade] é precisamente a relação ao tempo que a ele adere pela
desfasagem e o anacronismo” (p.11). Ora, nos nossos dias, com o imediatismo, a
instantaneidade, a aceleração instalada e a velocidade – estranha contradição
de presença e ausência – corremos o risco de não viver, em grande parte, o
nosso tempo. Não por desfasamento, mas, precisamente por não o pormos em jogo.
E a maioria da literatura e da poesia actuais, do nosso ponto de vista, corre
também esses riscos, de tão aderente, de tão coincidente, sem desfasagem e
anacronismo, de tão demasiadamente facilitada. É que, ser coincidente com seu
tempo, no sentido de ser actualizado, não é ser contemporâneo, na perspectiva
ainda de Agamben: “Aquele que pertence verdadeiramente ao seu tempo, o
verdadeiro contemporâneo, é aquele que não coincide perfeitamente com ele nem
adere às suas pretensões, e define-se, neste sentido, como inactual; mas,
precisamente por esta razão, precisamente por este intervalo e este
anacronismo, ele está mais apto do que os outros a perceber e a atingir o seu
tempo” (op.cit., pp. 9-10).
4. É raro haver um espaço e um tempo de gestação para
o imaginário literário. Hoje, quase toda a literatura funciona ao ritmo dos seus
próprios mercados, como produto já de um certo marketing e indústria
numa aceleração correspondente aos mediatismos em torno dela, inevitavelmente
contaminados pelo excesso e pela facilidade das imagens, das luzes dos media
e das novas tecnologias. Isto não é uma crítica da técnica. É uma tentativa de
compreender um dos muitos modos possíveis pelos quais não nos damos conta de
como a técnica se dá como controlo. É evidente que isto tem consequências
políticas, mas não temos agora competência para analisá-las. É interessante a
intuição de Campos quando escreve há quase cem anos, embora noutros contextos:
“Eu o abstracto, o projectado no écran.” E também: “De que te serve o quadro
sucessivo das imagens externas / A que chamamos mundo? / A cinematografia das
horas representadas / Por actores de convenções e poses determinadas, / O circo
polícromo do nosso dinamismo sem fim? (…)”. Mas imaginar não é só produzir
imagens; é potenciar atmosferas, climas, ambiências e, por assim dizer,
envolvências, estados de espírito e estados de coisas.
Citemos de novo uma passagem de Agamben no mesmo texto: “Só
pode dizer-se contemporâneo aquele que não se deixa cegar pelas luzes do século
e consegue alcançar nelas a parte de sombra, a sua sombria intimidade” (idem,
p. 21). Talvez se aproxime desta análise o que Eduardo Lourenço chama, em Pessoa
Revisitado, o “Tempo nocturno” de Álvaro de Campos. Campos consegue assim
recuar e /ou avançar no seu próprio tempo mediante estes deslocamentos no
processo de escrita. Ou então abre caminho a uma reflexão sobre o tempo. Mas é
assim que ele adensa o tempo de vivência, permitindo uma forte intensidade do
presente, enquanto devir-escrita. Citemos os versos finais do extraordinário
poema Tabacaria de Álvaro de Campos: “[…] (Se eu casasse com a filha da minha
lavadeira / Talvez fosse feliz.) / Visto isto, levanto-me da cadeira. Vou à
janela. / O homem saiu da Tabacaria (metendo troco na algibeira das calças?). /
Ah, conheço-o: é o Esteves sem metafísica. / (O Dono da Tabacaria chegou à
porta.) / Como por um instinto divino o Esteves voltou-se e viu-me. / Acenou-me
adeus, gritei-lhe adeus ó Esteves!, e o universo / Reconstruiu-se-me sem ideal
nem esperança, e o Dono da Tabacaria sorriu. “ Este passo é bem elucidativo
sobre o tempo em Campos. O aceno do Esteves e o sorriso do Dono da Tabacaria
são gestos que se repetem de alguma maneira desde há muito tempo, e gestos que
irão repetir-se. Gestos banais que se descrevem naqueles versos. Como é que
eles têm tanta força poética? Pelo facto de estes gestos, na sua banalidade
mundana, remeterem virtualmente para um passado e virtualmente para um futuro,
que faz com que aquele aceno e aquele sorriso, naquele momento, ganhem uma
presencialidade e, ao mesmo tempo, uma intensidade próprias da vida que decorre
na cidade de Lisboa. Quanta gente já acenou e sorriu ao longo dos tempos? E
quanta gente virá a acenar e a sorrir nos tempos vindouros? Em vez de se
viverem esses momentos no seu aparente imediatismo, do que se passa naquele
momento, numa primeira e única instância banal, embora isso seja importante,
Campos faz desses momentos – numa segunda instância ou mais, naqueles estratos
ou instâncias de escrita inscritos no poema – qualquer coisa, por um lado, já
de remoto, e, por outro, a vir, que vem. São momentos banais de gente simples e
mundana: o Esteves sem metafísica que acena e o Dono da Tabacaria que,
eventualmente, vai à porta e sorri com a vida que passa. São esses momentos
banais, dizia, que se tornam poéticos. Porque de súbito se tornam essenciais, bem
como o Esteves e o Dono da Tabacaria. E na potencial distância como gestos que
já aconteceram milhares de vezes, e irão acontecer, esses mesmos gestos,
naquele momento, ganham a intensidade que não teriam se fossem vistos no seu
mero imediatismo presente que, só por si, se pode tornar ausente. Com efeito,
eles são já vistos no seu imediatismo, mas em segunda, terceira instâncias,
etc., precisamente, as da escrita mas também da voz ou vozes que com essas
instâncias ressoam. E não foi preciso referir a escrita naqueles versos.
Todavia, não é por acaso que Campos, nuns versos antes, lhe faz alusão
potenciando-a de modo complexo em todo o poema: “Mas um homem entrou na
Tabacaria (para comprar tabaco?), / E a realidade plausível cai de repente em
cima de mim. / Semiergo-me enérgico, convencido, humano, / E vou tencionar
escrever estes versos em que digo o contrário. / Acendo o cigarro ao pensar em
escrevê-los.”
5. Por outro lado, o fascínio modernista e
sensacionista de Campos pelas máquinas e as luzes é um fascínio de constatação
e de acompanhamento das coisas que o rodeiam enquanto decorrem e que passam por
ele. Veja-se o seu primeiro poema, Ode Triunfal, escrito à máquina,
precisamente no dia 8 de Março de 1914, faz hoje precisamente 100 anos. Ode
Triunfal, Guardador de Rebanhos do Mestre Caeiro, escrito em papel
numa cómoda alta, e Chuva Oblíqua de Pessoa ortónimo, todos escritos
nesse dia, bem como a maturação heteronímica de Ricardo Reis. Como se sabe,
este processo heteronímico decorreu durante mais tempo do que apenas aquele
dia. Na arca de Pessoa encontraram-se muitos rascunhos daqueles poemas com
datas anteriores e posteriores a 8 de Março. Contudo, essa data deve ter tido
algum significado especial para o poeta. Encontramos a descrição deste processo
de escrita com mais detalhes na célebre carta de Pessoa a Adolfo Casais
Monteiro, onde, com efeito, o dia 8 de Março de 1914 é mencionado como o
célebre “Dia Triunfal”.
Citemos então os primeiros versos da Ode Triunfal: “À
dolorosa luz das grandes lâmpadas eléctricas da fábrica / Tenho febre e
escrevo. / Escrevo rangendo os dentes, fera para a beleza disto, / Para a
beleza disto totalmente desconhecida dos antigos.” O escrever rangendo os
dentes, aspecto corporal, pode sugerir um paralelismo com o ruído das teclas da
máquina de escrever e o ruído do seu funcionamento enquanto maquinismo. Por
outro lado, partindo daí, Campos opera a passagem e a entrada – mas não será
ele próprio que passa? – para o amplo espaço da fábrica, mantendo a ponte com o
acto de escrever enquanto tal ( o da 2ª instância: “escrevo”), em articulação
com os ‘r’ da engrenagem industrial das máquinas (“Ó rodas, ó engrenagens,
r-r-r-r-r-r-r eterno”). Há uma relação entre as sonoridades de “Escrevo
rangendo os dentes” e a repetição dos ‘r’ das máquinas. Assim, dá-se um salto
do plano da materialidade e corporalidade do escrever da 1º instância de
escrita (o ranger dos dentes e o ruído da máquina de escrever) para o plano da
descrição envolvente e exterior das máquinas da fábrica (3ªinstância), com,
pelo meio, a instância do escrever, do acto de escrita enquanto tal (“escrevo”)
da 2ª instância. Eis que um antes da escrita (uma pré-escrita?), que também
a 1ª instância configura enquanto materialidade e corporalidade da mesma, se
permuta com um depois da escrita (uma pós-escrita?) que também a 3ª
instância configura enquanto descrição, quer dizer, enquanto o que emerge da
escrita como dimensão imaginária, (a atmosfera da fábrica). Isto a partir da 2ª
instância (“escrevo”), que desdobra aquela permuta entre as outras duas,
permitindo a circulação da 1ª para a terceira e vice-versa. Por outro lado, o
efeito de transformação e transmutação das três instâncias a partir da sua
intercomunicação, é o que abre para um dentro que é também um fora e que
constitui o tempo e o espaço poéticos de Álvaro de Campos e mais latamente de
Pessoa e dos restantes heterónimos. Eis que entramos numa espécie de labirinto.
Mas não será a própria fábrica um grande labirinto? Por outro lado, até que
ponto, as múltiplas instâncias da escrita não terão a ver com a génese
heteronímica? É uma questão que deixamos em aberto.
6. De outro modo, e sem nos podermos alargar nesta
leitura, digamos ainda que há uma proximidade ou analogia entre a escrita e as
sensações. Entre as sensações, por exemplo, do “escrevo rangendo os dentes” e o
escrever inscrevendo letras, palavras e frases, mas também o teclar da máquina.
Quer dizer, pode-se falar da relação das sensações corporais com as sensações
da escrita material, precisamente, as sensações do contacto e dos sons das
teclas da máquina, escrevendo. Partindo desta primeira articulação
escrita/sensações pode encontrar-se uma outra. É a da relação entre a escrita
da descrição da fábrica e as sensações, através das engrenagens, do seu ruído e
das grandes lâmpadas eléctricas, onde Campos tem febre e escreve. Há, portanto,
uma proximidade entre os planos e/ou as gradações da escrita e os planos e/ou
as gradações das sensações. Por isso, na leitura, quando já nos deslocamos no
plano das escritas, já nos deslocamos no plano das sensações.
Ainda que Álvaro de Campos seja como que arrebatado pelo
mundo moderno e futurista das máquinas, ele não deixa de fruir esse mundo como
uma envolvência que ele próprio presencia. Digamos, num estofo de sensações.
Como se as sensações fossem múltiplas bolhas de oxigénio vitais e variadas. Em
Campos, diríamos que a sensação é uma espécie de acolchoamento espacial,
temporal e corporal conferindo concretude à vida e ao mesmo tempo um solo para
o sonho. O sensacionismo em Campos e Caeiro confere um espaço e um tempo, sem
perder de vista o processo de escrita. Onde a voz e as vozes ressoam no poema,
para além dele e através dele, como na fábrica e nos grandes espaços, por
exemplo os da Ode Marítima, ou do belíssimo poema sobre Sintra que
começa assim: “Ao volante do Chevrolet pela estrada de Sintra, / Ao luar e ao
sonho, na estrada deserta (…).” Dir-se-ia haver constatação das próprias
sensações enquanto tais, mas enquanto sensações sucedendo-se; sendo esta
constatação correlativa da consciência e um ponto de partida para o que Pessoa
designa a “abstracção das sensações”. Pois a “consciência realiza a abstracção
das sensações”, como observa José Gil analisando alguns textos de Pessoa sobre
o sensacionismo no seu livro anteriormente citado.
7. Porque falamos de constatação? Leia-se uma
passagem de um texto de Pessoa intitulado “Princípios do Sensacionismo” em Páginas
de Literatura e Estética, com a organização de António Quadros: “O
sensacionismo afirma, primeiro, o princípio da primordialidade da sensação –
que a sensação é a única realidade para nós. Partindo de aí, o sensacionismo
nota as duas espécies de sensações que podemos ter – as sensações aparentemente
vindas do exterior, e as sensações aparentemente vindas do interior. E constata
que há uma terceira ordem de sensações resultantes do trabalho mental – as
sensações do abstracto.”
Perguntando qual o fim da arte, o sensacionismo constata que
ele não pode ser a organização das sensações do exterior, porque esse é o fim
da ciência; nem a organização das sensações vindas do interior, porque esse é o
fim da filosofia; mas sim, portanto, a organização das sensações do abstracto”
(Itálicos nossos). Diríamos que se trata do tal estofo de sensações que
referimos, ou, se quisermos, uma contextura de espaços e de tempos constituindo
um mundo. Seria interessante estabelecer aqui um paralelismo e análise com as
palavras de Buda, quando fala da “contemplação das sensações nas sensações” na
“Atenção à respiração” (ânâpânasati). Mas esta proximidade será
certamente mais notória em Caeiro, o seu Mestre (2)
8. Não é por acaso que Campos emprega frequentemente
as palavras ‘abstracto’, ‘abstracção’, etc. Por exemplo, passo a citar: “Não.
Cansaço porquê? É uma sensação abstracta da minha vida concreta.” Ou, por
exemplo: “Tenho a boca seca, abstracta” (3). Porque, apesar de tudo, escrever e
descrever esses estados de coisas e estados de espírito, permite uma
compreensão e uma distância onde esses mesmos estados readquirem a sua sombra,
um jogo de sombras e de luz, qualquer coisa de uma escrita de outra ordem, num
imenso espaço-tempo poético onde, por exemplo, a fábrica na Ode Triunfal
ou os grandes espaços da Ode Marítima e de Sintra se tornam de certa
maneira numa espécie de nova e outra caverna que já não a de Platão.
______
*Texto com ligeiros acrescentos lido na comunicação
feita no colóquio realizado na Biblioteca Municipal de Sintra – Casa Mantero (8
de Março de 2014), sobre “O Dia Triunfal” de Fernando Pessoa (8 de Março de
1914).
Notas:
(1) Vj. entrevista em: http://escrita-fone.blogspot.pt/search?q=entrevista+a+eduardo+louren%C3%A7o&updated-max=2012-02-25T15:34:00-08:00&max-results=20&start=3&by-date=false
Vídeo da entrevista, as condições acústicas não são as
melhores e ainda não foram colocadas legendas: https://www.youtube.com/watch?v=ruCmouRIzFM
A propósito da eventual ‘secura’ que referimos, leia-se
Alain Badiou: “Mas devemos ser sensíveis, na obra completa de Pessoa, a um
materialismo poético bastante particular. Se bem que seja um grande mestre da
imagem surpreendente, este poeta reconhece-se à primeira leitura numa espécie
de nitidez quase seca do dizer poético. É, aliás, por isso, que ele consegue
integrar na própria sedução poética, uma dose excepcional de abstracção.”
(2) “E quando o monge, ao inspirar e expirar, se exercita
sentindo gozo, e se exercita sentindo felicidade, e se exercita percebendo a
actividade da mente, e se exercita acalmando a actividade da mente, ao
exercitar-se deste modo cultiva a contemplação das sensações nas sensações”
(Nyânatiloka Mahâthera, La Palabra del Buda).
(3) Citemos o poema: “Quero acabar entre rosas, porque as
amei na infância./Os crisântemos de depois, desfolhei-os a frio./Falem pouco,
devagar,/Que eu não oiça, sobretudo com o pensamento./O que quis? Tenho as mãos
vazias,/Crispadas flebilmente sobre a colcha longínqua.
O que pensei? Tenho a boca seca, abstracta./O que vivi? Era tão bom dormir!”
O que pensei? Tenho a boca seca, abstracta./O que vivi? Era tão bom dormir!”
Referências bibliográficas:
I
Fernando Pessoa, Álvaro de Campos, Poesias,
Introdução, organização e bibliografia de António Quadros, Europa-América,
1986.
Fernando Pessoa, Obra em Prosa, Páginas sobre Literatura
e Estética, org. António Quadros, Europa-América, 1986.
Fernando Pessoa, Livro do Desassossego, por Bernardo
Soares, recolha e transcrição Maria Aliete Galhoz e Teresa Sobral Cunha,
prefácio e org. Jacinto do Prado Coelho, Ática, 1982.
II
Alain Badiou, Meditações Filosóficas, Pequeno
Manual de Inestética, Volume II, trad. Joana Chaves, Ed. Instituto Piaget,
1999.
Eduardo Lourenço, Pessoa Revisitado, Lisboa, Gradiva,
2003.
Giorgio
Agamben, Qu’est-ce que le contemporain?, trad. Maxime Rovere, Rivages,
2008.
José Gil, Fernando Pessoa ou a Metafísica das Sensações,
Lisboa, Relógio D’Água,Maria Maria Augusta Babo, A Escrita do Livro,
Lisboa, Vega, col. Passagens, 1993.
Nyânatiloka Mahâthera, La Palabra del Buda, trad.
Amadeo Solé-Leris, Barcelona, Ediciones Indigo, 1991.
Luís Tavares
Este texto faz parte de outro mais extenso em preparação e para eventual publicação
Este texto faz parte de outro mais extenso em preparação e para eventual publicação
Outros textos e grande parte da obra plástica assinados: "Luís de Barreiros Tavares"
Por vezes também: "Luís de Barreiros"
No topo da mensagem: Álvaro de Campos, pormenor do mural
de Almada Negreiro na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa (1958)
Noutra página do Youtube:
Alguns comentários simpáticos:
Mafalda Blanc
muito obrigado, Luís
pela sua vídeo-conferência, que muito apreciei.
Saudações da M.Blanc
pela sua vídeo-conferência, que muito apreciei.
Saudações da M.Blanc
23/3/2014
obrigado Luís!
correu bem!?
ABR,
Zm (Zé Maria Belo)
29/3/2014
Obrigado.
Vou ver com muito interesse.
Abraço
MVC (Mário Vieira de Carvalho
30/3/2014
-
Caro Luís Tavares
Li/ouvi com imenso interesse a sua
comunicação. Parabéns! Obrigado por me ter enviado o link.
Abraço
Mário Vieira de Carvalho
30/3/2014
-
Carlos Gradiz
2/4/2014
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