Almada Negreiros e os
retratos de Fernando Pessoa
Luís de Barreiros Tavares, «Almada Negreiros e os
Retratos de Fernando Pessoa», Revista
Nova Águia, nº 21, 1º
semestre, 2018, pp. 140-144, Zéfiro. [com uma revisão e breves acrescentos]
O que me interessa a mim é o espectáculo… Espectáculo! «Espectáculo»
quer dizer «ver»! Espectáculo pode estar onde quiserem. Mas que esteja e que
seja visto!...
(Almada Negreiros)
Almada Negreiros, você não imagina como eu lhe agradeço o facto de você
existir
O interseccionismo
pictural nos dois extraordinários retratos de Fernando Pessoa executados por
Almada Negreiros cruza-se com o interseccionismo do poema Chuva Oblíqua. É o que proponho neste breve estudo. Hipótese
plausível entre outras. Nos dois quadros, o interseccionismo manifesta a sua
força na luz quente-alaranjada e solar que atravessa o espaço do poeta. O
primeiro (1954 – Fig. 1) para o Restaurante Irmãos Unidos (Rossio) que Pessoa
frequentou com outros companheiros do Orpheu.
O segundo (1964 – Fig. 2), imagem invertida num efeito especular do primeiro,
foi encomendado pela Fundação Calouste Gulbenkian.
O efeito reflectido dos dois quadros convoca-nos para esta análise.
Comecemos por considerar esse
lugar como uma sala de café. Supostamente o «Martinho da Arcada» ou «A
Brasileira do Chiado», dois dos cafés lisboetas mais conhecidos que Pessoa
frequentou. O espaço é atravessado por essa luz como se interior e exterior se
cruzassem. Luz desdobrando-se não só nos alaranjados mas nos vermelhos e
amarelos. As sombras são decisivas nessa estrutura pictórica em tons
acastanhados e vermelhos escuros. Há ainda uns violetas, azulados e
acinzentados simbolizando o limiar de passagens de luz e de cor: folha de
papel, açucareiro, meias, punhos de camisa e colarinhos (64); chávena de café,
colarinhos, camisa, folha de papel… (54).
Fig. 1 – Almada
Negreiros, «Retrato de Fernando Pessoa», 1954, Óleo sobre tela, 201 x 201 cm – colecção do Museu de Lisboa / Câmara Municipal de
Lisboa – EGEAC (nº de inventário
MC.PIN.410), em depósito na Casa Fernando Pessoa.
Trata-se de uma concepção geométrica do
espaço entre um quadriculado
de linhas perpendiculares na parede e as diagonais cruzadas do pavimento
ladrilhado.
Figura de negro (chapéu,
fato, bigode, laço, calçado) e branco (colarinho, camisa e meias), Pessoa, no
seu recorte, esquematiza-se de algum modo em linhas quebradas. Por detrás do
poeta parece haver duas janelas esquemáticas de cada lado, cujos caixilhos
enquadrantes poderão dar para um qualquer limiar ou vazio – é uma hipótese de
leitura. Por outro lado, o que nelas se reflecte ou levemente transparece é a
luz de outras janelas ou portas do lado do espectador e outras eventualmente
laterais. Estas são invisíveis no quadro dando uma luz solar à sala, se bem que
também possam conferir uma luz de lustre (54): chão, paredes, mesa. As linhas
geométricas, diagonais e perpendiculares inscrevem-se neste jogo de planos por
vezes vítreos, mais acentuados em ‘64’. O rosto do poeta é banhado por um jogo
de luz e sombra, cuja cabeça é enquadrada por uma «janela» pictural.
Visíveis são as supostas
janelas frontais. A sua aparente opacidade oscila num limiar de certa
profundidade e transparência – mais notório na pintura de 64. A sala
representada parece flutuar entre um recinto interior de um edifício (sala
interior de café) e um recinto exterior, dir-se-ia uma espécie de esplanada…
Com efeito, as janelas
frontais não reflectem apenas a luz projectada. Na pintura de 54 a profundidade
é um pouco sombria na janela do lado esquerdo, ao passo que a da direita
aprofunda uma luminosidade. Ambas as janelas parecem conduzir ao mesmo espaço.
Mas o para lá da janela esquerda, com menos luz do que a da direita, afigura-se
um interior por contraste a um outro interior da segunda. Todavia, pela sua
proximidade ambas talvez conduzam a um mesmo espaço. Mas, sobretudo, elas
oscilam entre uma certa opacidade e transparência.
Fig. 2
– Almada Negreiros, «Retrato de Fernando Pessoa», 1964, Óleo sobre tela, 225 x
226 cm, Museu Calouste Gulbenkian – Colecção Moderna.
Por outro lado, as
supostas janelas não deixam de sugerir, nas duas pinturas, quadros de vertente
abstracto-monocromática ou abstracto-geométrica. A serem pinturas, elas estão
encaixadas em molduras perceptíveis por frisos simples e lineares.
Espaços que se deslocam e
se comunicam, mantendo-se as divisões (termo que designa um recinto de casa)
por meio de portas e janelas que poderão não ser de café (nem o Martinho nem a
Brasileira tinham e têm janelas).
Talvez Pessoa não
escrevesse assim tanto em cafés. Na verdade, ao longo de toda a sua vida, o
poeta tanto escreveu nos escritórios onde trabalhou, como nos quartos que
alugou. Ele faz referência às janelas dos seus quartos e dos seus escritórios
nas suas várias pessoas. Por exemplo: «Janelas do meu quarto / de um dos
milhões do mundo que ninguém sabe quem é […]» (Álvaro de Campos, Tabacaria). E no semi-heterónimo:
Agora mesmo, que estou inerte no escriptorio, e foram todos almoçar salvo
eu, fito através da janella baça, o velho oscilante que percorre lentamente o
passeio do outro lado da rua. Não vae bêbado; vae sonhador. Está atento ao
inexistente; talvez ainda espere. Os Deuses, se são justos em sua injustiça,
nos conservem os sonhos ainda quando sejam impossíveis, e nos deem bons sonhos
ainda que sejam baixos.
(Bernardo Soares, Livro do Desassossego)
Os principais heterónimos
nasceram num dos seus quartos na data arredondada de 8 de Março de 1914 («Foi o
dia triunfal da minha vida»). Almada potenciou estes lugares nos dois retratos
em espelho. Vale pena reler esta passagem:
[…] foi em 8 de Março de 1914 – acerquei-me de uma cómoda alta, e tomando
um papel, comecei a escrever, de pé, como sempre que posso. E escrevi trinta e
tantos poemas a fio, numa espécie de êxtase cuja natureza não conseguirei
definir. Foi o dia triunfal da minha vida, e nunca poderei ter outro assim.
Abri com o título, O Guardador de Rebanhos. E o que se seguiu foi o
aparecimento de alguém em mim, a quem dei desde logo o nome de Alberto Caeiro.
Desculpe-me o absurdo da frase: aparecera em mim o meu mestre. Foi essa a
sensação imediata que tive. E tanto assim que, escritos que foram esses trinta
poemas, imediatamente peguei noutro papel e escrevi, a fio, também, os seis
poemas que constituem a Chuva Oblíqua, de Fernando Pessoa. Imediatamente e
totalmente… Foi o
regresso de Fernando Pessoa-Alberto Caeiro a Fernando Pessoa ele só. Ou melhor,
foi a reacção de Fernando Pessoa contra a sua inexistência como Alberto Caeiro
[sublinhamos].
Complexo desdobramento do
próprio «Pessoa [ortónimo] ele só» com Chuva
Oblíqua a seguir a O Guardador de
Rebanhos, de Caeiro. «Pus no Caeiro todo o meu poder de despersonalização».
*
Na mesa de ócio ou labor
os objectos parecem comunicar e partilhar a sua vida: livros, cadernos, folha
de papel, caneta de tinta permanente, chávena de café, açucareiro e o cigarro
na mão…
O olhar e a postura de
Pessoa expressam uma suspensão de pensamento e reflexão prontos para o acto,
para o gesto de escrita:
«[…] traduzindo uma visão em profundidade,
introspectiva, mas discretamente detida numa superficialidade aparente; o próprio movimento da figura é subitamente retido, numa atenta tensão» (José-Augusto França).
As linhas, planos e
espaços em intersecção de luz e cor exterior/interior evocam, como indiquei no
início, o célebre poema interseccionista Chuva
Oblíqua publicado na revista «Orpheu 2».
Não por acaso este número encontra-se representado nas duas pinturas.
É também evidente que Almada elege Pessoa como figura tutelar do Orpheu.
Há, portanto, uma
influência assinalável deste poema na concepção plástica e reflexiva dos dois
retratos onde Pessoa surge um tanto esfíngico.
Almada, conhecedor da dimensão interseccionista deste poema, expressa no gesto
plástico destas duas pinturas não só a exterioridade e a interioridade dos
espaços mas do tempo e da alma do poeta.
Convém assinalar que o
interseccionismo de Pessoa é literário, e um suposto interseccionismo pictórico
nos dois retratos de Almada sê-lo-á sobretudo numa espécie de contraponto ao de
Pessoa. Apesar de, por várias razões que não cabe aqui abordar, o autor de Chuva Oblíqua ter desistido desta
corrente literária – dando
força decisiva ao sensacionismo –, o que importa na nossa
hipótese é o momento de entrecruzamento potencial da linguagem literária e da
linguagem pictórica numa espécie de jogo de espelhos. Momento feliz culminando
na realização plástica destes dois retratos.
Pinturas que, por si
mesmas, não se reduzem a uma qualquer influência estritamente interseccionista
de raiz pictórica futurista anterior que viesse influenciá-las.
Este interseccionismo terá, por assim dizer, qualquer coisa de expressivamente
inovador, de original. Um novo e outro interseccionismo. Pessoa, por seu turno,
converteu a influência do interseccionismo da pintura futurista em inovação com
o interseccionismo poético.
Citemos algumas passagens
deste belíssimo poema em ressonância à atmosfera de escuta e de escrita de
Pessoa retratado e reflectido magnificamente por Almada Negreiros. Eis o começo
do poema Chuva Oblíqua:
I
Atravessa esta paysagem o meu sonho d’um porto infinito
E a côr das flôres é transparente de as velas de grandes navios
Que larga do caes arrastando nas aguas por sombra
Os vultos ao sol d’aquellas arvores antigas…
O porto que sonho é sombrio e pallido
E esta paysagem é cheia de sol deste lado…
Mas no meu espirito o sol d’este dia é porto sombrio
E os navios que sahem
do porto são estas arvores ao sol…
[…]
e por exemplo:
II
Ilumina-se a egreja por dentro da chuva d’este dia,
E cada vela que se acende é mais chuva a bater na vidraça…
Alegra-me ouvir a chuva porque ella é o templo estar aceso,
E as vidraças da egreja vistas de fóra são o som da chuva ouvido por
dentro…
O esplendor do altar-mor é o eu não poder quasi vêr os montes
Atravez da chuva que é ouro tão solemne na toalha do altar…
Sôa o canto do côro, latino e vento a sacudir-me a vidraça
E sente se chiar a agua no facto de haver côro…
A missa é um automóvel que passa
Atravez dos fieis que se ajoelham em hoje ser um dia triste…
Subito vento sacode em esplendor maior
A festa da cathedral e o ruído da chuva absorve tudo
[…]
ou ainda:
III
A Grande Esphynge do Egypto sonha por este papel dentro…
Escrevo – e ella apparece me através da minha mão transparente
E ao canto do papel erguem-se as pyramides…
Escrevo – perturbo-me de vêr o bico da minha penna
Ser o perfil do rei Cheops…
De repente paro…
Escureceu tudo… Caio por um abysmo feito de tempo…
Estou soterrado sob as pyramides a escrever versos á luz clara d’este
candieiro
[…]
*
Concluindo, escutemos
Alain Badiou, atento leitor de Pessoa, a propósito de Chuva Oblíqua:
[…] especialmente nos poemas de Pessoa-em-pessoa, ele recusa o princípio
do terceiro excluído. O caminho do poema é com efeito, em diagonal, aquilo de
que trata não é nem uma cortina de chuva nem uma catedral; nem a coisa nua nem
o seu reflexo; nem o ver directo da luz, nem a opacidade de uma vidraça. O
poema está então aí para criar este «nem nem», e sugerir que é ainda outra coisa, que toda a oposição sim/não deixa escapar [sublinhado
do autor].
Em suma, um dos elementos
cruciais das duas pinturas de Almada é este encontro tão bem conseguido com a
atmosfera poética de Pessoa no poema citado. Alguns dos leitmotiv para a leitura desta possível correspondência são a luz,
um certo ouro da luz, as sombras, o sol, a noite, o dia, em filtros de planos e
linhas cruzando-se. Nas duas pinturas, a linha vertical delimitadora do plano
de luz «cortando» a mesa e o ângulo do cotovelo em triângulo, em intersecção
com a sombra, é um dos gestos mais assinaláveis de um singular interseccionismo
aí presente.
Dir-se-ia que as
sensações e os sentidos – sobretudo visão e audição – povoam a exterioridade e
a interioridade, o fora e o dentro da alma e da reflexão poética e intelectual
de Chuva Oblíqua. Um jogo de espaços
onde a voz do poeta como que ressoa e retumba, em eco de escrita, a
reverberação dos dois quadros.
__________
Referências
bibliográficas
I
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Almada, Uma maneira de ser moderno, Catálogo, Lisboa, Sistema Solar, Fundação Calouste
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2015).
Revista ORPHEU 2 (edição fac-similada no jornal público –
2015).
II
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qui reste d’Auschwitz, (Quel che resta
di Auschwitz, 1º ed.
1998), trad. Pierre Alferi, Rivages, 2012.
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portuguesa: Meditações Filosóficas – Pequeno Manual de Inestética, Vol. II, trad.
Joana Chaves, Lisboa, ed. Instituto Piaget, 1999).
Campos, Álvaro
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Cartas e páginas autobiográficas, Introdução, organização e bibliografia de
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Martinho, José,
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Pessoa, F., Obra em Prosa de
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Prado Coelho), Ática, Lisboa, 1982.
Tavares, Luís de Barreiros, «Ecos de
Santa-Rita e Malévitch: O Quadrado e o Círculo», Revista Nova Águia,
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Tavares, Luís de
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MIL - Movimento Internacional Lusófono e Nova Águia, Setembro de 2015.
Zenith, R., Fernando Pessoa:
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Entrevista conduzida pelo jornalista Manuel Varela (1968). Vídeo (Entrevista de Almada Negreiros
– 1968): https://www.youtube.com/watch?v=4DdMz5U3qTc
Ou «versão em espelho de 1964»
(Mariana Pinto dos Santos [M.P.S.], José de Almada
Negreiros, Uma maneira de ser moderno, p. 107). Este quadro estará exposto
no Museu Rainha Sofia: “Pessoa. Toda a arte
é uma forma de literatura” (07/02/2018 a 07/05/2018). Entre outros retratos de Pessoa por Almada, por exemplo, o
estilizado desenho a tinta-da-china (1935).
Célebre carta de Pessoa a Adolfo
Casais Monteiro (Lisboa, 13 de Janeiro de 1935), descrevendo a génese dos
heterónimos, in Fernando Pessoa, Escritos Íntimos, Cartas e páginas autobiográficas, p. 228. Almada conheceu certamente esta carta
publicada pela primeira vez na no número 49 da Presença, em Junho de 1937 (João Minhoto Marques: https://modernismo.pt/index.php/a/adolfo-casais-monteiro)
José-Augusto
França, A Arte em Portugal no Século XX,
1911-1961, p. 498.