sábado, 29 de dezembro de 2012
Poemas manuscritos de Manoel (Manoel Tavares Rodrigues-Leal). Do caderno "De Profundis et de Clamoris" (1976)
Citação de Sophia de Mello Breyner Andresen
Acima, o título possível para o caderno: De Profundis et de Clamoris (1976)
O autor tece um comentário negativo e genérico em duas palavras acerca deste caderno.
Contudo, escolhemos alguns poemas esperando acertar nuns quantos que porventura não tenham sido abrangidos por tal autocrítica.
Quando dobrares uma esquina,
Numa clandestina cidade ocidental,
Ora aos deuses e aceita o convite e caminha.
Sapho
..... virtualidade .....
..... metal .....
..... que suave escrever-se, e a escrita ser meu alto alimento .....
Manoel Tavares Rodrigues-Leal em finais da década de 8o + -.
Fotografia: Luís de B. Tavares
Duas versões:
..... e o diáfano será nudez e perfeito se ascender ao humano
Referência a Sophia de Mello Breyner Andresen
Evocando "Os quatro quartetos" de Elliot
..... Povoam as secretas e sagradas palavras do dia que principia.
Comentário do autor. O que do meu ponto de vista, revela grande exigência no trabalho, pois parece-me haver neste caderno alguns poemas pelo menos de considerável qualidade.
Manoel em 2011
Foto por LBT
-
terça-feira, 25 de dezembro de 2012
Empédocles: aquém ou além de Heraclito e Parménides? Axiologia, Ontologia e outras notas.
"Alguns em busca de profecias, enquanto outros, apunhalados durante muitos dias por dores agudas, pedem para ouvir a palavra que cura toda a espécie de doenças"
Empédocles, fr.112
"... é preciso que desapareça a tempo, aquele através de quem o espírito falou"
Hölderlin, Empédocles*
A
double tale will I tell: at one time it grew to be one only from many, at
another it divided again to be many from one. There is a double coming into
being of mortal things and a double passing away. One is brought about, and
again destroyed, by the coming together of all things, the other grows up and
is scattered as things are again divided. And these things never cease from
continual shifting, at one time all coming together, through Love, into one, at
another each born apart from the others through Strife. (So, in so far as they
have learnt to grow into one from many,) and again, when the one is sundered,
are once more many, thus far they come into come into being and they have no
lasting life; but in so far as they never cease from continual interchange of
places, thus far are they ever changeless in the cycle.
Empédocles, Fr. 17, 1-13, Simplicius Phys. 158, 1
Empédocles, Fr. 17, 1-13, Simplicius Phys. 158, 1
Kirk, G.S.,
& Raven, J.E., The Presocratic
Philosophers, University Press, Cambridge, 1975.
Vou contar uma dupla história: de uma vez cresceu
para ser um só a partir de muitos, de outra, dividiu-se de novo para ser muitos
a partir de um. Há um duplo nascimento das coisas mortais e um duplo deixar de
existir. Um é gerado e depois destruído, pela junção de todas as coisas, o
outro cresce e é espalhado à medida que as coisas de novo se dividem. E estas
coisas nunca cessam o seu mover contínuo, ora convergindo num todo, graças ao
Amor, ora cada uma separada das outras pela Discórdia. (Assim, na medida em que
aprenderam a fazer-se num a partir de muitos) e de novo, quando esse um está
separado, são uma vez mais muitos, assim nascem e não têm vida duradoura; mas,
na medida em que nunca cessam a intermutação contínua de lugares, nessa medida
eles são sempre imutáveis no ciclo.
Empédocles, Fr.17, 1-13, in Simplício, Phys., 158,1
Kirk e Raven,Os
Filósofos Pré-Socráticos, trad. C.A.L. Fonseca, B.R. Barbosa, M.A.Pegado,
Gulbenkian, Lisboa.
But
come, hearken to my words; for learning increaseth wisdom. As I said before
when I declared the limits of my words, a double tale will I tell: at one time
is grew to be one only from many, at another it divided again to be many from
one, fire and water and earth and the vast height of air, dread Strife too, apart
from these, everywhere equally balanced, and Love in their midst, equal in
lenght and breadth. On her to thou gaze with thy mind, and sit not with dazed
eyes; for she is recognized as inborn in mortal limbs; by her they think kind
thoughts and do the works of concord, calling her Joy by name and Aphrodite.
Her does no mortal man know as she whirls around amid the others; but do thou
pay heed to the undeceitful ordering of my discourse. For all these are equal,
and of like age, but each has a different prerogatif and its own character, and
in turn they prevail as time comes round. And besides these nothing else comes
into being nor ceases to be; for if they were continually being destroyed, they
would no longer be; and what could increase this whole, and whence could it
come? And how could these things perish too, since nothing is empty of them?
Nay, there are these things alone, and running through one another they become
now this and now that and yet remain ever as they are.
Fr.17, 1. 14, Simplicius Phys. 158,13 (continuing Fr. 1. 17, 1-13)
Op.cit.
Mas anda, atenta nas minhas palavras; pois aprender
aumenta a sageza. Como disse anteriormente, quando declarei os limites das
minhas palavras, vou contar uma dupla história: de uma vez, cresceu para ser um
só a partir de muitos, doutra, dividiu-se outra vez para ser muitos a partir de
um, o fogo e a água e a terra e a vasta altura do ar, e também a discórdia
temível separada destes, em toda a parte igualmente equilibrada, e o amor no
meio deles, igual em comprimento e largura. Para ele olha com o espírito e não
fiques com os olhos ofuscados; pois ele é reconhecido como inato nos membros
imortais; por ele são eles capazes de pensamentos bons e de praticar obras de
concórdia, dando-lhe o nome de Alegria e a Afrodite. Nenhum homem mortal o
conhece, quando ele rodopia no meio dos outros; mas presta atenção à ordenação
do meu discurso que não engana. Pois todos estes são iguais e de idade igual,
mas cada um tem uma prerrogativa diferente e o seu próprio carácter, e
prevalece cada um, por sua vez, à medida que o tempo gira. E além destes, nada
mais se gera nem cessa de existir; porque se estivessem a ser continuamente
destruídos, já não existiriam; e o que poderia aumentar este todo e de onde
poderia vir? E como poderiam estas coisas perecer também, visto que nada está
vazio delas? Não, há somente estas coisas, e correndo umas pelas outras, elas
tornam-se umas vezes isto, outras, aquilo, e permanecem, contudo, sempre como
são.
.
Empédocles, Fr.17, v. 14, in Simplício, Phys., 158, 13
(continuação de Fr.17, 1-13)
Op.cit.
De duplo nascimento
Empédocles, fr.69
De duplo nascimento
Empédocles, fr.69
Se disséssemos que Empédocles, num certo sentido, menciona,
e é o primeiro a fazê-lo, o mal e o bem como princípios, talvez tivéssemos
razão…
(Aristóteles, Metafísica,
A 4, 985 a 4)
[...] o poema maravilhoso de Empédocles [...]
Nietzsche
É em volta dos descobridores de valores novos que o
Mundo se move no seu giro eterno.
Nietzsche, Assim falava Zaratustra
Essa nomenclatura dos quatro elementos [em
Empédocles] mantém-se. É interessante que os quatro elementos mantêm-se intocáveis. Nem
hoje os controlamos: fogo, terra, água, e céu [ar].
Manoel Tavares Rodrigues-Leal (Poeta)
1. Este texto corre riscos de imprecisões temáticas.
A começar por algumas abordagens dos princípios empedoclianos, Amor (Φιλίαν) e
Discórdia (ou Ódio - Νεΐκος) na perspectiva axiológica, ética, moral e
embrionariamente ontológica (1). Aliás, como se sabe, o termo 'Ontologia'
designando uma disciplina só foi instituído filosoficamente muitos e muitos
séculos depois, não cabendo aqui entrar em detalhes. O mesmo sucedendo com a
Axiologia enquanto "teoria geral do valor". Hermann Lotze (1817-1881)
é considerado o fundador da filosofia moderna dos valores (2). Por outro lado,
não sou entendido em Empédocles nem nos Pré-socráticos que muito admiro. Aquelas abordagens servirão de apoio para o que me proponho. Sendo que
Amor e Discórdia são princípios genésicos e cosmogónicos, eles não deixam de
ter em germe o que virá a ser do plano ontológico. A tese esboçada neste estudo
preparatório é a de que o passo adiante dado por Heraclito e Parménides,
precedendo Empédocles, e supostamente mais adiantados do que ele,
ultrapassando-o, no que respeita ao processo do Lógos diferenciando-se do
Mythos, carece ainda de maior reflexão. Porquê? No sentido de que os pensamentos de
Heraclito e Parménides guardam, em nosso entender, vestígios éticos,
axiológicos, morais e outros. O pensamento de Empédocles, será de certa
maneira, um aviso a posteriori, - soubesse-o ou não, pouco importa - de
como esses vestígios permaneciam naqueles dois poetas-filósofos. É o nosso
ponto de vista a uma longa e arriscada distância no tempo. Assim, só o processo
de reconhecimento destes vestígios através do aparente recuo de Empédocles -
pois este pode afigurar-se um tanto retrógrado relativamente aos outros dois
que o precedem - permitirá uma melhor compreensão da génese ontológica do
pensamento de ambos, Heraclito e Parménides. Sendo que, nesse sentido,
Empédocles, só de um certo modo recua e regride. Assim, o seu contributo para
este inquérito naqueles dois pré-socráticos, ao invés de recuar, avança de modo
talvez ainda por abalizar. De facto, Amor e Discórdia são princípios (archai).
Estes reenviam para uma arqueologia no sentido pleno etimológico.
Para mais, como sabemos, os filósofos pré-socráticos buscavam os primeiros
princípios e causas das coisas.
Tentaremos pôr em jogo as dimensões axiológica, ética, moral e embrionariamente ontológica entre estes três pensadores pré-socráticos. Para quê? Para compreendermos melhor estas questões que de uma certa maneira ainda nos tocam. Quantas vezes os valores, ou certos valores, não se insurgirão hoje nos campos da ontologia, fenomenologia, estética, ética, etc., sem que nos demos disso conta, fazendo valer já outros valores segundo formas camufladas dessas mesmas disciplinas? O que pode dar também o inverso, mas não certamente o inverso simétrico. Seria muito fácil assim. O moral e o ético adquirem, por vezes, por sua vez um carácter abstracto e distante por força de adoptarem nas suas abordagens e questionamentos, distorcidamente, posições ontológicas, que afinal, por isso mesmo, não o são. Não foi Nietzsche quem falou da transvaloração total ou "transmutação de todos os valores"?
Tentaremos pôr em jogo as dimensões axiológica, ética, moral e embrionariamente ontológica entre estes três pensadores pré-socráticos. Para quê? Para compreendermos melhor estas questões que de uma certa maneira ainda nos tocam. Quantas vezes os valores, ou certos valores, não se insurgirão hoje nos campos da ontologia, fenomenologia, estética, ética, etc., sem que nos demos disso conta, fazendo valer já outros valores segundo formas camufladas dessas mesmas disciplinas? O que pode dar também o inverso, mas não certamente o inverso simétrico. Seria muito fácil assim. O moral e o ético adquirem, por vezes, por sua vez um carácter abstracto e distante por força de adoptarem nas suas abordagens e questionamentos, distorcidamente, posições ontológicas, que afinal, por isso mesmo, não o são. Não foi Nietzsche quem falou da transvaloração total ou "transmutação de todos os valores"?
Valores há muitos. Estéticos, éticos, morais, intelectuais,
académicos, lógicos, espirituais, de liberdade, de vida, de existência, da arte,
(O Valor da Arte; título de um livro do grande artista plástico Antoni
Tàpies), da ciência p.ex., Bioética), históricos, políticos, metafísicos, teológicos, económicos, de uso e
de troca (economia política), estatísticos e numéricos, etc.,etc., que servem
para avaliar de modo por vezes tão abstracto e desgarrado da realidade, mas
continuando valores para muitos. Estamos pejados de valores. E outros mais que
a minha ignorância não chega para tanto. E, paradoxalmente, estamos muitas
vezes cansados deles porque não damos por eles, nem pelos nossos "juízos
de valor". Trata-se neste estudo de ter cautela, tanto quanto se possa,
para não cair, p.ex., em psicologismos e moralismos. O que é difícil, diga-se,
quando entramos nestes terrenos.
2. Com efeito, Amor e Discórdia, em Empédocles, não
reenviam obrigatoriamente ou exclusivamente para questões axiológicas. Mas
podem, no entanto, pôr em jogo o sentido do que é da ordem dos valores, apesar
de e porque (3), precisamente, esses princípios são cosmogónicos. Com
estas advertências talvez seja mais aceitável enquadrar o Amor e a Discórdia
numa vertente axiológica.
Do nosso ponto de vista, e no contexto ainda esboçado que se
apresenta neste texto com alguns fragmentos e tópicos por trabalhar, Empédocles de Agrigento (acmê, cerca de 450 a.C.) é tão decisivo quanto os outros dois pré-socráticos
que aqui escolhi em diálogo com ele. Estes são tidos
como determinantes pelo que cada um é em suposta oposição, ou pelo menos
diferenciação relativamente ao outro na aventura iniciada do pensamento
filosófico ocidental, no que chamaria génese da Ontologia e da Fenomenologia (Heraclito que muito influenciou Hegel).
Vejam-se, por exemplo, os extraordinários estudos de Heidegger sobre Heraclito
e Parménides. Heraclito de Éfeso (acmê, entre 504 e 500 a.C.) e Parménides de Eleia (acmê, entre
500 e 475 a.C.). Estes muito mais estudados do que Empédocles pelo filósofo
alemão. "Heraclito e Parménides são «as figuras radiosamente centrais desse mundo [pré-socrático]»". "Heraclito, a quem se atribui, numa brutal oposição a Parménides, a doutrina do devir, diz na verdade a mesma coisa que este último. Se dissesse outra coisa, não seria um de entre os maiores pensadores gregos". Estas duas citações de Heidegger são retiradas do excelente livro de Marléne Zarader, Heidegger e as Palavras da Origem (Trad. João Duarte, Ed. Instituto Piaget, pp.131-132). Respectivamente recolhidas por esta autora de "Jean Beaufret, Dialogue avec Heidegger" e "Martin Heidegger, Einführung in die Metaphysik".
3. Por que é que Empédocles é, do nosso ponto de vista, tão decisivo? Empédocles, recolhendo as lições de cada um, Heraclito e Parménides, fá-los recuar. Mostra como o movimento de pensamento de ambos é mais marcado do que muitas vezes se supõe por valores éticos e axiológicos. Como? No próprio movimento que desses valores o pensamento de ambos, cada um a seu modo, pretende libertar-se. As posições mais abstractas de Heraclito e Parménides assentavam sobre determinações que respectivamente pressupunham uma polémica, conflito ou guerra (polémos, Heraclito, fr. 53) e uma posição violenta, apesar de necessária, inaugurando a enunciação do Ser: Kρὴ τὸ λέγειν τε νοεῖν τ’ ἐὁν ἔμμεναι · ἔστι γἀρ εἶναι (“É necessário [1º reforço] que o dizer e pensar que o ser é; é, pois, ser”, fr. 6, Parménides). Todavia, esta última parte é importantíssima - ἔστι γἀρ εἶναι (é, pois, ser), e Heidegger assiná-la, por exemplo em Carta sobre o humanismo: "L’ἔστι γἀρ εἶναι de Parménides n’est pas encore pensé aujourd’hui” (Martin Heidegger, Questions, III et IV, Gallimard, p.92). A conjunção γἀρ reitera (2º reforço).
Embora estes gestos de ruptura, de conflito e
"violência" sejam da ordem do lógos (tensão e harmonia de contrários
– Heraclito) e do ontológico (ou preliminarmente ontológico – Parménides), quem
nos diz que se não forem questionados suficientemente no seu movimento de corte
para outra dimensão mais abstracta, não trazem, não guardam consigo,
dissimulados, alguns resíduos éticos, axiológicos e morais? O que por si não
traz nada de mal, digamos. A menos
que esses gestos não sejam pensados suficientemente na sua génese, geradora por
seu turno daquelas dimensões ontológicas e de pensamento, por sua vez condição
de possibilidade para outra concepção axiológica, ética e mesmo moral. Sim, não se trata de suspeição moralista,
tão-pouco de hibridismo ético ou axio-ontológico. Tão-pouco importa o valor ou uma
perspectiva valorativa das coisas, dos seres e menos ainda do Ser. Mas antes,
compreender como o Ser pode, a dado passo, valorizar-se a partir de um certo
despojamento supostamente abstracto, o qual à partida se enquadraria
pretensamente livre de qualquer valor, fosse ético, axiológico, estético,
político. Não é Platão que culmina a identificação da ideia de Bem (to agathon
idea) à Ideia das ideias ontologicamente considerada? Pois Platão institui o
passo que se segue a Parménides no curso lento e gradual do processo
ontológico. E não é a "Ideia das ideias" na "doutrina
platónica" correlativa dos inteligíveis e do ontológico? Não são estes,
portanto, conotados com valores na hierarquia que leva finalmente à ideia de Bem
e de Belo, a primeira ascendendo sobre a segunda? Sem esquecer o grande
Sócrates que lhe dá o impulso fundamental, ele cujo pensamento assentava no
ético e na justiça, no chamado "intelectualismo moral", pois só agiria mal quem ignorasse.
4. Por outras palavras, o nosso propósito
é o defender uma tese mista, híbrida de ética ou axiologia e ontologia. Optemos
então, neste estudo, pelo termo 'axiologia', sendo que este, embora remeta para
'valor' (axios, significando, no grego, "algo que é precioso",
"digno", "digno de ser estimado"), não deixa de
manifestar-se em germe nos princípios empedoclianos (Amor e Discórdia). Sem que
estes a àqueles se limitem (4). Axiologia, será pois, diríamos, uma espécie de
"muleta" provisória, à falta de nos ocorrer outro termo e temática.
Talvez por incapacidade e limitação nossa não encontramos para já outra palavra
melhor que essa. Ponhamos então de lado o termo 'ética' e 'moral' com todas as
implicações etimológicas que comporta e relações à axiologia (5). Apesar de Kirk
e Raven assinalarem Empédocles na sua dimensão moral segundo o ponto de vista
de Aristóteles: “Aristóteles, nos seus comentários a Empédocles (…) diz que o
Amor e a Discórdia têm um carácter moral” (Kirk e Raven, Os filósofos pré-socráticos, p.342). E é Aristóteles quem escreve:
“Se disséssemos que Empédocles, num certo sentido, menciona, e é o primeiro a
fazê-lo, o mal e o bem como princípios, talvez tivéssemos razão…” (Aristóteles,
Metafísica, A 4, 985 a 5).
A julgar pelo que escreve Aristóteles, pode depreender-se
aproximação temática entre os binómios Amor/Ódio e Bem/Mal, e, por via de consequência, implicações para a dimensão moral e ética. Eis, por outro lado, um bom ponto de
partida, pois é legítimo que bem e mal sejam tidos como valores.
Portanto, tentemos modestamente simplificar estas questões
complexas para não sermos por elas ultrapassados neste curto texto. É por
isso que optamos por um breve estudo comparativo de axiologia e ontologia, na
sua génese, à luz de Heraclito, Parménides e Empédocles.
5. Visa-se compreender como e quando há axiologia na
preliminar ontologia e vice-versa, sem que se perca de vista o modo como cada um destes
campos se insurge no outro, quando a pretensão de certas teses é a de que cada um
se supõe isento do outro. São estes pressupostos que importa requestionar. Trata-se pois do modo como convém pensar estes processos para
reformular o questionamento da axiologia e da ontologia, aceitando as suas
interacções, mas supondo cada uma como tal. Enquanto campos diferentes de
investigação, na condição, todavia, de ambos aceitarem as possibilidades de, de
um momento para o outro, cada uma se insurgir na outra. Segundo critérios em que, precisamente, uma se toma pelo outra sem que se dê
suficientemente por tal. Ora, importa compreender o modo como se dá esta
subversão para seguir outra linha, a de como ambas, axiologia e ontologia, se
interrelacionam e são por vezes necessárias à compreensão de cada uma. Não será
essa subversão temática um dos factores que levam a certas incompreensões e
injustiças de ordem ética, axiológica, ontológica e política? Provavelmente a
subversão a que se alude manifesta-se principalmente no político, na política,
mas também na história. Mas não é o lugar para desenvolver esta questão, até
porque nos falta competência para tal.
6. Empédocles procede a um passo de recuo
relativamente a um certo abstracto que começa com Heraclito e Parménides. Não será por isso que Deleuze escreve em O que é a Filosofia?: "É possível que os primeiros filósofos, e sobretudo Empédocles, tenham ainda o ar de sacerdotes ou até mesmo de reis. Pedem emprestada a máscara ao sábio e, segundo palavras de Nietzsche, como é que teria sido possível a filosofia não se mascarar nos seus primórdios?" ? Não
nos assustemos com o termo abstracto. Foi Aristóteles quem um pouco mais tarde
o enuncia, tematiza ou define (abstracção - aphairesis)
(6). É este passo de recuo de Empédocles que cremos importante para reformular
o modo como se começa a desenhar o passo de avanço para um certo 'abstracto' de
Heraclito e Parménides. Sendo este movimento condição de possibilidade para
reformular e ter em linha de conta o que de residual em termos axiológicos permanece nestes dois
pensadores (Heraclito – lógos, Parménides – ; legein, noein, einai).
Residual axiológico no seu pensamento ontológico em germe (de Heraclito e
Parménides). Pois, se não se tiver bem em atenção este processo poderemos supor
uma separação radical entre o ontológico e o axiológico. Quando, o que importa
será determinar estes dois planos na necessidade de serem pensados, para percebermos como essa separação afinal não o é. Para se tentar viabilizar outro sentido diferencial de separação, por um lado, e articulação, por outro. Ou seja, na
necessidade de esses planos serem pensados para que o axiológico não se marque no ontológico
de tal modo que este seja apagado pelo primeiro sem que se dê bem conta disso.
Ontológico apagado mas fazendo-se passar enquanto tal: ontológico. Podendo isto
implicar consequências imprevisíveis a longo prazo, mesmo em longa duração.
7. Eis alguns elementos sobre a dimensão ontológica em Empédocles. Jean Brun mostra como o Sphaïros (Esfera), que é também Ser em
Empédocles, engloba tudo e é regido pelo Amor. O Amor predomina indiciando a primitiva
religião, justamente, a do Amor. O Sphaïros é o lugar do habitar e
"esfera ontológica": “Empédocles faz do Sfaïros a esfera
ontológica da qual nada divergiu ainda e que é Espírito sagrado e inefável. Luz
pura, ignora as sombras que o Ódio faz surgir das divisões que provoca"
(Jean Brun, Os pré-socráticos, p. 75). “Nada lhe é exterior, é
absolutamente divino, inacessível aos homens. O Sfaïros é anterior a
qualquer Ódio, qualquer divisão, qualquer fractura; sem acção nem paixão,
ignora a luta e o múltiplo: é (Jean
Brun, Os pré-socráticos, p.75).” O Sphaïros é, por assim dizer,
ontológico, como acentua Brun. Mas também é o êthos (ἦθος) no sentido originário de morada, de espaço do habitar,
remetendo assim para o ainda mais originário éthos, o qual por seu turno
derivou posteriormente para a latinização mos
– donde ‘moral’ - reunindo e anulando de alguma maneira os dois sentidos, e
reenviando por sua vez para um critério semântico mais pobre, de ‘costumes’,
etc. Mas que esta referência ao ético e à moral só nos sirva aqui de passagem.
8. Percebendo como os valores e critérios
axiológicos do Amor e da Discórdia se manifestam transversalmente em Heraclito e Parménides, melhor se
poderá transformá-los, relançando-os à luz do pensamento de Empédocles. E assim
se perceberá o alcance do que às vezes pode ficar esquecido. Mas se
compreendermos os pressupostos subjacentes de carácter axiológico neste
inaugurar da abstracção e da definição que ainda não o é, perceberemos melhor
Heraclito e Parménides e, ao mesmo tempo, a importância da compreensão de
Empédocles no que ele contribuiu para o que se lhes segue, sendo que
aparentemente este - Empédocles - ainda se encontra aquém dos passos adiante
feitos pelos outros dois, que o antecedem, como já se disse. Voltamos a dizer
que ignoramos se estes eram os motivos de Empédocles. Aliás, não consta,
segundo alguns, que Heraclito o tenha influenciado tão decisivamente como os
pitagóricos, os órficos e Parménides (7): “A Esfera de Empédocles é
indiscutivelmente modelada na de Parménides. O que Empédocles fez, de facto,
foi pegar na esfera de Parménides e enchê-la desde o início com os quatro
elementos eternamente distintos." No entanto, Empédocles demarca-se:
"Mas esta simples mudança de uma unidade original para pluralidade
original altera tudo o que segue" (Kirk e Raven, op. cit., p.337).
Por outro lado, no que respeita à influência de Heraclito
sobre Empédocles, há quem sustente que a polaridade Amor / Discórdia decorra da
influência de Heraclito com a sua polemos:
“O teor do poema de Empédocles é francamente pitagórico, mas a sua tese
sobre a natureza, que institui o Amor e a repulsa (Filotés kai neikos), como motores cósmicos, encontra-se talvez
aparentada à teoria da concórdia e da
discórdia, de Heraclito"
(Pinharanda Gomes, Filosofia grega
pré-socrática, p.53). Ou ainda: “De facto, Empédocles está a desempenhar o
seu papel habitual de mediador. Tomando, provavelmente, aquelas substâncias
opostas que tinham sido mais notáveis nas primeiras cosmologias, o quente, o
frio, o húmido e o seco (o primeiro destes pares foi de certeza usado por
Anaximandro, ao passo que ambos os pares foram mencionados em Heraclito fr.
126)” (Kirk e Raven, op.cit., p.340).
9. É notável o modo como poeticamente Empédocles põe
em jogo os princípios (archai – philia / neikos)
e os elementos (Fogo, Ar, Terra e Água) e os descreve nos seus movimentos (8). As repetições que
Empédocles faz questão de fazer nos fragmentos de "dupla a história"
(vj. fr.17 falando da dupla história e repetindo-se) mostram que o alcance das
suas palavras não deveria ser imediato. Mas obedecia a um processo de cuidadosa
re-leitura.
Retomemos a tese deste estudo. O pensamento poético de Empédocles é condição de possibilidade da atenção à questão dos valores quando estes parecem já ultrapassados por Heraclito e Parménides nas suas meditações sobre o Lógos e o Ser (9). O movimento de abstracção que se está a operar em relação àqueles valores, com o Logos em Heraclito e o Ser em Parménides, ainda os traz ocultados. Não que a ocultação seja de negar. Heidegger fala-nos do movimento de ocultação/ des-ocultação (velamento/des-velamento) da aletheia do não[des]-esquecimento. O risco reside no modo como a ocultação se está a dar sem que se dê conta, por força de se supor que a superação e/ou supressão dos valores no processo de abstracção estão já dadas e adquiridas.
Retomemos a tese deste estudo. O pensamento poético de Empédocles é condição de possibilidade da atenção à questão dos valores quando estes parecem já ultrapassados por Heraclito e Parménides nas suas meditações sobre o Lógos e o Ser (9). O movimento de abstracção que se está a operar em relação àqueles valores, com o Logos em Heraclito e o Ser em Parménides, ainda os traz ocultados. Não que a ocultação seja de negar. Heidegger fala-nos do movimento de ocultação/ des-ocultação (velamento/des-velamento) da aletheia do não[des]-esquecimento. O risco reside no modo como a ocultação se está a dar sem que se dê conta, por força de se supor que a superação e/ou supressão dos valores no processo de abstracção estão já dadas e adquiridas.
Não será por isso que, por exemplo, ao fim de vinte e tal
séculos se dá o acontecimento do paradoxo abissal ético-axiológico-político e
ontológico do, sem dúvida nenhuma, grande pensador que foi Heidegger, sem que,
talvez, ele pudesse dar conta total? Tal o peso de todo um processo que pode
durar mais tempo que uma vida humana, podendo até ser milenar. E não dizendo respeito somente a um ou a outro humano, mas ao sentido do humano. Ou será que a
contradição axiológica e ontológica poderá eclodir instantaneamente? Não
sabemos. Ultrapassa-nos. Foi Heidegger, precisamente, quem nos interpelou com a "pergunta
sobre o sentido do Ser" e sobre o "esquecimento do sentido do
Ser" por parte da metafísica em Ser e Tempo (1927). E esse
esquecimento foi a seu ver também milenar.
E não foi Lévinas - entre outros (Hannah Arendt, Derrida), para não falar do seu mestre Husserl -, grande pensador, judeu, paradoxalmente
também, discípulo e grande admirador da obra de Heidegger? Alguns familiares de
Levinas morreram nos campos de extermínio nazis. "Certamente nunca
esquecerei Heidegger nas suas ligações a Hitler. Mesmo se as suas ligações não
foram senão de breve duração, elas foram-no para sempre...
Mas as obras de Heidegger, a maneira pela qual ele praticava
a fenomenologia em Sein und Zeit - fez-me saber de imediato que é um dos
grandes filósofos da história" (François Poirié, Emmanuel Lévinas).
O pensamento de Lévinas estabelece-se no que poderíamos chamar uma
ontologia e uma fenomenologia do Outro, Outrem, sem perder de vista o outro e o reenvio para a
transcendência. Movimento, porventura, de contrapartida ao seu mestre.
Paradoxos de paradoxos, que servem no entanto como advertência para a
complexidade do humano e para cada um de nós. Com efeito, o nazismo não terá
sido sobretudo um fenómeno humano?
10. Mas voltemos a Empédocles, repetindo. Num primeiro
plano parece ter regredido. Como se voltasse ao trágico, ao mítico, quando já
antes aqueles dois pré-socráticos já tinham dado um passo decisivo no processo
do pensar que desembocará, em Sócrates, Platão e Aristóteles, neste com o apofântico
(na sua função enunciativa, assertiva) e a 'invenção da definição', questão esta tão
debatida por Fernando Belo nos seus textos a par do 'horizonte' (horikzon) e do Ereignis
heideggerianos (vj. Fernando Belo, Heidegger, Pensador da Terra) (10).
Mas só num primeiro plano é que Empédocles regride. Num
segundo, ele progride, tal como a sua ‘dupla história’ no poema Da Natureza (Peri phuseos, Περί φύσεως) (11). Progride, de forma que regressão e
progressão requerem ser pensadas. É o que tentaremos argumentar de novo. Com
efeito, Empédocles parece fazer a retoma de uma tradição de pendor mais mítico,
axiológico, ético, antropomórfico enquanto dimensões ainda fundidas num caldo de cultura prévio ao processo gradual de divisão que desembocará nas várias ciências inauguradas por Aristóteles. Quer dizer, ele parece fazer a retoma de uma tradição diferentemente de Heraclito e Parménides que
supostamente já haviam ultrapassado em parte essas etapas (não falando agora em e Xenófanes e Anaxágoras que se
desviam do culto dos grandes deuses, e em todos os outros extraordináros Pré-socráticos) (12). Todos eles admiráveis juntamente com os que aqui tratamos, com
a sabedoria e simplicidade que parecemos ter perdido ou esquecido.
11. Fazendo uma leitura destes três filósofos
pré-socráticos poderemos formular uma lição de Empédocles. A grande lição de
Empédocles. Sem que necessariamente houvesse um propósito objectivo dessa lição
por parte deste grande pensador e poeta, repetimo-lo. Mas quem é que dá conta
absoluta do seu presente? A leitura das coisas faz-se no tempo. Cairemos no
anacronismo? Mas suspeitar sempre dos anacronismos pode ser um obstáculo ao
modo como pensamento e tempo são. Estes se trocam, cada um nos seus momentos e
entre si quando, onde e como menos
suspeitamos.
Não se trata aqui de defender um pensamento híbrido e de
aporia entre o que é e o que não é. Mas de tentar compreender como,
quando o ser se distingue do não-ser, convém um movimento que deve poder acompanhar o modo como, por
seu turno, o ser, quando é, já não é, e o não ser, quando não é, já é. De algum
modo, Empédocles lança o germe poética e miticamente do célebre momento do
“parricídio” (patraloian) de Parménides de que nos fala Platão em O Sofista 241e. Este passo do Sofista de
Platão põe em causa a tese do Ser (e do Uno) sustentada por Parménides: "É que
ser-nos-á necessário, para nos defendermos, pôr em questão a tese de nosso pai
(patrós) Parménides e, por força, estabelecer que o não-ser é, de uma certa
maneira, e que o ser, por seu turno, de algum modo, não é" ( Platão, O
Sofista, 241d, 6-9; traduzimos de Platon, Le Sophiste, trad. Auguste
Diès, Les Belles Lettres, 1925). Leiamos Empédocles: “Há um duplo nascimento
das coisas mortais e um duplo deixar de existir. Um é gerado [é] e depois
destruído [não é], pela junção de todas as coisas, o outro cresce [é] e é
espalhado [não é] à medida que as coisas de novo se dividem” (Fr.17). Este
duplo movimento é decisivo na obra de Empédocles. Tanto assim que ele se repete
enigmaticamente como podemos constatar neste fragmento que transcrevemos em
português e inglês nas epígrafes deste estudo: “ vou contar uma dupla história.” O
motivo desse duplo movimento é o de que se mantenha a liberdade, isto é, se possa, a
qualquer momento, reformular o Ser e o não-Ser a partir do modo como ambos se
podem confundir, distinguindo-os já de outro modo, quer dizer, sem que se deixe
de considerar o Ser e o não-Ser (Ser / não-Ser). Quer dizer, na relação do
primeiro movimento para o segundo, ambos constituindo o "duplo nascimento
das coisas mortais" e o "duplo deixar existir", dá para perceber
como o Ser (neste exemplo analogamos a nascer) é também, de algum modo, não-Ser
(deixar de existir) na dupla história que se repete no duplo fragmento, duplo
porque precisamente se repete também. O duplo movimento repete-se, duplica-se. Basta pensar que se trata de re-duplicação. Ficarmo-nos por aí, por esse rótulo, parece demasiado fácil e meramente redutor.
12. Há o Ser (Sphairos, σφαΐρος) que tanto é na
medida em que se divide como na medida em que se une. Não porque a união seja o
mesmo que a divisão num primeiro tempo. Mas, porque na medida em que se dá a
divisão, vai-se dando outro movimento de união, a um segundo tempo, e
vice-versa. Na medida em que se chega ao limite da divisão pela discórdia (ou Ódio; Νεΐκος), e na medida em que a união (Amor, Φιλίαν) começa, já a mesma
(união), todavia, se estava a dar. O mesmo acontecendo com o começo da
discórdia: na medida em que a discórdia (desunião) começa, após chegar-se ao
limite da união, já a mesma (a discórdia ou desunião) se estava a dar. Por isso
importa ainda pensar estes “na medida em que” ou "à medida que" no/s
fragmento/s 17, 1-13 e 17, 1-14.
A linguagem não vai a tempo, não serve aí como meio para,
instrumento. É o risco que se corre com a instrumentação da linguagem, ou,
talvez antes, das palavras.
Exemplifiquemos estes modos ou desdobramentos de sentidos
para o Amor e o Ódio com uma interessante passagem de Jean Brun: “No entanto, parece que se pode falar de uma
espécie de manha do Ódio, que se serve da atracção do semelhante pelo
semelhante. Com efeito, na terceira fase da cosmogonia [...], consegue,
utilizando a atracção do semelhante pelo semelhante, dissociar o próprio
indivíduo e reduzir o mundo a quatro esferas elementares que se comportam como
estranhas entre si. Depois disso, nada mais tem a dividir e encontra-se, por
assim dizer, vencido pela sua própria vitória” (p.83). O que é o mesmo que
dizer que, dissociando, o Ódio esteve a operar um outro movimento de união. O
que implica um processo equivalente para o movimento do Amor. O que não
significa que sejam o mesmo. O que se marca aqui é o modo como uma possível
confusão de ambos (philia e neikos) permite retrospectivamente reformular outro
sentido, diferencial, entre os dois. Quer dizer, como a confusão pode mostrar a não-confusão. “Como
disse anteriormente, quando declarei os limites das minhas palavras, vou contar
uma dupla história: de uma vez, cresceu para ser um só a partir de muitos,
doutra, dividiu-se outra vez para ser muitos a partir de um, o fogo e a água e
a terra e a vasta altura do ar, e também a discórdia temível separada destes,
em toda a parte igualmente equilibrada, e o amor no meio deles, igual em
comprimento e largura.” Na medida em que as coisas estão a nascer, elas
estão a deixar de existir. Mas na medida em que deixam de existir (considerando
neste segundo momento) elas nascem ainda uma segunda vez. E nascendo uma
segunda vez, elas deixam de novo de existir.“(Assim,
na medida em que aprenderam a fazer-se num a partir de muitos) e de novo,
quando esse um está separado, são uma vez mais muitos, assim nascem e não têm
vida duradoura; mas, na medida em que nunca cessam a intermutação contínua de
lugares, nessa medida eles são sempre imutáveis no ciclo." Sublinhemos:"...não têm vida duradoura", mas
"...são sempre imutáveis no ciclo".
As coisas e os seres são ‘muitos’ e são ‘um’. ‘Um’ e ‘muitos’ não estão
separados. O que é destruído pela junção de todas as coisas é o mesmo que o
outro que cresce e é espalhado à medida que as coisas se dividem (13). Mas este ‘o
mesmo que’ comporta movimento (14).
13. Empédocles tenta captar o sentido das coisas no
estado (estado/s de coisas) em que estas ainda não são sob a hegemonia de um Lógos
ou de um Ser. Lógos e Ser que
estão a emergir com Heraclito e Parménides, entre outros pré-socráticos que não
abordamos aqui. O primeiro, p.ex. “não dês ouvidos a mim mas ao lógos” e o
segundo “É preciso dizer e pensar que o ente é e o não-ente não é”.
“Pode dizer-se que,
como Heraclito, o Sfairos parmenidiano foi posto em movimento, mas com um
movimento que não o faz sair de si mesmo, porque no coração deste movimento
mora o Logos que, desde há milhares de anos, constitui o que nos dá o Sentido
das coisas e dos seres, Sentido que nem sempre conseguimos apreender”
(Brun, op.cit., p.74, ).“Mora o
Logos há milhares de anos.” Mas só com os pré-socráticos e segundo eles é
que ele começa a enunciar-se. Iniciação da sua enunciação.
Talvez este seja mais um elemento que ajude a uma melhor
leitura de como se joga o fluir do Lógos
de Heráclito e o permanecer do Ser de
Parménides.
14. Retomando o § 11 que refere o fragmento de Empédocles em epígrafe: “Assim nascem e não têm
vida duradoura”. Mas têm. Eis a contradição que é não-contradição: “mas na medida em que nunca cessa a
intermutação contínua de lugares, nessa medida eles são sempre imutáveis no
ciclo." Imutáveis no ciclo que circula. Complexidade de movimento e não-movimento. O ciclo circula : “[...] firme dentro da cobertura próxima da
Harmonia, uma esfera arredondada exultando na sua solidão circular [quer
dizer, se bem entendemos Empédocles, em movimento]” (fr. 27 e 28) (Kirk e Raven).
Amor (Philia) e Discórdia (Neikos) parecem opor-se. Mas não
se opõem se olharmos uma segunda vez como na “dupla história” que Empédocles
nos conta. Não se opõem na medida em que ambos veiculam ‘o dizer das coisas’ e ‘as
coisas ditas’ em “intermutação contínua de lugares”. Estes duplos
movimentos, duplos "nascer e deixar de existir”, permitem compreender o Amor
e a Discórdia como princípios (archai) numa outra, segunda, dupla
compreensão. Tornando uma visão mais clara
(“não fiques com o olhos ofuscados”, fr 17...). É preciso pensar estes
grandes pensadores pré-socráticos na simplicidade da sua linguagem que, de
alguma maneira esquecemos. Também não esquecemos, nós metafísicos
ocidentais, a questão do sentido do Ser (Sein
und Zeit, Heidegger)? Pensar os antigos pré-socráticos para melhor nos
podermos pensar no nosso ‘lógos’ instituído, nas várias logias, a começar pelas bio-tecno-logias. Na nossa pretensão de mais
avançados e longínquos, nós dos séculos XX e XXI, supomos que os pensamos.
Todavia, eles ainda nos pensam.
E, portanto, não os pensamos no seu dizer originário. É por
isso que a simplicidade de certos fragmentos pré-socráticos nos pode parecer tão
evidente e ingénua que não vale a pena mais pensar neles. Mas se formos
explicar, isso já não conseguimos, ou a muito custo e mal. Tal como nos diz Santo Agostinho a propósito do Tempo ("se me falarem dele, sei o que é, mas se me pedirem para o explicar, já não sei").
Por isso, a sua leitura, no modo como os Pré-socráticos nos podem dizer algo de extraordinário, escapa-nos na maioria das vezes, senão sempre, enquanto não os questionarmos sobre o modo, o porquê de nos parecerem tão evidentes e simples. Quando aquela simplicidade revela um estado de espírito e harmonia com a natureza que nos escapa.
Por isso, a sua leitura, no modo como os Pré-socráticos nos podem dizer algo de extraordinário, escapa-nos na maioria das vezes, senão sempre, enquanto não os questionarmos sobre o modo, o porquê de nos parecerem tão evidentes e simples. Quando aquela simplicidade revela um estado de espírito e harmonia com a natureza que nos escapa.
Pois ainda lá estamos/somos sem dar por isso. Porque também
talvez a ciência tenha esquecido o modo como está a ser vista. Ou antes,
pensada por esse já longínquo tempo.
15. Concluindo. Por outras palavras, é importante
ler o movimento de pensamento de Empédocles. Com ele volta-se um pouco atrás,
atrás dos que o precedem um pouco: Heraclito e a Parménides. Talvez para ainda
se repensar o movimento destes dois últimos. Evitando instalá-los num momento
intermédio e indiferente entre o mythos e o lógos. Não é esse também o seu
lugar. Ambos foram determinantes, não se limitando a serem intermediários. A
menos que ser intermediário, como os demiurgos antigos, seja muito a ter em
conta.
A compreensão de Parménides e Heraclito entre si é decisiva
quando não se limitam, por um lado, ao dinâmico em tensão do lógos (Heraclito)
e, por outro, ao estático emergente e inaugural da enunciação do Ser
(Parménides). Daí a leitura que Heidegger dedicou a ambos, é bom reafirmá-lo.
Amor e Discórdia enquanto separados, e em conflito como
sugere Empédocles, quer dizer, enquanto palavras/nomes separados, à partida em
oposição, garantem outra compreensão a partir da “intermutação contínua de
lugares” que tentámos analisar no § 11. Aquela instância de palavras separadas,
ou mais contemporaneamente, o binómio Amor/Discórdia, essa separação, essa
oposição, seria condição de possibilidade de uma compreensão de que ela mesma
enquanto tal (separação) seria preliminar para a manifestação do que é o
sentido do Amor e da Discórdia, do ser e do não-ser, da união e da separação, e
de como ambos, de modo sem dúvida complexo, precisam um do outro ou, se
quisermos, jogam entre si. Ultrapassando-se assim aquele basismo, digamos, de separação à primeira vista. Na época de Empédocles, ‘Amor’ e ‘discórdia’ - não
se enunciavam ainda em separação no sentido de abstracção (aphairesis) e de
definição (horismous), tão-pouco como afirmação no sentido apofântico na linha
de Aristóteles. Estas virão mais tarde começando com Sócrates (definições
éticas), Platão (definições eidéticas) e decisivamente com Aristóteles (no plano
das definições nas várias ciências, epistémai).
Para terminar, trata-se não só de ver o insuspeitado
axiológico no ontológico, mas perceber a necessidade de uma retoma ontológica
em germe, no carácter trágico e mesmo dramático do axiológico, com os primeiros
princípios (archai) Amor e Ódio em Empédocles. Perspectivando-se talvez outra
ontologia que, reconhecendo nela o que de supostamente estranho se lhe possa
insurgir, permita repensar o que de estranho, enquanto já outro estranho, mas
reconhecido como tal, remeterá porventura para outra axiologia e outra
política. Enfim, nesta "crise de valores" tão badalada nos nossos
dias e que não sabemos o que é.
Luís de Barreiros Tavares
26/12/2012
Notas:
* Retirado do texto de Heidegger "Hölderlin e a essência da poesia (Hölderlin und das Wesen der Dichtung)", publicado na revista Filosofia, Vol.III, Nº1/2, Outono 1989.Traduzido pelo grupo de tradução de alemão filosófico sob a orientação de Elga Hoock Quadrado.
* Retirado do texto de Heidegger "Hölderlin e a essência da poesia (Hölderlin und das Wesen der Dichtung)", publicado na revista Filosofia, Vol.III, Nº1/2, Outono 1989.Traduzido pelo grupo de tradução de alemão filosófico sob a orientação de Elga Hoock Quadrado.
(1) Sobre Neikos (Νεΐκος), optaremos numas vezes por designar
'Discórdia' e noutras 'Ódio'. Mas qualquer das versões é viável.
(2) Muito se poderia analisar acerca da filosofia dos
valores: Lotze, Hessen, Meinong, Brentano, Scheler, Hartmann e muitos outros.
Não é esse o propósito deste estudo, nem é da nossa competência.
Sobre Empédocles, lembramos, por exemplo, a obra monumental em três tomos de
Jean
Bollack (Empédocle, 3 tomes, Gallimard, coll. « Tel »,
1992 ).
(3) "Se bem que (apesar de) e porque" (para usar uma expressão de Vladimir Jankélévitch: "bien que et parce que".
(3) "Se bem que (apesar de) e porque" (para usar uma expressão de Vladimir Jankélévitch: "bien que et parce que".
(4) É Max Scheler quem sustenta que "o amor assim como
o ódio, na ética material dos valores [...], não são estados
psicológicos, mas intenções dirigidas sobre o que é eventualmente digno de ser
amado ou odiado" (vj. bibliografia: retirado de Isabel C.R. Renaud,
"Axiologia" in Enciclopédia Logos).
(5) Frequentei o curso de Filosofia em três Universidades
de Lisboa (Católica, Clássica, e Nova), tendo concluído a licenciatura na
terceira. Na Católica tive uma cadeira intitulada precisamente "Axiologia
e Ética", com o Pe. Joaquim Cardozo Duarte.
(6) Sobre a abstracção (aphairesis): "Pensamento
das coisas que estão incorporadas na matéria como se não estivessem"
(Aristóteles, De anima, III, 431b).(7) Os pitagóricos influenciaram Empédocles, nomeadamente no que respeita ao problema da alma, (transmigração e encarnação, vj. Purificações), etc. Para se perceber a abrangência de influências por que passou Empédocles, e a sua capacidade de as transformar vj. Kirk e Raven, op.cit., p.372, onde se mostra o leque de influências sobre a questão da alma que vai de Homero, abrindo caminho até Platão e Aristóteles. Caldo de cultura e caos também onde nos mergulha Empédocles.
(8) Na verdade, Empédocles não fala de quatro elementos (stoikheion), mas de quatro raízes. Estas estão relacionadas com quatro figuras míticas (Zeus, Hera, Aidoneus e Néstis): "Ouve primeiro das quatro raízes de todas as coisas: Zeus brilhante, Hera vivificante, e Aidoneus e Nestis, que deixa correr de suas lágrimas fonte terrena" (fr. 6) O que mostra como Empédocles mantém uma ponte entre a natureza e a dimensão mítica.
(9) Escrevi "ultrapassados" e não superados, tendo em conta que Aufheben em Hegel comporta superação e conservação.
(10) Sobre horizonte, ver p.ex. §§ 17-18 e 64-65... Sobre definição e Ereignis, ver § 81-90. Vj. também do mesmo autor Le Jeu des Sciences avec Heidegger et Derrida, L'Harmattan, 2007.
(11) Sobre a possível ligação das duas obras de Empédocles, Da Natureza e das Purificações, encontrou-se no final do séc. XX um papiro com um fragmento de sessenta e nove linhas ou versos (papiro de Estrasburgo) onde se constata e se chega a uma conclusão possivelmente definitiva de que ambas as obras fazem parte de uma só. Vj. António Pedro Mesquita em vídeo (ao minuto 30' aproximadamente), onde se desenvolvem de modo muito interessante estas e outras questões: http://vimeo.com/15409416
De facto, António Pedro Mesquita adianta que não faz sentido filosoficamente ver Da Natureza e as Purificações enquanto duas obras, tendo em conta que a alma tem de ser vista também no plano cosmogónico e cosmológico, da natureza, e não só no soteriológico das Purificações. Tanto mais que em Empédocles a alma é considerada no plano das encarnações (plantas, animais e humanos) e portanto encontra-se na natureza. E tendo ainda em conta que Empédocles era pitagórico. "E conta-se que passava Pitágoras, ao ser castigado um pequeno cão; sentiu piedade e pronunciou as seguintes palavras: "Pára de bater. Pois é alma de um amigo meu, que reconheci ao ouvir os seus gemidos." (Xenófanes., frg.7).
(12) "Mas os mortais imaginam que os deuses são engendrados, têm vestimentas, voz e forma humana semelhantes a eles" (Xenófanes, fr.14).
(12) "Mas os mortais imaginam que os deuses são engendrados, têm vestimentas, voz e forma humana semelhantes a eles" (Xenófanes, fr.14).
(13) Sobre a articulação e jogo entre Amor e Discórdia vj. vídeo referido acima (nota 8).
No princípio, o Amor mantém os elementos no interior da esfera originária pela força da agregação. E a Discórdia funciona para manter os limites da esfera à distância, permitindo que não haja colapso.
(14) Não poderemos vislumbrar aqui também um certo sentido de mesmidade?
(14) Não poderemos vislumbrar aqui também um certo sentido de mesmidade?
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Santos, José Trindade, Da
Natureza, Parménides, Lisboa,
Alda editores, 1997.
P.S.: Não sei se vem a propósito, mas leia-se o que vem no jornal "Público" de quinta-feira, 3/1/2013:
"Até ao dia 14 de Janeiro, 13 pensadores olham para 2013 a partir de valores éticos, políticos e religiosos: bem, bondade, lealdade, altruísmo, honestidade, solidariedade, liberdade, verdade, justiça, felicidade, sagrado, sabedoria, coragem e dignidade." Aliás, esta série intitula-se: "Que valores para 2013?"
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